19 Agosto 2014
No segundo dia de visita à Coreia, o Papa Francisco falou sobre o lado negativo da próspera e altamente competitiva sociedade sul-coreana. Ele fez isso através de palavras que foram à raiz das preocupações que estão crescendo nos corações de muitos coreanos, cristãos ou não, e especialmente dos jovens.
A reportagem é de Gerard O'Connell, publicada na revista America, dos jesuítas dos EUA, 15-08-2014. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
Ele optou por fazê-lo em sua homilia em sua primeira missa pública na península coreana, celebrada diante de uma multidão de 45 mil católicos coreanos no World Cup Stadium em Daejeon, quinta maior metrópole do país, que é muitas vezes referida como o Vale do Silício da Ásia.
"Queridos irmãos e irmãs, a esperança oferecida pelo Evangelho é o antídoto contra o desespero que parece crescer como um câncer nas sociedades que são exteriormente ricas, mas muitas vezes experimentam amargura interior e vazio. A quantos dos nossos jovens não fez pagar o seu tributo um tal desespero!", disse ele.
Ele destacou a questão novamente, tanto com referência a Coreia quanto a outros prósperos países asiáticos mais tarde naquele dia, quando ele falou no santuário do primeiro coreano sacerdote-mártir em Solmoe, a cerca de 30 quilômetros de Daejeon, a 6.000 jovens de 27 países deste vasto continente. Ele apresenta o problema da seguinte maneira:
"Quantas vezes nos parece que as sementes de bem e de esperança que procuramos semear acabam sufocadas pelos cardos do egoísmo, da inimizade e da injustiça; e não só ao redor de nós, mas também nos nossos corações. Preocupa-nos o desnível crescente entre ricos e pobres nas nossas sociedades. Vemos sinais de idolatria da riqueza, do poder e do prazer, que se obtêm com custos altíssimos para a vida humana. Ao nosso lado, muitos dos nossos amigos e contemporâneos, embora rodeados de grande prosperidade material, sofrem de pobreza espiritual, solidão e silencioso desespero. Parece quase que Deus fora removido deste horizonte; é como se um deserto espiritual se estivesse propagando em todo o mundo. Este deserto atinge também os jovens, roubando-lhes a esperança e, em demasiados casos, até a própria vida".
Para entender suas palavras e, sobretudo, a sua referência ao "desespero" que está se espalhando e está roubando a esperança dos jovens e até mesmo a própria vida, é preciso entender o contexto. Cinquenta anos atrás a Coreia do Sul era um país muito pobre, mas hoje é uma sociedade organizada, altamente competitiva e próspera. É a quarta maior economia da Ásia, tem uma baixa taxa de desemprego, menos de 5% e está na 15a posição no índice de desenvolvimento do Fórum Econômico Mundial.
Mas há um lado negativo de tudo isso. Há pouca ou nenhuma rede de assistência social para os pobres, ou "relativamente pobres", como alguns aqui preferem chamá-los, e a natureza altamente competitiva da sociedade, com sua tendência fortemente materialista, coloca uma enorme pressão sobre as pessoas. Esse estresse é primeiramente experimentado na escola e parece nunca dar trégua pelo resto da vida. Isso deixa muitas pessoas infelizes e preocupadas com o seu futuro. O fracasso em alcançar as metas estabelecidas pode levar a um sentimento de fracasso e, em casos extremos, ao suicídio. Na realidade, a Coreia do Sul detém o recorde nada invejável da maior taxa de suicídio das economias desenvolvidas do mundo. O suicídio também é a causa número um de morte prematura entre as gerações mais jovens.
Alguns dizem publicamente que a sociedade coreana está em "crise". Dom Lazzaro You Heung-sik, bispo de Daejeon, usou essa palavra em seu discurso, no final da missa, agradecendo ao papa por sua visita.
Várias fontes me disseram que essa crise surgiu porque a sociedade coreana, ao longo dos últimos 50 anos, foi construída sobre a estrutura hierárquica do confucionismo, a competitividade e o individualismo do capitalismo, e nesse processo perdeu tanto o senso de responsabilidade (que era parte do confucionismo) quanto o sentido de comunidade. O resultado é que as pessoas, muitas vezes, se sentem isoladas em uma sociedade altamente competitiva, e tornam-se muito infelizes. As estatísticas sugerem que os casais jovens não têm filhos por causa desse clima opressivo, e assim a taxa de natalidade está diminuindo.
Falando na universidade jesuíta de Sogang, em Seul, em 16 de janeiro deste ano, o Padre Adolfo Nicolas, superior dos jesuítas, capturou as manchetes de jornais nacionais e, em sua palestra, fez uma pergunta fundamental: "vocêa diriam que a Coreia do Sul é hoje um país alegre; que os coreanos em geral, especialmente os nossos jovens, são pessoas felizes?".
O Papa Francisco, que fez uma visita surpresa à Sogang University em seu retorno de Solmoe, está essencialmente fazendo a mesma pergunta. Ele a fez de várias formas durante a sua visita de cinco dias. Ele tocou no assunto em seu discurso no palácio presidencial - "A Casa Azul" - quando entre outras coisas, pediu uma economia com uma face mais humana, e exortou a Coreia para se tornar a líder internacional em solidariedade.
Ele abordou a questão de uma forma mais pessoal na sua homilia no estádio de Daejeon, quando ele disse à sua audiência católica, durante uma celebração eucarística profundamente comovente, que "a liberdade cristã é algo mais do que a mera libertação do pecado; é a liberdade para um novo modo espiritual de ver as realidades terrenas. É a liberdade de amar a Deus e aos nossos irmãos e irmãs com um coração puro e viver na jubilosa esperança da vinda do Reino de Cristo".
Neste dia, a festa da Assunção de Nossa Senhora ao céu, que é comemorada aqui como Dia da Libertação (da ocupação japonesa, que terminou em 1945) Francisco pediu a Maria para ajudar os cristãos coreanos a serem fieis à liberdade que receberam em seu batismo, "para guiar os nossos esforços para transformar o mundo segundo o plano de Deus" e para permitir que a Igreja neste país "torne-se capaz de ser, de uma forma mais plena, fermento do Reino de Deus na sociedade coreana".
Ele pediu para os cristãos da Coreia, que, juntos, constituem quase 30% da população (os católicos são 10,7%), para se tornarem "uma força generosa de renovação espiritual em todas as esferas da sociedade" e instou-os para que "combatam o fascínio do materialismo que sufoca os autênticos valores espirituais e culturais e também o espírito de competição desenfreada que gera egoísmo e conflitos".
O Papa Francisco, que quer uma Igreja pobre para os pobres - como ele deixou claro também aos bispos coreanos no dia em que chegou - pediu aos cristãos da Coreia para "rejeitar modelos econômicos desumanos que criam novas formas de pobreza e marginalizam os trabalhadores, bem como a cultura da morte que desvaloriza a imagem de Deus, o Deus da vida, e viola a dignidade de cada homem, mulher e criança".
Ele encorajou a crescente população católica do país a comprometer-se a "uma renovada conversão à Palavra de Deus e um interesse apaixonado pelos pobres, os necessitados e os mais vulneráveis na sociedade".
E lembrando a assunção de Maria à glória, disse-lhes que "ela mostra que a nossa esperança é real".
Durante a sua visita, no entanto, Francisco não está apenas buscando ajudar os coreanos a sair dessa profunda crise espiritual em sua sociedade por meio de palavras, ele também está indicando um caminho a seguir pelo seu próprio testemunho.
Ele está mostrando um estilo humilde e carinhoso de liderança e uma preocupação com os pobres, que é um desafio não só para os líderes coreanos, mas também para os de outros países do continente. Dois exemplos bastarão para provar o ponto. Ele optou por se deslocar em um Kia, um carro econômico na Coreia, rejeitando totalmente a ideia de um carro de status. Os coreanos sabem que ele fez o mesmo no Rio durante a Jornada Mundial da Juventude (lá ele usou um Fiat Idea), e que, em Roma, ele usa um Ford Focus. Eles vêem aqui o seu verdadeiro compromisso com os pobres e um autêntico estilo de liderança, e os repórteres daqui me dizem que o povo coreano realmente gosta disso.
Um segundo exemplo aconteceu em 15 de agosto, quando o Papa Francisco saiu do seu caminho para atender cerca de 30 parentes dos 300 jovens (muitos deles crianças em idade escolar) que se afogaram quando a balsa Sewol afundou no mar em abril passado. Ele classificou esse acontecimento como "este grande desastre nacional" e é assim que a maioria das pessoas o veem aqui.
Eles consideram o naufrágio da balsa como um símbolo do fracasso nacional para cuidar das pessoas nesta sociedade coreana altamente próspera e competitiva. Francisco, falando em inglês, no final de uma missa em rede nacional, rezou para que "este trágico acontecimento que uniu todos os coreanos na dor" possa levar os coreanos para um novo "compromisso para trabalhar juntos em solidariedade para o bem comum".
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Na Coreia, papa apresentou o Evangelho como antídoto contra o desespero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU