A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 14º Domingo do Tempo Comum, ciclo A do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Mateus 11,25-30.
“Dou-te graças, Pai, Senhor do céu e da terra!” (Mt 11,25)
Sabemos, através dos evangelhos, que Jesus foi sempre um homem de oração, de intimidade profunda com o Pai, nos silêncios da noite, nas montanhas, nos desertos...
Nenhum evangelista nos relata o conteúdo da oração nestes momentos de solitude (solidão habitada).
No Evangelho deste domingo, Mateus “pega Jesus em flagra” e nos revela não só o modo como Jesus vivia sua relação com o Pai, mas o conteúdo desta intimidade, através de palavras carregadas de gratidão, de assombro, de admiração...; trata-se de um louvor, um canto à vida.
Estes versículos deixam transparecer um estado de exultação que não nasce de nenhum estímulo exterior concreto. Nada do que precede justifica o canto que segue. Brota, sem dúvida, de um estado permanente, cheio de agradecimento assombrado, que vai mais além de um sentimento momentâneo. É um estado de gratidão que emerge do seu coração comovido, que nem a traição e o fechamento de cidades como Corazim e Betsaida são capazes de fazer sombras.
Mateus reúne aqui vários ditos, que parecem expressar atitudes e sentimentos característicos do Mestre de Nazaré. E, nesses sentimentos, deixa transparecer sua verdade mais profunda: a gratidão, a intimidade com o Pai, a proximidade bondosa para com aqueles que estão suportando fardos desumanos, o convite a permanecer na mansidão e na humildade, o oferecimento de uma mensagem que é descanso...
A gratidão parece brotar aos borbotões das entranhas mesmas de Jesus. Isso não é estranho se temos em conta que, junto com a compaixão, a gratuidade constitui a coluna vertebral de toda sua mensagem. E é impossível experimentar gratuidade sem que surja a gratidão.
Quando tomamos consciência de que tudo é Graça, para além de todas as expressões superficiais, brota um agradecimento espontâneo, permanente e profundo.
Mas isso requer uma condição: experimentar-nos em sintonia com a corrente da Vida que procede do Pai, na qual reconhecemos nossa verdadeira identidade. De fato, ao reconhecer-nos no fluxo da Vida, em meio a tudo o que acontece, descobrimos que a gratidão é outro dos nomes de nossa identidade profunda. Na medida em que cresce a compreensão de nós mesmos, reconhecemos que, vista a partir do plano espiritual, a gratidão não é simplesmente uma ação ou qualidade – algo que podemos viver com maior ou menor intensidade -, mas outro nome de nosso ser original: “somos gratidão”, é da nossa essência mais nobre. Por isso, ao vivê-la conscientemente, experimentamos comunhão, unificação e plenitude: estamos vivendo o que somos.
A gratidão é, ao mesmo tempo, um sentimento e uma atitude admiravelmente terapêuticos, capaz de sustentar o nosso “tônus vital”. Por um lado, nos afasta do funcionamento da queixa; por outro, constitui o melhor antídoto frente ao desalento ou o desânimo.
Na medida em que a exercitamos, ela vai nos transformando interiormente e enriquecendo nosso modo de viver a relação com os outros. Em certo sentido, poder-se-ia dizer que ela expande o nosso próprio coração, favorece a alegria de viver e facilita poderosamente a convivência.
Por pouco que a observemos, poderemos advertir que a gratidão genuína não depende tanto daquilo que nos acontece, quanto do modo como recebemos aquilo que acontece. Se damos graças unicamente quando nos ocorre algo que consideramos “agradável”, não temos saído ainda de nosso egocentrismo.
A gratidão autêntica é profundamente unida com a vida, flui com ela. Nasce e se apoia na compreensão de que, para além dos juízos que nossa mente possa fazer, no fundo, tudo é graça. A gratidão está intimamente relacionada com a capacidade de “ver”. Por isso, quando sabemos ver, a gratidão aflora sem obstáculos.
Pelo contrário, se permanecemos aferrados às nossas expectativas – “a vida deve responder ao meu próprio querer, interesse e desejo” -, a frustração inevitável trará consigo a resistência e o sofrimento, o enfado, a queixa e o vitimismo.
A gratidão, como força que nos “des-egocentra”, nos faz tomar distância de nossos pequenos interesses e nos abre à compreensão profunda de que, em último termo, tudo é dom, tudo é dado, tudo é graça... Somos seres agraciados, “cheios de graça”.
Como o amor, como a alegria, a gratidão é uma arte. E, enquanto tal, precisa ser exercitada em um treinamento cotidiano, no qual, conscientemente, damos graças por tudo.
Assim compreendido, poderíamos dizer que a existência inteira de uma pessoa sábia é vivida entre duas palavras: “agradecido” e “sim”. Por tudo o que aconteceu, agradecido(a)!; diante de tudo o que virá, sim!
Ao entrarmos em sintonia com o coração “manso e humilde” de Jesus temos a oportunidade de recuperar algo que a cultura pós-moderna apagou de nossa consciência: a capacidade de admiração, a possibilidade do assombro diante de tantas realidades, simples, mas divinizadas, que nos passam desapercebidas. Custa-nos muito maravilhar-nos porque não despertamos a capacidade de assombro e de valorizar tudo o que desfrutamos, desde o cosmos até pequenos prazeres diários como tomar um café em boa companhia.
Nosso contexto social não facilita um contínuo louvor, um “canto à vida”. Basta repassar o olhar sobre diferentes realidades – político-econômico-religioso-cultural-ecológico – para nos dar conta da dificuldade objetiva de sairmos dos trilhos das lamentações e queixas. Esquecemos muitas coisas porque não as valorizamos até que nos faltem: saúde, convivência, trabalho, possibilidade de ajudar os outros, a capacidade de superação das adversidades, a própria vida em si mesma como um campo maravilhoso no qual podemos nos esforçar para deixar transparecer as melhores potencialidades de nosso ser...
“Dar graças”, “agradecer”, “louvar” ... é também uma questão de memória. Por isso o Papa Francisco fala com frequência de “memória agradecida”.
Só a “memória agradecida” está em condições de nos ajudar a entender o sentido, a profundidade e a verdade dos acontecimentos, das pessoas, da realidade que nos envolve..., pois temos de adotar determinada perspectiva e certo grau de isenção no julgamento, a fim de decifrar seu significado. Ela nos distancia estrategicamente dos acontecimentos para poder captar outro sentido, escondido neles. Eles passam a serem vistos sob nova luz para serem ressignificados.
Só a “memória redentora” mobiliza nossos melhores recursos, ativa os sentimentos oblativos e é fonte de vida espiritual pois continua alimentando ressonâncias no cotidiano.
Re-cordar (visitar de novo com o coração) os benefícios concedidos por Deus nutrem nosso presente com Sua Santidade e nos desperta para um futuro novo.
Por isso, a “memória agradecida” é o húmus natural de onde brota a gratidão.
Ao “fazer memória” dos dons e bens recebidos, brota naturalmente em nosso interior, o desejo de dar uma resposta generosa e radical ao Deus que é Fonte de tudo. E é
Ele mesmo quem, ao criar-nos gratuitamente no amor, nos ensina a “sermos gratuitos e gratos”; só a generosidade gratuita do coração de Deus é capaz de reconfigurar mentes e corações, encorajando atitudes oblativas em nós.
É a gratidão que ativa em nós o ânimo e a generosidade diante do futuro de nossa missão.
Com isso, a esperança e o entusiasmo por viver vem habitar nosso interior. Trata-se de um momento tão fortalecedor e jubiloso que estremecemos reverentes diante do que vivemos e diante do que virá.
Este é o processo vital que se torna um “estilo de vida”, pois, motiva a busca, desperta o interesse, faz olhar para frente, cria disposição para a construção de respostas novas, desperta o desejo de crescer, amplia os horizontes...
Em sintonia com o coração de Jesus, cheio(a) de gratidão, sinta-se convidado(a) a uma leitura orante de todos os sinais do Amor de Deus manifestados ao longo da história da sua vida, bem como trazer à sua memória todos os bens recebidos ao longo deste tempo. Ponderar com muito afeto tudo o que o Senhor fez por você, por meio de muitas pessoas, da sua história passada e presente; como Ele o(a) cumulou de seus próprios dons e, além disso, continua cumulando-o(a).
Marcado(a) pela experiência da oração, deixe emergir a fina percepção de que tudo é dom de Deus, tudo é Graça, tudo é dado “de graça”. Crie um clima de contínua ação de graças.