15 Agosto 2024
"No Oriente, a Mãe de Deus recebe os atributos de uma imperatriz. Ela se tornou a protetora do Império Bizantino, a imperatriz que representava Deus na Terra. Da mesma forma, no século IX, a Virgem Maria tornou-se, no Ocidente, a Rainha dos Céus, colocada no topo da hierarquia dos anjos em um sistema de representação no qual o céu e a terra estão relacionados", escreve Michel Leconte, teólogo e psicólogo clínico de formação psicanalítica, em artigo publicado por Garrigues Et Sentiers, 12-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
No outono de 1946, o padre Yves Congar redigiu um documento interno na Faculdade Dominicana de Teologia de Le Saulchoir, onde era professor, para protestar contra a possível dogmatização da Assunção de Maria. Mesmo assim, esse dogma foi definido como tal pela constituição apostólica Munificentissimus Deus [1], promulgada por Pio XII em 1950, valendo-se da infalibilidade pontifícia, conforme definido pelo Concílio Vaticano I.
Congar acreditava que nada podia impor isso, que essa dogmatização seria um obstáculo para a unificação dos cristãos, que "acentuará ainda mais o domínio mecânico do sistema jurídico desse grande corpo amorfo sob os ultrajes de uma hierarquia centralizada; depois da Assunção, será a mediação, depois a corredenção, depois outra coisa ainda"; esse dogma não está enraizado nas fontes, é "uma dedução de deduções, apoiada por um sentimento de piedade". Os mais jovens de seus colegas dominicanos concordaram com ele (Henri Féret, o biblista André-Marie Dubarle, o historiador André Duval, o dogmático Pierre-André Liégé e o patroólogo Thomas Camelot), mas cinco professores manifestaram aberta hostilidade, entre os quais o regente Thomas Philippe.
O padre Congar estava convencido de que a mariologia era a pedra de toque entre dois tipos de teologia, a sua e aquela à qual ele se opunha. Ele escreve: "Na época do caso Chenu e desde então, pensei que a questão mariológica fosse a linha divisória entre dois tipos de homens. De fato, os mariólogos de um lado e os cristãos do outro". Não poderia ser mais claro!
Para o padre Congar, a mariolatria nada mais é do que a "substituição do cristianismo por um mariano-cristianismo", que não é mais a mesma fé cristã.
Congar não explicita sua posição. No entanto, podemos supor que a sua posição teria sido ditada pelo fato de que a Assunção de Maria está ausente das escrituras e do culto cristão no primeiro século. Ela aparece na piedade no século III, no Oriente, e no século V, no Ocidente, após o Concílio de Éfeso, em 430, que definiu a Virgem Maria como Theotokos (Mãe de Deus).
Para muitos estudiosos da antiguidade, Maria, Mãe de Deus, simplesmente herdou os símbolos e as funções da deusa Cibele, Mater magna, Mãe dos deuses: "Maria veio para preencher um espaço deixado vazio pela derrota e pelo exílio das divindades femininas, especialmente Ísis e Cibele".
O helenista e historiador das religiões Philippe Borgeaud [2] enfatiza o contexto religioso comum no qual as duas figuras de Cibele e Maria estavam imersas, que explica suas semelhanças. Por exemplo, "o discurso sobre a castidade [que ocupa um lugar central no culto de Maria como no de Cibele] nasce de preocupações compartilhadas, no século II d.C., pelos ambientes cultos de todas as comunidades mediterrâneas, cristãs e não cristãs".
De fato, "o cristianismo vitorioso acaba colocando Maria, a Mãe de Deus, em um trono que surpreendentemente se assemelha ao da Mãe dos deuses, ao mesmo tempo que busca, por trás da imagem hierática da soberana celestial, as emoções de uma mãe amorosa e sofredora". O perigo de uma divinização de Maria e de uma confusão entre Maria "mãe de Deus" e Cibele, mãe dos deuses, está na raiz da polêmica no Concílio de Éfeso entre Nestório, patriarca de Constantinopla, que queria que Maria fosse chamada de Christotokos, "mãe de Cristo", em vez de Theotokos, "mãe de Deus", e Cirilo de Alexandria, defensor dessa última denominação.
No Oriente, a Mãe de Deus recebe os atributos de uma imperatriz. Ela se tornou a protetora do Império Bizantino, a imperatriz que representava Deus na Terra. Da mesma forma, no século IX, a Virgem Maria tornou-se, no Ocidente, a Rainha dos Céus, colocada no topo da hierarquia dos anjos em um sistema de representação no qual o céu e a terra estão relacionados.
Foi no século IX que a figura de Maria como mediadora se estabeleceu, especialmente no Ocidente. No século V, o culto a Maria se desenvolveu no mundo latino, principalmente entre os religiosos e o clero. Sua maternidade espiritual dá origem a inúmeras ordens, e ela é nomeada padroeira de confrarias, centros e universidades: os cistercienses se tornam "filhos de Maria". São Bernardo será até mesmo chamado de "nourrisson de Notre Dame". A comparação entre Maria e a Igreja (ambas são esposas e mães), que apareceu pela primeira vez no século IV, também será desenvolvida no século XIII. Contra os excessos do culto mariano, os protestantes convidam a reencontrar a "verdadeira Virgem dos Evangelhos".
Em seu Tratado sobre as relíquias, por exemplo, João Calvino atacou duramente a proliferação de garrafas de leite de Maria oferecidas pelos mosteiros para a veneração dos fiéis, enquanto Lutero enfatizou Maria como serva. Mais tarde, após o Concílio de Trento (1545-1563), começou um novo período de inflação de aparições. E no início do século XVII, o papado promoveu o culto de Loreto, que gradualmente marcou as fronteiras geográficas entre católicos e protestantes.
O culto mariano responde às necessidades humanas e, sem dúvida, aos desejos infantis do inconsciente. O desejo de ter uma mãe perfeita só para si, porque, sendo virgem, não há nenhum terceiro que possa perturbar ou proibir esse relacionamento exclusivo e quase fusional. A literatura do clero sobre a maternidade de Maria mostra continuamente que os autores, no caso específico, se identificam com o Filho; a virgindade da mãe, portanto, corresponde à virgindade do Filho e à virgindade dos filhos.
Como Jacques Pohier [3] denuncia, "cria-se um sistema totalitário e exclusivo de relações mãe/filho no qual a fantasia da virgindade da mãe corresponde à impossibilidade para o filho ter outro objeto sexual, o que equivale à virgindade do filho. A mãe virgem é o que pertence somente ao filho; o filho virgem é o que permanece ligado à mãe...". Essa fantasia reforça a disciplina do celibato obrigatório para os padres católicos, porque “mãe virgem, filho virgem”... Jean Sulivan costumava dizer que não se pode entender nada sobre o catolicismo se não se sabe que, no dia de sua ordenação sacerdotal, o Papa (era Pio XII) mandou fazer sua sobrepeliz com o tecido do vestido de noiva de sua mãe! Congar, preocupado pelo ecumenismo com os protestantes, nunca sucumbiu à inflação do culto mariano.
[1] "Pela autoridade de nosso Senhor Jesus Cristo, dos santos apóstolos Pedro e Paulo, e Nossa, pronunciamos, declaramos e definimos como dogma revelado por Deus que: a imaculada Mãe de Deus, sempre virgem Maria, tendo completado o curso de sua vida terrena, foi assumida na glória celestial em corpo e alma".
[2] Philippe Borgeaux, La mère des dieux, Paris, Seuil, 1996.
[3] Jacques Pohier, La paternité de Dieu, em Au nom du père, Paris, Le Cerf, 1972, p. 115.
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O culto mariano católico. Artigo de Michel Leconte - Instituto Humanitas Unisinos - IHU