03 Setembro 2016
Em um mesmo tom de voz e igual grau de expressividade, Zygmunt Bauman, o sociólogo mais influente das últimas décadas, faz piadas de sua surdez e reflete sobre a vida dupla – on-line e off-line – que, segundo ele, define nossa modernidade. “Venha deste lado – e mostra o aparelho auditivo escondido em seu ouvido esquerdo –, assim posso escutar algo do que você me disser e conversamos”, disse em um terraço de Lignano Sabbiadoro, o refinado balneário da costa friulana, perto de Údine, onde Bauman veio receber o Prêmio Hemingway, na categoria Aventura do Pensamento. Acaba de se guardar o cachimbo no bolso. Nas mãos, ainda tem dois isqueiros e o pacote de tabaco Clan Aromatic, uma combinação de quatorze tabacos diferentes, elaborado na Holanda.
Zygmunt Bauman (Foto: Wikipedia)
A entrevista é de Marina Artusa, publicada pelo jornal Clarín, 06-07-2016. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Que aspecto da vida moderna lhe faz perder o sonho, ultimamente?
Bom, procuro simplificar e encontrar um denominador comum no que penso e no que digo, porque vivemos em um mundo problemático e o que subjaz em comum em todas as manifestações dos inconvenientes destes tempos é a fluidez, a liquidez atual que se reflete em nossos sentimentos, no conhecimento de nós mesmos.
Bauman já era um sociólogo influente quando lançou seu conceito líquido – essa ideia de inconsistência que para definir o mundo que nos rodeia aplicou à vida, ao amor e à modernidade –, que lhe valeu notoriedade midiática e popular: “Escolhi chamar ‘modernidade líquida’ a crescente convicção de que a mudança é a única coisa permanente e a incerteza a única certeza”, disse. “A vida moderna pode adquirir diversas formas, mas o que une todas é justamente essa fragilidade, essa temporalidade, a vulnerabilidade e a inclinação à mudança constante”.
Seguimos dominados pela incerteza?
A incerteza é nosso estado mental que é regido pelas ideias como “não sei o que irá acontecer”, “não posso planejar um futuro”. O segundo sentimento é o que traz impotência, porque mesmo quando sabemos o que é que devemos fazer, não estamos seguros de que isso será efetivado: “não tenho os recursos, os meios”, “não tenho poder suficiente para encarar o desafio”. O terceiro elemento, que é o mais prejudicial psicologicamente, é o que afeta a autoestima. Sente-se um perdedor: “não posso me manter por cima, afundo-me”, “os outros são os bem-sucedidos”.
Neste estado anímico de instabilidade, maníaco, esquizofrênico, o homem está desesperado buscando uma solução mágica. Torna-se agressivo, brutal na relação com os demais. Usamos os avanços tecnológicos que, teoricamente, deveriam nos ajudar a estender nossas fronteiras, no sentido contrário. São utilizados por nós para nos tornar herméticos, para nos fecharmos no que chamo “echo chambers”, um espaço onde a única coisa que se escuta são ecos de nossas vozes, ou para nos fechar em um “hall dos espelhos”, onde só se reflete nossa própria imagem e nada mais.
Onde estamos melhor, on-line ou off-line?
Hoje, vivemos simultaneamente em dois mundos paralelos e diferentes. Um, criado pela tecnologia on-line, nos permite passar horas em frente a uma tela. Por outro lado, temos uma vida normal. A outra metade do dia passamos no mundo que, em oposição ao mundo on-line, chamo off-line. Segundo as últimas pesquisas estatísticas, em média, cada um de nós passa sete horas e meia em frente a tela. E, paradoxalmente, o perigo que jaz, aí, é a propensão da maior parte dos internautas tornar o mundo on-line uma zona ausente de conflitos.
Quando se caminha pela rua em Buenos Aires, no Rio de Janeiro, em Veneza ou em Roma, não se pode evitar o encontro com a diversidade das pessoas. Deve-se negociar a coabitação com essa gente de distinta cor de pele, de diferentes religiões, diferentes idiomas. Não se pode evitar. Mas, sim, é possível se esquivar na Internet. Aí, há uma solução mágica para os nossos problemas. Utiliza-se o botão “apagar” e as sensações desagradáveis desaparecem.
Estamos em processo de liquidez auxiliado pelo desenvolvimento desta tecnologia. Estamos esquecendo lentamente, ou nunca aprendemos, a arte do diálogo. Entre os danos mais analisados e teoricamente mais nocivos da vida on-line está a dispersão da atenção, a deterioração da capacidade de escutar e da faculdade de compreender, que levam ao empobrecimento da capacidade de dialogar, uma forma de comunicação de vital importância no mundo off-line.
Se nos sentimos conectados, para que precisaríamos recuperar o diálogo?
O futuro de nossa coabitação na vida moderna se baseia no desenvolvimento da arte do diálogo. O diálogo implica uma intenção real de nos compreender mutuamente para viver juntos em paz, graças as nossas diferenças e não apesar delas. É necessário transformar essa coexistência cheia de problemas em cooperação, o que se revelará em um enriquecimento mútuo. Eu posso aproveitar sua experiência inacessível para mim e você pode tomar algum aspecto de meu conhecimento que lhe seja útil. Em um mundo de diáspora, globalizado, a arte do diálogo é crucial. A ‘diasporização’ é um fato.
Estou certo que Buenos Aires é uma coleção de diversas diásporas. Em Londres, há 70 diásporas diversas: étnicas, ideológicas, religiosas, que vivem uma ao lado da outra. Transformar essa coexistência em cooperação é o desafio mais importante de nosso tempo. Diálogo significa expor as próprias ideias, mesmo assumindo o risco que no transcurso da conversa seja comprovado que se estava equivocado e que o outro tinha razão. O melhor exemplo foi dado pelo seu Papa, o Papa argentino: apenas assumiu, Francisco concedeu sua primeira entrevista a Eugenio Scalfari, decano dos jornalistas italianos e ateu confesso, e a um jornal anticlerical como é La Republica.
A vida on-line é um refúgio ou um consolo a essa ausência de diálogo?
Encontramos um substituto para nossa sociabilidade na Internet e isso torna mais fácil não resolver os problemas da diversidade. É um modo infantil de se esquivar viver na diversidade. Há outra força que atua contra e é a mudança de situação na regulação do mercado de trabalho. Os antigos lugares de trabalho eram espaços que propiciava a solidariedade entre as pessoas. Eram estáveis. Isso mudou, hoje, com os contratos breves e precários. As condições instáveis, flutuantes e sem perspectiva de carreira não favorecem a solidariedade, mas a concorrência. Estes dois fatores não incentivam as pessoas para o diálogo. Já sou uma pessoa idosa e acredito que vou morrer sem ver este problema resolvido.
No entanto, em diferentes lugares do mundo, surgem processos de auto-organização social, a partir de baixo. Vizinhos que se auto-organizam para resolver problemas como a insegurança ou para recuperar a sociabilidade perdida. É uma alternativa ou um paliativo?
O que você destaca é muito importante. É crucial para a atual situação, pois todas as instituições de ação coletiva que herdamos de nossos ancestrais, aqueles que desenvolveram as bases da democracia moderna, como o poder tripartite, o parlamento nas democracias representativas, as eleições, a Corte Suprema, já não funcionam adequadamente. Todas estas instituições tinham uma única e mesma ideia em mente: estabelecer as regras da soberania territorial. Mas, vivemos em condições de globalização, o que significa que ninguém é territorialmente independente. Nenhum governo, hoje, pode dizer que tem pleno controle da situação, pois se vive em um mundo globalizado, em que os mercados, as finanças, o poder, tudo está globalizado. Então, aquelas instituições que já foram efetivas em estabelecer a independência territorial para um melhor desenvolvimento do Estado moderno, hoje, são imprestáveis para enfrentar o tema da interdependência, que a globalização nos coloca.
Os governos são cegos ou néscios a ponto de não admitir a globalização?
Propõem soluções locais para problemas globais. Não se pode pensar com esta lógica. É preciso desenvolver soluções que renunciem as fronteiras territoriais, assim como fizeram os bancos, os mercados, o capital de investimentos, o conhecimento, o terrorismo, o mercado de armas, o narcotráfico.
E isso daria origem às novas formas de auto-organização?
Surgem projetos interessantes como Slow Food ou Médicos Sem Fronteiras. Jeremy Rifkin (economista e teórico social estadunidense) escreveu um livro que foi publicado no ano passado – The Zero Marginal Cost Society. The Internet of Things, The Collaborative Commons, and the Eclipse of Capitalism (O custo social zero. A Internet das coisas, os bens comuns colaborativos e o eclipse do capitalismo) –, no qual destaca que uma nova realidade está emergindo, ainda inadvertida pela opinião pública. Os mercados competitivos estão sendo substituídos pelo que ele denomina “collaborative commons”, o bem comum colaborativo, onde as pessoas não buscam o lucro pessoal, mas a cooperação, reunir forças e compartilhar. Compartilhar conhecimento, recursos. Compartilhar felicidade, compartilhar welfare.
Você concorda?
Não saberia dizer se Rifkin tem razão ou não. Ele disse que a tecnologia resolverá o problema, que fará isso por nós. Para mim, isso é uma reedição do determinismo tecnológico que não me agrada. Para mim é improvável sugerir que a questão esteja resolvida e que o êxito da transformação em curso esteja preestabelecido. Um machado pode ser utilizado para cortar lenha ou para partir a cabeça de alguém. Ao mesmo tempo em que a tecnologia determina a série de opções abertas aos seres humanos, não determina qual destas opções, ao final, será escolhida ou descartada. O que talvez o homem possa fazer é uma pergunta que pode ser dirigida à tecnologia. Mas, o que será feito pelo homem deve se perguntar à política, à sociologia, à psicologia. As pessoas estão buscando alternativas às instituições que não estão funcionando. Fazem o que ninguém fará por eles. Isso é inegável.
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“Vivemos em dois mundos paralelos e diferentes: o on-line e o off-line”. Entrevista com o sociólogo Zygmunt Bauman - Instituto Humanitas Unisinos - IHU