19 Novembro 2015
Isto acontece raramente e, quando acontece, é sinal de uma extraordinária lucidez do protagonista: uma testemunha de uma época particularmente difícil e com fortes traços de tragicidade também é um dos seus intérpretes mais perspicazes e críticos. Entender e explicar o último século da modernidade, da tentação de tornar o mundo sólido, unívoco, desprovido de toda ambiguidade (vejam-se os fascismos e os comunismos) até a aterrissagem em um universo social líquido e fragmentário, com o corolário do terrorismo: esse é o papel que Zygmunt Bauman se deu, ele mesmo judeu, vítima do nazismo, comunista e depois anticomunista, expulso em 1968 do seu país natal.
A reportagem é de Wlodek Goldkorn, publicada no jornal La Repubblica, 18-11-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O sociólogo polonês, hoje residente na Inglaterra, em Leeds, em uma modesta casa de professor universitário – e onde ele cuida dos trabalhos doméstico, cozinha, passa, limpa – completa 90 anos nesta quinta-feira.
E, mais do que uma oportunidade para fazer um balanço de uma vida inteira, esta conversa serve para reiterar o papel duplo, de um dos pensadores mais influentes do mundo e, ao mesmo tempo, do objeto do seu estudo.
Bauman diz: "Às vezes, mais que um ornitólogo, eu me sinto um pássaro". A conversa só pode começar pela atualidade, Paris e a guerra em casa: "É como se vivêssemos em um campo minado, sabemos que as explosões vão continuar, mas não sabemos onde e quando será a próxima. A quantidade de armas em circulação (também graças aos nossos governos) é tamanha que poucos camicazes são capazes de provocar uma cadeia de ações e de reações de consequências incalculáveis. E, além disso, os problemas a serem enfrentados são globais, mas são enfrentados pelas autoridades locais, incapazes de chegar às raízes do mal. Tentar enfrentar problemas globais com meios locais, de fato, é como tentar colocar a pasta de dente de volta no tubo. No fim, quem sofre é a democracia, as pessoas amadurecem a convicção de que é preciso renunciar às liberdades conquistadas a muito custo, em nome da (suposta) segurança. Cria-se um círculo vicioso que vê agirem em conjunto os xenófobos locais e os terroristas globais".
Em suma, aos 90 anos, cabe a Bauman assistir ao desfazimento de outro mundo ainda. Ele nasceu em Poznan, no dia 19 de novembro de 1925. A Polônia independente existia há apenas sete anos e não era um país onde as minorias nacionais tinham uma vida fácil.
Poznan, depois, era a fortaleza da direita antissemita que exaltava uma pátria apenas para os católicos. Bauman conta: "Na escola, durante os recreios, eu não saía para o pátio. Era a única forma para evitar os chutes e os socos dos outros. Eu amava os livros e costumava ir frequentemente a uma livraria. Mas não tinha dinheiro...".
Eis a entrevista.
O empreendimento comercial do seu pai fracassou por causa da crise.
Sim, foi um fato muito difícil. Um dia, naquela loja, eu vi um cartaz: "Local cristão". E, ao lado, outro: "Compre do polonês" [no sentido de não comprar dos judeus]. Eu também frequentava uma biblioteca pública, até ver na prateleira a revista Alla Gogna. Não voltei mais.
A Alla Gogna era uma das mais vulgares revistas antissemitas que já existiu. Em 1939, Hitler invadiu a Polônia. Você, com apenas 14 anos, fugiu para a URSS, tornou-se um pequeno comunista e se alistou no Exército polonês que combateu ao lado do Exército Vermelho.
No colégio soviético, finalmente eu pude correr no campo atrás da bola (e ainda sou um torcedor: de times perdedores): ninguém me dizia que eu devia ir embora para Madagascar ou para a Palestina e, quando eu confesso o meu amor pelas letras polonesas, ninguém me lembra que eu sou um judeu e, portanto, não devo usurpar uma cultura que não é minha. O meu ser polonês sempre foi suspeito, como se tivesse roubado o pertencimento à Polônia, sem ter direito, e isso até hoje. Mas podemos falar também das minhas ideias e não só da biografia?
