"A comunidade de Marcos, tão impactada pelo exercício violento do poder, é a única que coloca essa questão duas vezes, no final segunda parte (Mc 6,1 – 9,50) que Kümmel (Introdução ao NT. Paulinas.1982, p.96) chama de “Atividade de Jesus, dentro e fora da Galiléia” (Mc 9,33-35), e na abertura da terceira parte “última subida a Jerusalém” (Mc 10,35-45). De fato, para esta comunidade a forma como exercido o poder imperial, que oprime e tiraniza (cf. Mc 10,42), seria incompatível com o projeto do Reinado de Deus apresentado por Jesus Cristo."
O subsídio é elaborado pelo grupo de biblistas da Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana – ESTEF:
- Dr. Bruno Glaab
- Me. Carlos Rodrigo Dutra
- Dr. Humberto Maiztegui
- Me. Rita de Cácia Ló
Edição: Prof. Dr. Vanildo Luiz Zugno
Primeira Leitura: Is 53, 10-11
Salmo: 32, 4-5.18-19.20.21
Segunda Leitura: Hb 4, 14-16
Evangelho: Mc 10, 35-45
Este foi o primeiro evangelho a ser sistematizado, possivelmente como consequência direta da primeira grande perseguição contra as comunidades cristãs, no contexto do incêndio de Roma, pelo Imperador Nero, entre 64 e 67 a.C. Por isso, a questão do poder, dentro e fora da Igreja, é um assunto importante para esta comunidade.
Qual a diferença entre o poder de César, capaz de incendiar sua própria capital, culpar pessoas inocentes, persegui-las e assassina-las? Marcos Barros, no livro “Evangelho e Instituição” (Paulus, 2014), aborda essa questão e afirma: “Ainda conforme os Evangelhos, Jesus teria advertido aos seus discípulos: ‘Os grandes do mundo exercem seu domínio e poder. Entre vocês não pode ser assim” (…) todos os três evangelistas repetiram isso” e depois, citando Francisco Taborda, escreve: “No Evangelho, Jesus estabelece claramente a diferenciação entre o poder como dominação e o poder como serviço (…) Katá significa de cima para baixo. Na Igreja, esse tipo de poder não pode ocorrer. Deve haver poder como serviço”. (p.91-92).
De fato, a comunidade de Marcos, tão impactada pelo exercício violento do poder, é a única que coloca essa questão duas vezes, no final segunda parte (Mc 6,1 – 9,50) que Kümmel (Introdução ao NT. Paulinas.1982, p.96) chama de “Atividade de Jesus, dentro e fora da Galiléia” (Mc 9,33-35), e na abertura da terceira parte “última subida a Jerusalém” (Mc 10,35-45). De fato, para esta comunidade a forma como exercido o poder imperial, que oprime e tiraniza (cf. Mc 10,42), seria incompatível com o projeto do Reinado de Deus apresentado por Jesus Cristo.
A narrativa apresenta duas partes bem diferenciadas:
a. O diálogo entre Jesus e os filhos de Zebedeu (vv.35-40).
b. A murmuração dos demais discípulos e o princípio do “poder do serviço” (vv. 41-45).
Na primeira parte a palavra que predomina é “batismo/batizado” que também está no centro desta parte (4 vezes, duas no v.38 e duas no v.39).
Na segunda parte predomina a palavra “servo” (diákonos) três vezes nos vv. 43,44,45.
O “batismo” a que se refere o texto, introduzindo a caminhada final de Jesus em direção à Cruz, é sua morte! Este é um diálogo pessoal, porque o compromisso batismal é pessoal e intransferível. No rito do Batismo é dito: “E todos os que, pelo batismo, forem sepultados na morte com Cristo, ressuscitem com ele para a vida” (Editora Paulus, 20122, p.13). Jesus lembra aos filhos de Zebedeu que ele mesmo foi a primeira vítima deste exercício violento, injusto, opressivo e excludente do poder. De fato, o Evangelho, escrito por uma comunidade, vítima desta forma de poder, lembra que também eles e muitas outras pessoas passarão por esse “batismo”. E, como lembra o rito batismal, toda a pessoa, ao participar do batismo, assume esse compromisso de entrega e solidariedade, em favor da vida e contra toda de exercício violento e opressivo do poder. Somos batizados no batismo daquele que foi torturado e morto pelo abuso de poder.
Na segunda parte, há um diálogo comunitário, sinodal, onde todas as pessoas afetadas por essa “ideologia do poder dominador” sentem-se excluídas. Ali Jesus chama para a diaconia, que é o serviço em favor de todas as outras pessoas. A vocação da comunidade, da igreja sinodal, é servir assim como Jesus fez, dando sua vida em favor de muitos (v.45). Jesus faz uma “análise de conjuntura” e, incluindo a experiência de perseguição vivida pela comunidade de Marcos, afirma: “Vocês sabem como quem governa as nações as oprime e tiraniza” (v.42b). Portanto, a liderança da Igreja e, consequentemente, do Projeto do Reinado de Deus, deve ser alicerçada na rejeição de qualquer teologia do domínio, e na disponibilidade de entrega diaconal de todas as pessoas que fazem parte dela e favor de muita gente, quem sabe, de todas as pessoas.
O final do quarto Cântico do Servo Sofredor (Is 53,10-12), em Segundo Isaías (40-55), reflete o exílio de um povo que vê suas lideranças e suas próprias vidas destruídas pelo poder opressor. Nesse sentido, louva este servo de Deus que, em seu caráter messiânico e escatológico, carrega e carregará todas as dores do seu povo. Assim, o serviço em Cristo, sempre é empático e solidário, próximo ao princípio de “ubuntu” (conceito africano que proclama a interdependência entre as pessoas). Assim Jesus, como proclama a Carta aos Hebreus, sendo Sumo Sacerdote “se fez igual a nós”, isto é, assumiu nossas fraquezas, isto é, o sentido essencial do serviço (Hb 4,15).