07 Abril 2016
"Aquele furor midiático, apresentado como porta voz poderoso de uma moralidade ferida, agora permite entrever não estar tão preocupado com isso quanto colher os frutos do capital e do dinheiro interessado na queda de presidenta", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
As influências culturais e ideológicas incidentes sobre os direitos humanos, cada uma por sua vez, fazem um esforço muito grande para convencer quem estuda e pretende fundamentar esses direitos, como a ameaça ou a violação deles pode passar despercebida e como as próprias iniciativas da sua defesa podem “legitimar” um sistema socioeconômico capaz de impor a sua ineficácia prática.
As notícias diárias relacionadas com a comissão parlamentar de inquérito aberta para julgar se a presidenta da República deve ou não ser submetida a um processo de impeachment a cargo do Plenário do Congresso Nacional, está se mostrando indiferente a essas duas possibilidades. A primeira, visível num fato notório e, portanto, independente de prova: já se sabe, com antecedência, que o relatório da Comissão, a ser apresentado segunda-feira, 11 deste abril, se posicionará favorável à abertura do dito processo. A segunda, não menos evidente, a de essa decisão procurar justificativa, principalmente, nos princípios constitucionais de legalidade e de moralidade aos quais está sujeita a administração pública. Haveria prova de a presidenta ter sido infiel a ambos.
Algumas questões muito importantes para se ajuizar do acerto ou do erro, da justiça ou da injustiça dessas conclusões aparentam estar longe de preocupar a Comissão. É legal, legítima e moral, uma decisão colegiada, composta por pessoas escolhidas a dedo por quem a preside, adredemente preparada para julgar conforme a vontade dessa direção, ao ponto de se conhecer com antecedência o resultado da sua investigação? É legal, legítima e moral, a condução do trâmite procedimental de apuração de provas, preparado antecipadamente para tudo permitir em favor da acusação pendente dessas provas e tudo indeferir ao direito da defesa que a impugna? É legal, legítima e moral, a composição de um colegiado, capaz de julgar sobre legalidade ou ilegalidade, moralidade ou imoralidade de conduta da presidenta, cujos integrantes - mais da metade, segundo noticia a Zero Hora, edição de 6 de abril é suspeita de alguma ilegalidade ou imoralidade:
“35 dos t65 deputados que analisam pedido de afastamento de Dilma Roussef somam 153 pendências entre inquéritos, ações criminais e cíveis ou rejeição de contas. Oito são réus no STF e seis foram condenados em ao menos uma instância” (pág. 6).
Mesmo assim, eles têm moral para continuarem integrando a dita Comissão? O Presidente da Câmara dos deputados, enfim, Eduardo Cunha, poderia ser igualmente julgado isento de qualquer mácula para autorizar a instalação e o funcionamento dessa Comissão, com todos os ilícitos já apurados em relação a ele?
A ilegalidade e a imoralidade disso tudo que vem sendo apontado como grave perturbação da democracia e do Estado democrático de direito, por vozes as mais autorizadas moralmente, não são as acusações pendentes contra a presidenta, saliente-se bem, mas sim a irregularidade flagrante da forma visivelmente tendenciosa como elas estão sendo investigadas e o profundo déficit moral de quem as produz e avalia.
Um juízo mais atento aos procedimentos até agora desenvolvidos visando derrubar a presidenta da República, já autoriza algumas conclusões preocupantes. O tamanho do ego dos promotores dessa iniciativa, ressalvadas poucas exceções, perdeu a referência da vinculação obrigatória que ele tem com o principal sujeito de direito capaz de legitimá-la, ou seja, o povo todo do país.
A frequente lembrança desse sujeito nos discursos sobre as virtudes dos trabalhos da Comissão do impeachment, já não depende mais de onde parte a sua voz, para ser sumariamente julgada como hipócrita e insincera, até por quem, meses atrás, dava-lhe apoio.
Aquele furor midiático, apresentado como porta voz poderoso de uma moralidade ferida, agora permite entrever não estar tão preocupado com isso quanto colher os frutos do capital e do dinheiro interessado na queda de presidenta. Aumentar o poder da confusão reinante, pois, manter insegura e medrosa a sociedade, profetizar o caos, abre chance de os dois projetarem novas leis, reocuparem os espaços que lhe foram tomados no passado, por políticas públicas contrárias aos seus apetites usurpadores.
Nenhum outro direito, assim, como os direitos humanos, é capaz de possibilitar, com fundamentação ético-política suficiente e adequada, a defesa da vida, seja individual, seja coletiva, atualmente vítima dessa estratégia. Justamente por não serem titulados por um único partido, uma única ideologia, uma única classe social, etnia ou simpatia por essa ou aquela causa. Estão firmemente alicerçados na defesa da dignidade das/os outras/os a ser respeitada como inerente e não como atribuída por um grupo, uma religião, uma ciência, uma filosofia. Podem ser manipulados? Podem e muitas vezes são, mas a sua natureza jurídica tem provado sempre capacidade autêntica de ressurgir, exatamente na medida em que recupera o sentido de reconhecer como própria a ameaça ou a lesão sofrida pelos direitos humanos da/o outra/o.
Uma inspiração dessa relevância, verdadeira condição de cidadania, num Estado que se proclama democrático e de direito, está ausente, tanto nessa Comissão do impeachment, como na maioria dos debates atualmente disputando poder de convencimento junto a sociedade. A/o outra/o, pessoa ou população, especialmente aquela mais pobre que nem está entendendo direito a razão dessa desordem toda, não importam. Derrubar a presidenta “ainda que o mundo pereça”, como se costuma identificar a falsa justiça, é o que importa.
Esse, porém, tem sido o paradoxo próprio dos direitos humanos. Desprezá-los, desmoralizá-los, imaginar-se todo o pré-conceito e pré-texto para serem ignorados e esquecidos. na pior das hipóteses mantê-los domesticados “legal e moralmente” - como pinta acontecer no relatório da Comissão do impeachment - revela a tática imoral de quem pretende infringi-los, fingindo defende-los. Esse tipo de coisa aqueles direitos identificam muito bem, pois sua história prova que quanto mais desprezados e tornados ausentes, pelos poderes que lhes são contrários, maior o número de vítimas da injustiça gerada pela sua violação.
São elas e as/os verdadeiras/os outras/os e é na convivência e na solidariedade com elas que se pode medir, com segura precisão, de que legalidade e de que moralidade trata a Comissão do impeachment, qual a função e a quem interessa, realmente, a iniciativa de se interromper o mandato da presidenta Dilma. A nossa responsabilidade maior nesse momento, salvo melhor juízo, é a de defender aqueles dois princípios constitucionais, bem lavados (!) da conceituação e da finalidade a eles atribuída pela dita Comissão.
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A Comissão do impeachment respeita direitos humanos? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU