''Não tenha medo, pequeno rebanho''

Mais Lidos

  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS
  • Dilexi Te: a crise da autorreferencialidade da Igreja e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung

    LER MAIS
  • Às leitoras e aos leitores

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

09 Agosto 2019

Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 19º Domingo do Tempo Comum, 11 de agosto (Lucas 12,32-48). A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Continua o caminho de Jesus e dos discípulos rumo a Jerusalém, onde ocorrerá o seu êxodo (cf. Lc 9,31), a sua morte. Jesus sabe o que o aguarda, porque a hostilidade da hierarquia religiosa judaica já se tornou obsessiva, enquanto a simpatia das pessoas vai diminuindo cada dia mais, porque não parece se realizar aquele Messias que eles pretendiam encontrar em Jesus. Ele parece cada vez mais decepcionante para a multidão, e o perfil do fracasso de uma missão e de uma vida se torna cada vez mais evidente.

É nesse contexto que Jesus pronuncia algumas palavras que, depois de dois milênios, são escutadas pelos fiéis com comoção profunda e convicção perseverante: “Não tenhais medo, pequenino rebanho, pois foi do agrado do Pai dar a vós o Reino”. Jesus olha para a pequena realidade da sua comunidade, um “barraco” mais do que uma construção, cerca de 20 homens e algumas mulheres que o seguem, muitas vezes perplexos e ansiosos, e se dirige a eles com uma linguagem afetiva e fraterna: “Não tenha medo, pequena realidade, que parece inadequada para realizar uma missão que diz respeito a todo o Israel, a toda a humanidade. Não tenha medo, minoria fraca e visivelmente frágil, sem apoios no mundo. Não tenha medo, realidade pouco visível, inerme, sem influência e impotente no mundo. Não tenha medo, comunidade que merece reprimendas e precisa continuamente de repreensões, de correções”.

Por quê? Porque, mesmo assim, o Pai, Deus, no seu amor, quer dar a essa comunidade o Reino, fazê-la participar daquela vida que é a dele, a vida salva, sensata, na sua mão, da qual ninguém jamais poderá arrancá-la.

A imagem do pequenino rebanho é distante de nós e provavelmente também pouco eloquente, mas o que é decisivo nela é o caráter da pequenez. Jesus vê atrás de si uma pequena realidade, enquanto é grande a realidade religiosa dos judeus, é grandíssima a realidade do mundo em que essa pequena comunidade apareceu e cresceu pouco. Porém, que ela não tema, não se deixe atacar pela ansiedade e pelo medo, porque, naquela situação tão precária, o decisivo é acolher a promessa de Jesus de participar do Reino de Deus.

É claro, para acolher tais palavras de Jesus e, consequentemente, não temer, mas sim se alegrar, é preciso ser realmente o pequeno rebanho que o segue, envolvido na sua história até o fracasso e a morte. Não basta se dizer cristão, mas, para sê-lo verdadeiramente, é preciso ser “pobres”, pecadores que desejam conversão, homens e mulheres que não confiam em si mesmos, mas sabem pôr a fé e a esperança em Jesus e no seu Reino vindouro. Não tomemos como certo que essas palavras têm a nós como destinatários, porque nos dizemos cristãos! Assim como se dizer filhos de Abraão podia ser um engano (cf. Lc 3,8; Mt 3,9), assim também se dizer discípulos de Jesus pode coincidir simplesmente com a vaidade de uma pertença, com o fato de se dar uma identidade que cubra o vazio pessoal.

Compreendemos, então, a afirmação seguinte de Jesus: “Vendei vossos bens e dai esmola. Fazei bolsas que não se estraguem, um tesouro no céu que não se acabe; ali o ladrão não chega nem a traça corrói. Porque onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”. Para ter essa alegria do dom do Reino, é preciso pouco, pouquíssimo: separar-se dos bens, compartilhando-os!

Eu confesso que essa palavra me impressiona, única condição posta para ser um pequeno rebanho: despojar-se e compartilhar. Despojar-se daquilo que se tem – bens, dinheiro, terra – não por desprezo, não em nome de um cinismo filosófico, mas simplesmente para compartilhar com aqueles que não têm e não possuem.

Cada um tem riquezas: dinheiros, posses, mas também força, tempo disponível, dons pessoais. Basta compartilhar isso com os outros, que são todos irmãos e irmãs. Só assim é que um discípulo, uma discípula, torna-se realmente tal, deixa de ter dois senhores (cf. Lc 16,13; Mt 6,24), deixa de se colocar no centro da vida e não é mais tentado a ser alienado pelo ter, pela posse, não é mais tentado a pôr a confiança e a esperança nas riquezas.

Sim, repito, é tão simples, mas requer uma conversão que nunca ocorreu de uma vez por todas, mas que deve ser renovada dia após dia no seguimento de Jesus, porque os bens, o dinheiro, quase sempre nos acompanham e crescem. Penso muitas vezes na nossa vida de monges: chegamos ao mosteiro respondendo à vocação e não temos nada, somos realmente pobres, porque, se tínhamos bens ou dinheiro, nós os deixamos; mas, depois, pouco a pouco, participamos dos bens e do dinheiro sem os quais uma comunidade não pode viver e, infelizmente, deixamo-los crescer e acabamos justificando o acúmulo, até confiar neles. Então – é preciso dizer – não somos mais o pequenino rebanho de Jesus!

Por isso, Jesus pede uma grande vigilância e uma profunda inteligência na vida cristã. Pede para permanecer na atitude e na postura dos servos, que, para servir, cingiam-se com a veste; pede para manter as lâmpadas acesas, para permanecer à espera da vinda do Senhor, para escutar aquele que bate na porta e poder lhe abrir quando chegar. Servos à espera do Senhor que vem: eis quem são os cristãos, para os quais ressoa a bem-aventurança: “Felizes os empregados que o senhor encontrar acordados quando chegar”, isto é, bem-aventurado aquele que, tendo o Senhor como tesouro, estará à espera de encontrá-lo e o encontrará na sua vinda, a qualquer hora que chegue, mesmo que tenha que tardar.

Jesus acrescenta um brevíssimo ditado, performativo para os discípulos, seguido de uma exortação: “Se o dono da casa soubesse a hora em que o ladrão iria chegar não deixaria que arrombasse a sua casa. Vós também ficai preparados! Porque o Filho do Homem vai chegar na hora em que menos o esperardes”. Vigiar, não dormir, não ser vítima do sonambulismo e da confusão espiritual, manter os olhos abertos não é fácil: o cansaço do dia, o trabalho, os muitos serviços feitos, a duração da vida cristã, a monotonia do cotidiano são todos atentados à vigilância, que também significa consciência e responsabilidade. “O espírito está pronto, mas a carne é fraca” (Mc 14,38; Mt 26,41), diz Jesus em outro lugar a três discípulos que não conseguem vigiar com ele na noite da paixão.

E, se é verdade que todos os discípulos, os servos, devem vigiar, há alguém que é mais responsável por essa atenção do que os outros. No pequenino rebanho, todos são irmãos e irmãs, todos receberam a tarefa de vigiar, mas nem todos têm a mesma responsabilidade. É por isso que, solicitado por Pedro, Jesus diz claramente que, na comunidade, há uma distinção entre os simples discípulos e os responsáveis, que não devem se separar, mas, ao contrário, realizar mais a fraternidade e a igualdade dos filhos de Deus.

Há alguém que, na comunidade, tem uma tarefa precisa, a do oikonómos, da pessoa encarregada pela casa, chamada a realizar o seu serviço dando de comer aos seus irmãos e irmãs, dando o alimento da palavra e da sabedoria de Deus, “ministro” porque dá a cada um a “minestra” [sopa]: esse é o sustento necessário, que faz viver, do qual o oikonómos é responsável. Cabe a ele o cuidado espiritual e material dos irmãos, e ele deve desempenhar o serviço de servo confiável (pistós) e inteligente, sábio (phrónimos).

Mas, se esse servo se coloca no centro da vida comunitária; se só afirma a si mesmo e não faz os outros crescerem; se pensa em levar a “sua vida”, sem uma partilha com seus irmãos e as irmãs; se organiza o consenso em torno de si mesmo, porque tem no coração os sentimentos do tirano, para o qual os outros nada mais são do que instrumentos do seu poder e sucesso; se não sabe mostrar misericórdia humanitária nas relações comunitárias; e se, alimentado pelo narcisismo, pensa que é “irrepreensível” e só fustiga os defeitos dos outros, então...

Nós acrescentamos mais nada, basta ler o trecho do Evangelho até o fim. Então, o Senhor que vem se separará daquele servo e o colocará entre as pessoas não confiáveis... Portanto, atenção: de quem é mais dotado de dons, é mais inteligente, tem mais responsabilidades na comunidade do Senhor, mais será exigido! Porque o juízo de Deus, que se manifestará quando estivermos diante dele depois da nossa morte, dependerá não apenas daquilo que tivermos feito, mas também do grau de consciência e de responsabilidade que tivemos e do uso dos dons de que fomos dotados.

Todos os cristãos, mas acima de tudo os seus guias, sempre devem manter o olhar fixo no horizonte escatológico: o Senhor é Aquele que vem, portanto é preciso estar vigilante e ser capaz de esperá-lo!