07 Dezembro 2018
“Esta é a voz daquele que grita no deserto” (Lc 3,4).
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, sacerdote jesuíta, comentando o evangelho do 2° Domingo do Tempo do Advento - Ciclo C (09/12/2018) que corresponde ao texto bíblico de Lucas 3,1-6.
Em um mundo no qual há tanto ruído não é fácil prestar atenção às vozes carregadas de vida e que movem à vida. Talvez porque entre tanto palavreado crônico a melhor solução é desconectar-nos, ou por preguiça, ou por impotência, ou pela tentação de querer falar, sem parar. Quem sabe, o excesso de problemas, inquietações, projetos e ideias confusas que se movem por dentro, petrificam nossa própria interioridade. Ou ainda, porque no mundo há tantos discursos vazios, violentos e preconceituosos que, ao nos causarem asco, alimentam em nós uma inércia ou uma atitude cética.
Diante dessa realidade, o tempo do Advento nos apresenta como referência e estímulo a voz de João Batista.
Ele não quis renunciar sua voz, apesar das incompreensões e das resistências; sua voz se converteu no apelo a modificar a ordem das prioridades, na voz das minorias, na voz que movia a assumir um outro estilo de vida, na voz que ajudava a descobrir que a pessoa está acima de tudo, na voz que sempre deve estar a favor da vida.
Essa foi a missão de João: ele aparece no deserto não como um sacerdote que convida ao culto, mas como um profeta que proclama a mudança, a conversão, a abertura à novidade d’Aquele que está chegando. É uma voz que clama, mas João é muito mais que uma palavra; João é toda uma vida que se faz palavra. Ou melhor, é a palavra feita vida, revestida de vida. Nos profetas fala a voz mas, sobretudo, fala a vida.
No Advento, a voz de João, que grita no deserto, ressoa em nosso próprio interior, destravando nossa voz, tantas vezes silenciada por uma cultura que impõe sua voz interesseira.
Cada um de nós tem, todo dia, a oportunidade de fazer escutar a própria voz. É necessário levantar nossa voz para despertar e ver as coisas a partir de outro ponto de vista, para transgredir esses discursos de morte e preconceito que o contexto, no qual vivemos, quer nos transmitir e que tanto nos desumaniza.
É necessário tomar consciência que, se renunciamos nossa voz, renunciamos defender nossa maneira original de nos fazer presentes numa realidade de exclusão e de propor outra maneira de viver, mais livre, aberta e expansiva.
Por tudo isso, como João Batista, expressemos nossa voz sem complexos, mas com o máximo respeito, cheia de ternura e não entrar no barco das vozes furiosas, carregadas de linchamento, de revanches e incompreensões para com quem pensa diferente, crê diferente, ama diferente.
Por tudo isso, não renunciemos nossa voz, não renunciemos enriquecer nosso entorno com nossa voz original, porque vozes inspiradoras, em momentos especiais, farão a diferença.
Em segundo lugar, “ouvir a voz de João” nos sensibiliza a escutar outras vozes, carregadas de vida e mobilizadoras de vida. Os personagens do Advento nos tornam sensíveis às verdadeiras vozes que tem a magia de nos tocar a fundo e despertar o impulso para entrar em sintonia com elas.
O fato é que, às vezes, nos acomodamos a viver em bolhas, onde, raras vezes, entram vozes que nos comovem de verdade. E, no entanto, debaixo da parafernália de gritos, ruídos, anúncios, apelos publicitários e frases feitas de mau gosto, continua brotando vozes cheias de verdade, vozes que vale a pena serem escutadas.
Estamos rodeados de diferentes vozes; quem sabe, por detrás de muitos gestos, palavras, gritos... não estarão vozes que pedem ajuda, ou que simplesmente expressam dor, insegurança, medo, clamando por uma presença acolhedora. É claro que não vamos estar o dia todo falando com o coração na mão e os olhos úmidos de lágrimas, desnudando nossa intimidade. É possível que na vida cotidiana continuaremos falando com nossa gente das coisas mais cotidianas. O verdadeiro desafio é aprender a escutar, por debaixo de diferentes vozes, a palavra profunda, o canto tranquilo ou o pranto escondido.
Há outros lamentos, não tão escondidos, que deixamos de escutar, talvez porque se chegássemos a ouvi-los, nos deixariam profundamente impactados, pois, poderiam provocar-nos uma sensação de impotência e de fracasso enorme. São vozes que não têm nada que decifrar, claras, rotundas, honestas. São as vozes dos excluídos de todo o tipo: pobres, famintos, vítimas de preconceito, aqueles homens e mulheres que sofrem a intolerância e a indiferença.
Às vezes, essas vozes nos conduzem a um dilema: para quê escutá-las, se não podemos fazer nada? Para tornar a vida mais amarga? Para sentir uma culpa que não é nossa? Aqui não se trata de fazer discursos voluntaristas ou demagógicos acerca do mal no mundo. O verdadeiro desafio é ampliar dentro de nós um espaço no qual outras vozes possam ressoar, recordando-nos que ainda há muito por fazer para continuar construindo o Reino de Deus, onde todo ser humano possa viver com sua dignidade assegurada; para fazer-nos conscientes do quanto nossa vida tem de benção, e, ao mesmo tempo, o quanto somos responsáveis por todo bem recebido...
Na vida cristã entende-se o viver como uma arte que é preciso praticar. A vida não é um azar, nem um destino, nem um enigma a resolver. A fraternidade evangélica é uma escola da vida e interação, onde cada pessoa inter-atua com os demais e encontra liberdade para expressar sua voz e acolher a voz do outro.
Frente ao diferente, o tempo do Advento contém muitas possibilidades: pode gerar variadas combinações e sinergias. Advento é como um calidoscópio que combina uma infinidade de vozes e cores. As vozes dos diferentes encontram seu espaço, se identificam e potenciam a relação mútua. Todos, tendo um só coração e uma só voz, alimentam a unidade na diversidade.
A condição para descobri-las é “levantar os olhos”, ir mais além do imediato que nos cega e nos prende em redes de desejos insatisfeitos, em obsessões por conservar modos de vida que consideramos definitivos, em temores que embotam nosso coração impedindo o fluir da vida.
“Preparai o caminho do Senhor”. Como abrir caminhos para que os homens e mulheres de nosso tempo possam encontrar-se com Aquele que vem? Deus chegará por outros caminhos, totalmente diferentes dos caminhos que estamos construindo habitualmente. Deus não pode vir ao nosso mundo de hoje enquanto não construirmos caminhos mais planos de acolhida, solidariedade e partilha. Deus não pode vir nem entrar pelos caminhos diante dos quais foram construídos muros e valas, impedindo o acesso dos excluídos e perseguidos. Deus não pode entrar na história através de caminhos que desembocam nos corações carregados de ódio, de indiferença, de fanatismo e de preconceito para com tantas vítimas de poderes que desumanizam. Os personagens políticos e religiosos nomeados (Pilatos, Herodes, Anás, Caifás...), apesar de seus poderes e intrigas, não conseguiram extinguir a esperança que a voz profética de João convocava, a partir da periferia. Advento, é tempo de resistência.
Pense em tantas vozes rompidas que às vezes ficam silenciadas pelo contexto social onde você vive. Peça a Deus que lhe ajude a ouvir e não perder nunca a capacidade de comover-se diante das:
- vozes daqueles que estão privados do mais necessário;
- vozes que são caladas por todo tipo de discriminação;
- vozes daqueles que são vítimas de intolerância e preconceito;
...
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Uma voz que protesta e subverte - Instituto Humanitas Unisinos - IHU