Em 1968, depois das manifestações dos estudantes, você, na época professor da Universidade de Varsóvia, foi declarado o inimigo público número um, seja como desviacionista, seja como sionista (isto é, judeu). Até meados dos anos 1960, no entanto, você foi comunista, e foi uma experiência fundamental. O que era o comunismo?
O comunismo não nasceu por um milagre, nem caiu do céu, nem é um produto do inferno. Em vez disso, ele marca uma continuidade com a história. É um dos resultados da reflexão filosófica, que se manifestou depois do terremoto de Lisboa de 1755, que teve como objetivo abandonar a atitude de "guarda florestal" em relação ao mundo, em favor, ao contrário, de uma posição de "jardineiro". O jardineiro organiza o mundo: escolhe as plantas certas, extirpa as ervas daninhas. O comunismo não é uma utopia romântica, mas é filho do século das Luzes, de Voltaire e de Diderot. E tem algo de messiânico. Trotsky se considerava talvez como um messias dos judeus, talvez como uma espécie de Cristo, talvez pensasse no segundo advento.
E depois?
Por fim, o comunismo é uma técnica de conquista do poder, técnica golpista, técnica que permite que se ignorem os resultados das eleições e que tende à total manipulação das consciências e da linguagem.
E com essa resposta você explicou também por que, em um certo momento, você deixou de ser comunista. Mas a adesão se devia a quê?
Camus disse que a particularidade do século XX estava no fato de causar o Mal em nome do Bem. Havia o fascínio do novo começo, que, por sua vez, se baseava na repulsa ao velho mundo. Na adesão ao comunismo, há muito do social-democrata Bernstein e de Walter Benjamin com o seu Anjo da história. O bolchevismo foi uma espécie de Partido da Ação. E, quanto a mim, eu era um jovem soldado condecorado com uma medalha ao valor militar por ter participado das cruéis batalhas de Kolberg e Berlim. Eu não era um intelectual. Eu queria que o meu pobre e infeliz país mudasse.
Sucederam-se os anos do poder comunista. Você se tornou um sociólogo importante, depois um dissidente. Por fim, expulso, foi para Israel, mas ficou muito pouco lá...
Eu não queria trocar o nacionalismo polonês do qual fui uma vítima pelo nacionalismo israelense.
A sua biografia não é um comum...
Não existem biografias comuns. Cada homem é um mundo em si mesmo, irrepetível.
Pode ser, mas a sua biografia é muito judaica. Você viveu na Polônia, Israel, Inglaterra. Onde permaneceu estrangeiro.
Um comediante inglês dizia que o judeu é um homem que, em todo lugar, está fora de lugar. Sim, eu nasci estrangeiro e vou morrer estrangeiro. E sou apaixonado por essa minha condição. Com a minha esposa, Janina, que faleceu há quase cinco anos, éramos unidos em tudo, mas uma coisa eu não compartilhei com ela: ela escreveu Um sonho de pertença, um livro em que ela expressava a sua necessidade de pertencer. Eu abro mão disso. Ao ser "estrangeiro", há alguns privilégios. O maior deles é poder dar a mínima para a opinião pública. O único tribunal é o da própria consciência, e é o mais severo de todos.
Como você teve a ideia da modernidade líquida?
Desde pequeno, sou fascinado pela física. Depois, me tornei um sociólogo e não um astrônomo, como eu sonhava. A ideia da modernidade líquida me veio ao ler o livro fundamental de Ilya Prigogine, Nobel da Física, O fim das certezas. Prigogine falava da fraqueza das ligações entre as moléculas dos líquidos contraposta à força dessas ligações nos corpos sólidos.
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Bauman, 90 anos: "Sou sempre estrangeiro. A minha consciência é o único juiz" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU