Abadia cisterciense de San Galgano, na comuna de Chiusdino, província de Siena, na Itália, cenário de "Nostalgia", de Tarkovski
"'Talvez estejamos aqui para enriquecer-nos espiritualmente. Se nossa vida tende a este enriquecimento espiritual, então, a arte é um meio para chegar ali. Isto, claro, de acordo com minha definição de vida. A arte deve ajudar o homem nesse processo', disse o cineasta russo, Andrei Tarkovski. É exatamente isto que ele fez em Nostalgia (1983), que narra a viagem do russo Andrei Gorchakov à Itália, na busca de novas respostas para as perguntas que ocupam seus pensamentos".
O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.
"A espiritualidade é a atitude básica, prática ou existencial própria do ser humano, é uma conformação atual e habitual de sua vida a partir de sua visão e de sua decisão objetiva e última." A declaração do teólogo catalão Francesc Torralba, em seu livro Inteligência espiritual (Vozes, 2013), baseada nas reflexões do teólogo suíço e sacerdote católico Hans Urs von Balthasar, é um convite para que o leitor se defronte, num primeiro momento, com esta inteligência inerente ao ser humano e, no transcurso da busca pelo sentido da sua própria vida, possa, posteriormente, fazer suas escolhas relativas à fé. A inteligência espiritual, como ele explica, "não deve ser confundida ou identificada sem mais com a consciência religiosa", mas "a primeira é a condição de possibilidade da segunda".
"Um pensador refinado", como se referiu a ele o cardeal Gianfranco Ravasi, presidente emérito do Pontifício Conselho para a Cultura no Vaticano, Torralba articula inúmeros problemas filosóficos, antropológicos e existenciais que conduzem o leitor à percepção da indispensabilidade de cultivar a vida espiritual, assim como as demais inteligências que podem ser desenvolvidas no ser humano em sua "unidade multidimensional".
Inteligência espiritual, livro do teólogo Francesc Torralba (Foto: Reprodução)
O exercício e o cultivo desta inteligência são observados, ao longo dos séculos, não só no interior da própria Igreja, na vida dos místicos cristãos, como na dos adeptos das demais religiões monoteístas ou politeístas e na própria cultura dos povos, mas também na vida de artistas que, através de suas produções e reflexões, pretenderam comunicar aos demais a sua própria busca existencial e espiritual. Os exemplos são variados e o caminho e os resultados a que cada um chegou são múltiplos.
O poeta e cineasta russo, Andrei Tarkovski (1932-1986), que teve como objetivo desenvolver os episódios de seus filmes à luz da sua própria experiência, ao ser questionado sobre uma das questões que circundou a vida de inúmeros artistas, escritores e filósofos, "O que é a arte?", disse que, para respondê-la, antes é preciso enfrentar uma questão anterior, a saber: "Qual é o significado da vida do homem na Terra?" Sua hipótese é de que "talvez estejamos aqui para enriquecer-nos espiritualmente. Se nossa vida tende a este enriquecimento espiritual, então, a arte é um meio para chegar ali. Isto, claro, de acordo com minha definição de vida. A arte deve ajudar o homem nesse processo".
É exatamente isto que Tarkovski fez em Nostalgia (1983), que narra a viagem do russo Andrei Gorchakov à Itália, na busca de novas respostas para as perguntas que ocupam seus pensamentos. Enquanto sua companheira de viagem, a atriz Eugenia, admira-se com as paisagens italianas e as compara a "uma pintura maravilhosa", que as fizeram chorar a primeira vez que as viu, Andrei estava farto das belezas naturais, conforme reage ao deslumbramento de Eugenia pela vista: "Estou cansado de ver as suas belezas. Enjoam-me. Não desejo mais nada que seja só para mim. Já é o suficiente".
Foi no diálogo e na aproximação com o "louco" Domenico, que havia se trancado em casa com a família durante sete anos, atordoado pelo medo, temendo o fim do mundo e o mal – o qual foi motivo de chacota e incompreensão da comunidade vizinha –, que ele aprendeu que "é necessário atravessar a água com a vela acesa", "agora", a cada instante, mesmo que os outros gritem "você é louco".
No pacto selado para ajudar o "louco" a atravessar a piscina com a vela acesa, Andrei faz sua própria travessia. Na tentativa de ir de uma margem à outra, constata por si próprio como o caminho é árduo e cansativo, que a chama se apaga por causa dos ventos vindos de várias direções e que, por vezes, ao invés de ir em frente – ou para conseguir ir em frente –, é preciso retornar ao início do caminho, dar vários passos atrás para dar passos à frente, acender a vela novamente e retomar a jornada, cuidando para que a própria chama não se apague. Como a experiência mostra, em algum ou em vários momentos, ela vai ser apagada, mas, com sua travessia, Andrei também ensina que durante o transcurso da vida é preciso, ao mesmo tempo, olhar para os lados e estar com os olhos fixos nela para mantê-la acesa.
Como nos exorta o Papa Francisco nesta Quaresma, que na nossa travessia possamos invocar e nos deixarmos conduzir pelo Espírito Santo: "Se a Igreja não rezar, não invocar o Espírito, fecha-se em si mesma, em debates estéreis e extenuantes, em polarizações desgastantes, enquanto a chama da missão se extingue. É muito triste ver a Igreja como se fosse um parlamento, somente. A Igreja é outra coisa. A Igreja é a comunidade de homens e mulheres que creem e anunciam Jesus Cristo movidos pelo Espírito Santo e não pelas próprias razões. Sim, se usa a razão, mas vem o Espírito a iluminá-la e a movê-la."