19 Novembro 2018
Os bispos católicos nos Estados Unidos começaram a ceder sua autoridade doutrinária a grupos coadjuvantes há décadas. Agora que as consequências vieram com tudo, o Papa finalmente interveio.
A reportagem é de Robert Mickens, publicada por La Croix International, 16-11-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
A credibilidade moral dos bispos católicos dos Estados Unidos está em frangalhos. Até mesmo os líderes das quase 200 dioceses dos EUA admitiram.
Mas não pense que essa falta de confiança aconteceu de repente.
Certamente, as revelações do início do ano sobre o comportamento sexual imoral do arcebispo Theodore McCarrick e a publicação de um relatório da Suprema Corte das décadas de acobertamento de abusos em várias dioceses da Pensilvânia pioraram a confiança dos católicos nos líderes pastorais.
Mas a crise de credibilidade episcopal dos Estados Unidos está ligada a algo mais profundo e ainda pior do que a forma intermitente e por vezes chocante com que os bispos, como grupo e como indivíduos, reagiram aos casos de abuso sexual do clero. A gênese dessa quebra de confiança entre os católicos e os bispos dos EUA tem pelo menos três décadas.
Vamos refrescar a memória coletiva, que se torna tão curta em tempos de rápidas comunicações digitais em que até mesmo a história recente é deixada de lado ou é esquecida numa mera sucessão de tweets.
A história começa em 1981, quando os bispos se comprometeram de forma confusa e muito cara a entrar no que já havia se tornado um período de rápida expansão das telecomunicações por cabo e via satélite.
A conferência episcopal, na época ainda uma organização em duas vertentes - Conferência Nacional dos Bispos Católicos e Conferência Católica dos EUA (NCCB-USCC) configurar algo chamado CTNA ou Catholic Telecommunications Network of America, a rede de telecomunicações católica dos Estados Unidos.
Mas na mesma época uma freira do Alabama chamada Madre Angélica deu início ao canal televisivo Eternal World Television Network (EWTN). Mas o CTNA já estava condenado desde seu início: com pouco planejamento e sem uma visão clara, teve uma resposta pouco animadora por muitos bispos e — como quase todos concordavam — conteúdos "amadores".
Catorze anos e 14 milhões de dólares depois, o órgão nacional dos bispos dos EUA (já chamado Conferência dos Bispos Católicos dos EUA ou USCCB) desistiu da empresa de telecomunicações em junho de 1995 numa reunião em Chicago.
"Há grandes chances de os bispos encerrarem o projeto do CTNA", disse um deles, pouco antes da votação em 1995.
"A presença da Madre Angélica na EWTN é a única presença católica nacional. Espero que a Conferência dos Bispos coopere mais com ela na área de televisão...", explicou o bispo.
Era Sean O'Malley, aos 61 anos, líder da diocese de Fall River, em Massachusetts. Foi a segunda de quatro dioceses que ele liderou, sendo as três últimas focos da crise de abusos sexuais do clero.
O’Malley — hoje cardeal-arcebispo de Boston, membro do Conselho dos Cardeais que tem a confiança do Papa e presidente da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores — não devia saber o desastre ainda maior que o resultado da decisão dos bispos de abdicar do campo da comunicação católica para a ETWN poderia causar.
Ele e os outros membros da Conferência dos Bispos provavelmente acreditavam que conseguiriam trabalhar em conjunto e influenciar o tom, o conteúdo e a direção da rede de Madre Angélica.
Mas isso nunca aconteceu.
Ficou claro que foi o primeiro passo para perderem autoridade moral e doutrinal para uma freira sarcástica e mordaz que se tornou um cão de guarda da ortodoxia e costumava criticar os líderes da Igreja que afirmava publicamente não serem muito católicos.
Para ser muito franco, muitos bispos — especialmente no início — ficaram assustados com o que estava acontecendo.
Mas não tinham a seu lado nem a vontade coletiva nem os vastos recursos (que Madre Angélica conseguiu) para impedir a rede de continuar seu percurso.
E, sucessivamente, os papas João Paulo II e Bento XVI reformularam o episcopado dos Estados Unidos com homens que compartilhavam da mesma mentalidade e da mesma visão dela.
Mas é muita ironia histórica que o cardeal O'Malley, hoje considerado o bispo mais confiável dos EUA em relação aos abusos sexuais (talvez até de forma mitificada), tenha sido uma das principais figuras dessa saga.
Graças ao alcance global atual do EWTN (cujo conteúdo é transmitido 24h por dia para mais de sete países, bem como toda a América Latina), a credibilidade dos bispos não poderia ser pior.
Os apoiadores geralmente mais tradicionalistas da rede se desencantaram com os bispos que o canal costumava retratar de forma impiedosa como fracos e pouco ortodoxos.
Enquanto isso, os católicos mais progressistas que não gostam da EWTN também perderam a fé neles por permitirem que o EWTN — impulsionado por sua ideologia moralista, extremista, clericalista e normativista — acabasse sendo a maior expressão midiática do catolicismo nos Estados Unidos.
É um forte contexto histórico. Mas é importante para entender o que aconteceu esta semana em Baltimore na reunião da Conferência dos Bispos dos EUA.
Considerando o caso McCarrick , o relatório da Suprema Corte da Pensilvânia e o ataque sem precedentes ao Papa Francisco no verão passado do arcebispo Carlo Maria Viganò (núncio apostólico para os Estados Unidos de 2011 a 2016), que acusou o Papa de acobertar os erros de McCarrick, o objetivo da pauta da conferência era criar protocolos de responsabilização para bispos que abusaram de pessoas ou protegeram outros clérigos abusadores.
Mas o cardeal Daniel DiNardo, presidente da USCCB, chocou os bispos e o público em geral ao anunciar, no início da reunião na segunda-feira (12 de novembro), que algumas horas antes o Vaticano tinha pedido que a conferência adiasse a votação de quaisquer novos protocolos sobre abuso sexual.
A diretiva veio do cardeal canadense Marc Ouellet, prefeito da Congregação dos Bispos, mas não há dúvida de que foi uma decisão do Papa.
O atual núncio apostólico para Washington, arcebispo Christophe Pierre, também esteve envolvido na ordem, e reuniu-se com o Papa no sábado anterior, no Vaticano.
As pessoas estavam chocadas e o cardeal DiNardo estava visivelmente irritado.
Os bispos, mais pressionados do que nunca pela forma de lidar com a crise de abusos sexuais, vinham prometendo aos católicos dos EUA que a reunião de Baltimore traria mudanças decisivas na responsabilização de bispos abusadores. Mas o Papa tinha bloqueado o caminho.
Na mídia, houve uma onda de críticas diretas ao Papa Francisco e a funcionários do Vaticano.
O Papa e seus assessores foram acusados de não compreender a gravidade da crise. Alguns chegaram a acusar Francisco de ser autocrata. Sua decisão foi certamente impopular, pelo menos aos olhos dos estadunidenses.
O cardeal DiNardo não divulgou a carta do cardeal Ouellet nem revelou as razões dadas pelo prefeito do Vaticano para pedir que a USCCB votasse de forma informal, exceto para indicar que a Santa Sé queria que fosse adiada até fevereiro, para quando o Papa Francisco convocou uma importante cúpula a respeito das questões de abuso sexual que contará com os presidentes de todas as conferências episcopais do mundo.
Muitos dizem que isso foi para diminuir a vergonha dos bispos dos EUA (e da Santa Sé) caso os protocolos ratificados estivessem em discordância com alguma decisão posterior.
Mas também haveria um problema processual e de mentalidade caso os bispos votassem em Baltimore.
O Papa Francisco já tinha ordenado que os bispos participassem de uma semana de retiro (que será em janeiro) para promover a unidade entre eles e passar por um período de discernimento e oração em relação a como responder a esta fase da crise de abusos. Mas os bispos não deram atenção.
A pauta em que inicialmente votariam foi finalizada menos de duas semanas antes do encontro em Baltimore. Por que tomariam alguma decisão em novembro e fariam o retiro de discernimento dois meses depois? Não tem lógica.
A questão tem grande importância. É óbvio que desde o surgimento dos escândalos, em Louisiana, nos anos 80, e depois em Boston, em 2002, a Conferência dos Bispos entraram em pânico e principalmente seguiram os conselhos de advogados e profissionais das relações públicas.
Como conferência, em grande parte adotaram soluções temporárias a cada nova etapa e, como indivíduos, não remediaram a situação com consistência.
Também há a questão do ataque do arcebispo Viganò a Francisco e seu pedido para o Papa renunciar por ter acobertado os abusos do arcebispo McCarrick.
Desde o final de agosto, quando o antigo núncio papal lançou o documento explosivo, cheio de acusações sem comprovação (algumas já desmascaradas) e insinuações lascivas, nada menos do que 24 bispos do país deram apoiaram credibilidade a Viganò e pediram que as acusações fossem levadas a sério.
Apenas alguns no grupo apoiaram o Papa de forma clara e inabalável, dando a impressão de estar ao lado do ex-núncio (alguns dos quais obviamente ajudou na nomeação para o cargo que ocupam).
Talvez ainda pior seja que a maioria dos bispos dos Estados Unidos permaneceu em silêncio ou apenas expressou lealdade ao Papa de forma vaga e fraca. Foi assim que agiram como conferência em Baltimore, em uma declaração formal que o cardeal DiNardo leu com uma emoção digna de um professor fazendo a chamada.
Como qualquer católico, e principalmente o Papa Francisco, poderia ter algum grau de confiança neste grupo de bispos?
A decisão do Vaticano de intervir em Baltimore, sem dúvida, aumentou as expectativas para a possibilidade de o Papa e os presidentes das conferências episcopais do mundo todo elaborarem ações claras e decisivas na reunião de fevereiro em Roma.
É mais do que estranho que comentaristas nos Estados Unidos que consistentemente criticaram os bispos do país pela incapacidade de "se policiarem" agora condenem o Papa quando ele, também, (pelo menos aparentemente) chegou à mesma conclusão.
Está enganado quem pensa, talvez por um sentimento inato e equivocado de "excepcionalismo americano", que os bispos do país tenham se saído bem e possam ser modelo de enfrentamento ao abuso sexual no mundo todo.
O Papa Francisco chegou atrasado para o jogo e foi lento para regular normas e medidas para lidar com os abusadores e os bispos que os protegiam.
Mas agir devagar não significa não fazer nada. O Papa tem sido incansável na procura de respostas mais profundas e globais que cheguem aos fundamentos que permitiram que este veneno se espalhasse na Igreja. Soluções temporárias já não adiantam.
Francisco é um bispo latino-americano de 81 anos, mas com certeza já sabe melhor do que ninguém que o abuso sexual, em público ou não, afeta todas as partes da Igreja no mundo inteiro. E é por isso que convocou a reunião de fevereiro.
O fato de ter indicado o arcebispo de Malta Charles Scicluna para o cargo de secretário-adjunto da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) é prova disso.
Scicluna, que é uma das autoridades mais respeitadas e competentes da Igreja por combater o abuso e os abusadores, será uma peça-chave em fevereiro.
Essa abordagem aparentemente centralizada torna uma farsa a insistência do Papa em uma Igreja mais sinodal e descentralizada, em que os bispos locais tenham autoridade para decidir em situações específicas de seu território?
De modo algum.
A questão do abuso sexual não é específica de certas regiões geográficas. É global. Deve haver critérios básicos e um entendimento comum que une toda a Igreja.
E depois cada conferência episcopal terá que discernir as melhores maneiras de implementar as normas globais em nível local.
Como já avisei, a estrada para construir uma Igreja sinodal e descentralizada será longa e cheia de obstáculos.
Provavelmente levará duas ou três gerações para haver bispos suficientes que consigam realmente levar a uma transformação como essa.
Hoje, o episcopado no mundo distingue-se, na melhor das hipóteses, pela mediocridade. E muitos bispos, como os dos Estados Unidos, perderam a credibilidade e autoridade moral.
Ninguém pode culpar o Papa Francisco por isso — pelo menos não apenas ele. A atual confusão foi causada por alguns homens que, muitos anos atrás, sentaram-se na Cátedra de Pedro.
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Por que o Papa Francisco tinha razão de interromper os bispos dos Estados Unidos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU