23 Agosto 2019
Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 21º Domingo do Tempo Comum, 25 de agosto (Lucas 13,22-30). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Evangelho segundo Lucas nos apresenta uma página na qual o evangelista reagrupou palavras de Jesus derivadas da tradição oral e da fonte escrita comum tanto a ele quanto a Mateus, que, por sua vez, colocou-as em contextos diferentes (cf. Mt 7,13-14.22-23; 8,11; 19,30; 20,16; 25,10-12).
Neste trecho, lemos palavras de Jesus certamente duras, ásperas, que expressam exigências radicais, severas e que parecem até ameaçadoras. Jesus parece ser aqui o profeta que admoesta, adverte, ameaça – como fazia o seu mestre João Batista – para sacudir os ouvintes e colocá-los diante das exigências do Reino, no qual se pode entrar através de um “juízo” que não olhará para os comportamentos externos, mesmo que religiosos, dos seres humanos, mas ao fato de se ter aceitado ser ou não conhecidos pelo Senhor.
Nós acolhemos essas palavras como boa notícia sobretudo porque não são a última palavra de Jesus e, ao mesmo tempo, porque tentam nos despertar do torpor espiritual, do hábito à devoção, do fato de não nos comprometermos com o seu seguimento. Escutemos, portanto, essas apotegmas de Jesus sem adocicar, como às vezes somos tentados a fazer, a sua mensagem, que nos indica o caminho da salvação.
Durante a sua subida para Jerusalém, passando por cidades e vilarejos e pregando como um profeta para aqueles que vinham escutá-lo, Jesus ouve esta pergunta ser-lhe dirigida por alguém no meio da multidão: “Senhor, é verdade que são poucos os que se salvam?”. É uma pergunta que habita os nossos corações ainda hoje: a salvação será reservada para poucos justos, ou a misericórdia de Deus abrirá as portas do céu para muitos? Em cada fiel, há perguntas candentes que podem se tornar dúvidas que atormentam, por isso essa pessoa faz essa interrogação a Jesus chamando-o de Kýrios, Senhor, portanto com uma certa fé-confiança nele.
Jesus não responde diretamente, mas proclama com clareza o que é urgente para todos aqueles que o escutam: “Lutai (agonízesthe) para entrar pela porta estreita. Porque eu vos digo que muitos tentarão entrar e não conseguirão”. O que Jesus evidencia, negando um interesse pelo número dos salvos, é a necessidade, a urgência da luta.
No nosso caminho para o Reino, há uma luta a ser travada, uma luta dura, que é “o bom combate da fé” (1Timóteo 6,12) contra um adversário, um opositor, um poderoso, que é Satanás. Nada de ilusões: o seguimento de Jesus tem um preço alto, custa esforço e compromisso, requer combater com armas espirituais, às vezes até a agonia, à luta diante da morte, como Jesus a viveu (cf. Lc 22,44). A porta estreita não quer impedir a entrada, mas revela que só quem sabe lutar, só quem sabe que a meta é o reino de Deus, poderá ultrapassá-la. Por isso, é preciso estar equipado e vigilante para chegar a tempo, antes que a pequena porta, a última chance, seja fechada. Porque, assim como em cada cidade, uma vez caída a noite, são fechadas primeiro a grande porta, depois a portinha: então, ninguém mais poderá entrar...
Jesus, portanto, adverte os ouvintes: “Do lado de fora, começareis a bater, dizendo: ‘Senhor (Kýrie), abre-nos a porta!’ Ele responderá: ‘Não sei de onde sois’”. Aqueles que permaneceram do lado de fora, porém, não desistem, mas continuam rezando e pedindo que a porta seja aberta, recordando as suas relações com o próprio Senhor, todas relações religiosas. De fato, eles dizem: “Nós comemos e bebemos diante de ti, celebrando a tua ceia: a Eucaristia! E te escutamos quando ensinaste em nossas praças!”. Aos seus olhos, essa vivência, considerada como proximidade e comunhão com o Senhor, deveria mudar a sua decisão e, portanto, induzi-lo a abrir a porta para pessoas que se consideram conhecidas por ele, que acham que podem se orgulhar de méritos devidos à pertença religiosa e ao cumprimento dos atos de culto, certamente necessários, mas não suficientes, se não forem acompanhados pela realização concreta da vontade do Senhor.
De fato, o próprio Senhor, inexorável, dirá: “Afastai-vos de mim, porque fostes operadores de injustiça! Não sei de onde sois, nunca vos conheci!”. O Senhor contesta a verdade de uma proximidade e de uma comunhão gabada por aqueles que são rejeitados, porque julga que, durante a vida, não trabalharam pela justiça, foram malfeitores, embora formalmente escutassem a pregação de Jesus e tenham sido hóspedes à sua mesa.
Naquele dia, quando à porta do Reino tivermos que escutar o juízo do Senhor sobre nós, aos seus olhos, não importarão a pertença à sua comunidade, a frequentação da sua Palavra e da Eucaristia. De fato, esses são meios para fazer o bem, a justiça e chegar à caridade: mas se o bem e a justiça não forem realizados na vida, no comportamento, nas relações entre nós e os outros, então tais meios serão destacados por Jesus como um engano que nós vivemos...
Essa é uma advertência que nós, cristãos, que nos dizemos discípulos e discípulas de Jesus, não levamos a sério. Infelizmente, os nossos gestos litúrgicos, a pertença à paróquia, a frequentação dos pastores colocados pelo Senhor na sua igreja, muitas vezes podem se tornar seguranças falsas, que quase nos impedem de nos perguntar se cotidianamente somos operadores do bem, ou seja, se temos um comportamento que alimenta o bem comum, ou operadores do mal, com palavras que dividem e caluniam, com sentimentos de inimizade e de orgulho, com comportamento omissos, que não fazem o bem e contradizem a caridade.
Talvez não cometamos o mal semeando violência, mas basta pensarmos no nosso comportamento omisso, em quando não vemos o outro e não nos comprometemos com quem está necessitado, faminto, sedento, imigrante, nu, doente, na prisão (cf. Mt 25,31-46)... Cremos que estamos na intimidade com o Senhor, assíduos na sua presença, ouvintes da sua Palavra, nutridos pelos sacramentos, mas nos perguntemos se isso corresponde àquilo que o Senhor pede como compromisso, urgência, amor pelos outros.
E, então, acontecerá também que justamente aqueles “dentro” (éso), pertencentes à comunidade cristã, à Igreja, rejeitados à porta do Reino, verão aqueles que estavam “fora” (éxo) e eram distantes, os não pertencentes à comunidade de Jesus, sentados à mesa do banquete do Reino com Abraão, Isaac, Jacó e todos os profetas. Santo Agostinho também dirá: “Naquele dia, muitos que se consideravam dentro se descobrirão fora, enquanto muitos que pensavam que estavam fora se encontrarão dentro”. Inversão da situação e das prioridades: os primeiros convidados, os primeiros destinatários da boa notícia parecerão os últimos, até mesmo estarão fora do Reino, enquanto precisamente aqueles que não se supunham próximos de Deus encontrarão um lugar no banquete do Reino.
Para mim e para vocês, leitores, recordo que este evangelho pede a cada um de nós um discernimento: eu sou apenas um homem religioso, que se diz cristão, que reza, que participa da Eucaristia, mas na realidade eu tenho uma vida não conforme com a vontade do Senhor Jesus, ou sou alguém que, indo à oração, nutrindo-me da Palavra e da Eucaristia, como um mendigo que tira forças delas, tenta todos os dias ser um discípulo do Senhor, tenta ser coerente entre aquilo que pensa, diz e vive cotidianamente, invocando como um mendigo a misericórdia do Senhor?
Essas palavras de Jesus, portanto, nos chamam à conversão, à consciência dos nossos pecados e a não nos sentirmos garantidos por pertenças ou gestos religiosos: se recebemos dons de Deus, estes não são privilégios, mas sim responsabilidades. Por isso, “os primeiros”, se não forem coerentes com a boa notícia do Evangelho, tornam-se os últimos e, entre os últimos, alguns se tornam primeiros, porque procuraram acima de tudo entrar no Reino pela porta que é Cristo (cf. Jo 10,7.9), porta sempre aberta, desde a sua vinda entre nós até “hoje” (Hb 3,13), e sempre “porta de misericórdia”, “porta que dá graça”, mesmo que a um alto preço.
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''Lutem para entrar pela porta estreita'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU