Por: Jonas | 18 Abril 2016
“A defesa dos direitos, que devem ser garantidos pelo Estado e pelo Governo como responsável temporal da gestão do Estado, corresponde e reside no conjunto da sociedade, onde se assenta a base e a razão do poder. Por esse motivo, os cidadãos sempre estão habilitados para defender os direitos básicos, mesmo contra as decisões dos governantes legitimamente eleitos. A democracia possui mecanismos de delegação da representação e da condução do governo, mas isso não implica, de forma alguma, abandonar a vigilância permanente e ativa a respeito da vigência dos direitos fundamentais”, escreve o jornalista Washington Uranga, ao analisar os últimos acontecimentos políticos na Argentina. O artigo é publicado por Página/12, 15-04-2016. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
O cenário político argentino não admite análises lineares, uma vez que à complexidade própria de todas as situações nas quais estão envolvidas pessoas, interesses e conflitos, soma-se uma conjuntura que abre, a cada dia, mais e mais interrogações e acrescenta dificuldades, especialmente frente à reconstrução de consensos para o exercício do poder.
Muito se especulou a respeito do “regresso” da ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner. E, paradoxalmente, foram os aliados judiciais do governo encabeçado por Mauricio Macri que se encarregaram de facilitar um atalho e construir uma oportunidade para o reencontro da ex-presidente com os cidadãos e, desta maneira, sua reinstalação como ativa participante da vida política do país. Não porque em algum momento havia se retirada, mas porque ela própria se impôs uma pausa. Talvez por respeito cidadão ao resultado eleitoral do ano anterior, talvez para deixar que o novo governo mostrasse à comunidade seu verdadeiro rosto, talvez porque também tem sua própria visão sobre os tempos que a política requer.
A proposta de uma “frente cidadã” para “defender os direitos conquistados”, embora não aterrisse ainda em suas formas operativas e terá que amadurecer não só em suas formulações, como também, sobretudo, nas práticas dos atores populares, parece apontar para o resgate de uma questão fundamental: a base do poder reside no cidadão que é quem concede o mandato e não nos aparelhos institucionais e em seus dirigentes que, em muitas ocasiões – mais do que seriam desejáveis –, acabam enredados, defendendo interesses burocráticos, quando não adornados, escutando discursos autorreferenciais. Para uma amostra, basta um botão e, neste momento, alcançaria com o olhar a atitude entre impassível e cúmplice de certos líderes sindicais aferrados em seus cargos, enquanto são despedidos trabalhadores no setor privado e no estatal. O mesmo poderia ser dito de dirigentes políticos que, recentemente, obtiveram seus mandatos através de campanhas que constituem contratos eleitorais para os quais, hoje, dão as costas.
Na democracia, o conceito de cidadania está indissoluvelmente ligado aos direitos que assistem a cada pessoa, apenas por sua condição cidadã. E nisto não cabem merecimentos. O direito é universal e existe por si. A cidadania é fonte de direitos e o gozo dos mesmos não se delega em uma eleição. O sufrágio constitui um contrato entre os cidadãos e aqueles que são escolhidos para representá-los mediante a gestão do governo. Estabelece acordos, fixa orientações, mas nunca pode jogar por terra direitos fundamentais que dão origem à vida em sociedade. Entende-se, então, que a sinalização que Cristina Fernández faz ao governo de Mudemos – sem personalizar ninguém, nem sequer o Presidente – é a de “não ser respeitoso com a vontade popular” ao desconhecer as próprias promessas de campanha.
O dito contém uma dupla denúncia. Por um lado, a de romper o contrato oferecido para chegar ao governo. Por outro, atentar contra um fundamento essencial da democracia ao subjugar e arrasar direitos cidadãos, que são direitos humanos, políticos, econômicos, sociais e culturais. Entende-se, então, a convocação para “defender os direitos conquistados”.
Colocar-se no lugar dos cidadãos e dos direitos também habilita outro modo de entender e de fazer política.
Em princípio, porque os cidadãos não podem se ver só, a partir da perspectiva dos direitos que amparam cada um e cada uma. O outro lado dos direitos é a responsabilidade. E para esta também estão convocados todos os cidadãos, simplesmente pela sua condição. A defesa dos direitos, que devem ser garantidos pelo Estado e pelo Governo como responsável temporal da gestão do Estado, corresponde e reside no conjunto da sociedade, onde se assenta a base e a razão do poder. Por esse motivo, os cidadãos sempre estão habilitados para defender os direitos básicos, mesmo contra as decisões dos governantes legitimamente eleitos. A democracia possui mecanismos de delegação da representação e da condução do governo, mas isso não implica, de forma alguma, abandonar a vigilância permanente e ativa a respeito da vigência dos direitos fundamentais.
Do ponto de vista estratégico, a convocação para uma “frente cidadã” pode ser lida como um apelo à responsabilidade que cada cidadão e cidadã tem em primeiro lugar, em salvaguarda própria e, de maneira concomitante, em defesa da comunidade, para garantir a qualidade de vida e as condições necessárias para isso. É um chamado a voltar à política em seu sentido mais genuíno: articular interesses e necessidades com o objetivo do bem comum. Uma convocação que está acima dos aparelhos e das representações, das desavenças institucionais e dos enfrentamentos pelas migalhas do poder e do orçamento.
Será necessário observar o quanto pode avançar uma proposta deste tipo, feita a partir do plano, “como simples cidadania”, quando não se dispõe nem dos estímulos institucionais do poder, nem dos recursos que a gestão do Estado oferece. É, sem dúvida, uma proposta tão ambiciosa como arriscada, que apela tanto à maturidade cidadã, como à reconstrução do sentido essencial da política, acima das manobras e das contendas em que costuma se alojar. Em definitivo, uma aposta que busca restabelecer genuinamente o contrato básico da democracia, para o qual muitos dos que até há pouco fizeram parte ou ainda integram a Frente para a Vitória também terão que revisar suas práticas políticas.
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Reestabelecer o contrato democrático na Argentina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU