23 Agosto 2019
Nas entrelinhas dos textos bíblicos, podemos ver se desenhar uma dupla linha de convicção: na primeira, Deus escolhe um povo de testemunhas (Israel e a Igreja); na segunda, este povo tem por missão fazer ser conhecido o Deus que o escolheu (o Deus revelado aos patriarcas e a Moisés, o Deus de Jesus Cristo). Mas, quantos serão “salvos”? Seremos nós? Serão eles? ... os membros do Reino? Questão angustiante e de muitas variantes... como as propostas pelas diversas correntes religiosas.
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando o evangelho do 21º Domingo do Tempo Comum - Ciclo C (17 de julho de 2019). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
1ª leitura: O Senhor virá «para reunir todos os povos e línguas» (Isaías 66,18-21)
Salmo: Sl. 116(117) - R/ Proclamai o evangelho a toda criatura!
2ª leitura: «O Senhor corrige a quem ele ama» (Hebreus 12,5-7.11-13)
Evangelho: O chamado universal à salvação e a porta estreita (Lucas 13,22-30)
Podemos ler nas Escrituras duas linhas que correm em paralelo: às vezes se diz, ou se deixa entender, que toda a humanidade será «salva»; às vezes, fala-se de um julgamento que irá separar «os bons e os maus». Segundo a primeira linha, lemos que Deus quer que todos os homens sejam salvos, isto é, que sejam arrancados da morte e do nada, para viverem da vida de Deus. Nesta direção, convém acrescentar a Parábola do filho pródigo, que, por sua própria deliberação, acabou voltando para seu pai, ainda que por más razões.
A ovelha perdida, ao contrário, não toma a iniciativa de voltar; o pastor é quem se põe na estrada, a fim de procurá-la. É tão passiva quanto a dracma perdida que, assim que encontrada, tanta alegria traz para a mulher, que aqui é uma figura de Deus. Jesus mesmo, na cruz, pediu inclusive por aqueles que o estavam crucificando… Já conforme a segunda linha, contentemo-nos com remeter a Mateus 25, que fala “como o pastor separa as ovelhas dos bodes”. Para conciliar estas duas linhas, lembremos a conclusão da história do moço rico e notável (Lucas 18 e Mateus 19). “É mais fácil o camelo entrar pelo buraco da agulha do que o rico entrar no Reino dos céus.” E Jesus acrescenta que o que ao homem é impossível, é possível a Deus. E sendo assim, por consequência, Deus pode fazer enfim entrar no Reino quem sequer o mereça.
Mas, então, o que significa o tema do julgamento? Da minha parte, penso que Deus vem separar o que em cada um de nós é bom e é mau. O julgamento nos liberta do que em nós não é imagem de Deus, do que nos impede de existir de verdade. Haverá então poucos que serão «salvos»?
A resposta de Jesus pode nos surpreender. Em primeiro lugar, responde com um plural: «Fazei todo esforço possível para entrar». Quando o que se esperava seria uma resposta pessoal, dirigida ao homem que havia posto a questão; tipo, «Esforça-te para entrar». Ou, dito de outra forma, não te ocupes com isto; o que importa para ti é que entres pela porta estreita…
Mas, ao responder no plural, Jesus está dizendo algo que diz respeito a todo o mundo. O que, então, está dizendo? Ora, a questão que lhe foi posta está na voz passiva: ser salvo é receber. Jesus inverte a questão: o «ser salvo» torna-se «salva-te», como se a salvação não dependesse de Deus, mas sim de quem procura ou não a porta da vida.
Devemos compreender que a salvação é dada para todo o mundo. Deus não exclui ninguém dela, mas cabe a cada um de nós aceitá-la ou não. «Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo» (Apocalipse 3,20). A nossa passagem para Deus é em resposta à Sua passagem por nós, em Cristo. Cabe a cada um abrir a porta. Sem a aquiescência muitas vezes inconsciente da nossa liberdade, Deus nada pode fazer por nós.
Mas como encontrar esta porta estreita? Em João 10, vamos encontrar amplamente desenvolvido o tema da porta. A partir do versículo 7, Jesus revela ser ele mesmo a porta, e que os que «entrarem por ele» (na vida de Deus) serão salvos. Mas o que significa «passar através dele»?
No capítulo 9 de Lucas, lemos que Jesus “tomou resolutamente o caminho de Jerusalém”. «Resolutamente», porque sabia o que o esperava na cidade «que mata os profetas». O evangelista lembra-nos com regularidade este destino, conferindo a tudo o que se passa e o que é dito nestas páginas uma coloração pascal. A crucifixão, eis aí a porta estreita que Cristo atravessou primeiro, em nome de todos.
De fato, ele mesmo crucificado é esta porta estreita. Tendo superado antes de tudo o reflexo de rejeição que nos visita, quando descobrimos que a verdade de Deus passa por aí. Loucura para os pagãos e escândalo para os judeus, dirá Paulo. «Não compreendo isto», muitas vezes se ouve dizer. Mas, primeiro, não se trata de compreender e sim de olhar quem temos trespassado. Não virar os olhos, mas tomar consciência. E este olhar já é passar pela porta, até que nós mesmos tomemos o caminho que, por nossas próprias falhas e perversidades, lhe tenhamos imposto.
Esta porta de fato é estreita, mas é a única. Somente nos tornando semelhantes a Ele é que podemos nos tornar «imagens do Deus invisível» e, assim, alcançarmos a Vida. Não basta tê-lo ouvido «ensinar em nossas praças» - traduzindo: não basta termos ouvido todos os domingos a leitura do evangelho - para sermos «reconhecidos». É preciso também estar com ele quando oferece a sua vida para nos fazer viver.
Este dom de nós mesmos não passa forçosamente por sofrer alguma violência. Só aceitar que os outros sejam diferentes de nós, a começar pelos nossos próximos, e amá-los assim como são, já nos faz passar pela porta estreita. Deve haver uma morte para si mesmo e que nos faça entrar na Vida de Deus.
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A multidão dos salvos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU