26 Outubro 2018
Universidad conversou com o professor de Epistemologia e Filosofia Feminista do curso de Filosofia da Universidade de Buenos Aires, Blas Radi, que há vários anos se dedica à pesquisa na área das epistemologias críticas e seu trabalho intelectual está fortemente comprometido com sua vocação política como ativista trans.
Blas Radi (36) foi convidado recentemente para uma conferência na Universidade de Toulouse sobre a inclusão de gênero nas ciências, e ali destacou: “Temos repetido à exaustão que o gênero é uma construção cultural. Perfeito, mas como uma construção, está submetido à mudança e mudou muito a maneira como o gênero se constrói. Por que não pensar nisso? Muitas vezes, a ‘perspectiva de gênero’ tende a ignorar a mudança e este é um problema que não fica na teoria, mas, sim, afeta as instituições e tem consequências negativas na vida das pessoas, sobretudo para aquelas que se identificam com um gênero diferente do atribuído ao nascer”.
Radi fez parte da equipe que redigiu a Lei de Identidade de Gênero e participou como especialista do debate parlamentar sobre a legalização do aborto. De acordo com ele, a perspectiva trans expressa uma mudança de paradigma que interpela não somente o Estado e seus agentes, mas também os movimentos sociais. “Trata-se de uma perspectiva nova que rompe com o modelo da diferença sexual e o binarismo de gênero. A lei de identidade de gênero argentina faz eco a esta mudança. No entanto, nossa visão de mundo está comprometida com uma série de concepções muito conservadoras sobre gênero e sexo, com a qual tanto nossas instituições como os movimentos sociais, inclusive os mais progressistas, se apegam dogmaticamente à ideia de que existem dois sexos, dois gêneros, e que estão ligados por uma espécie de necessidade biológica”.
A entrevista é publicada por Página/12, 25-10-2018. A tradução é do Cepat.
Os banheiros, os formulários administrativos, as práticas médicas, os esportes e todos os instrumentos normativos estão estruturados sobre o gênero binário e a diferença sexual.
Exato. São parte do repertório de injustiças cotidianas ao qual fomos nos acostumando ao ponto que, com frequência, erradicá-las nos parece muito ou nos parece ruim. De fato, muitas vezes sua mera sinalização desperta a rejeição da comunidade. Que sejam injustiças cotidianas não quer dizer que emerjam de um suposto ser nacional que as tinge de tonalidades folclóricas aceitáveis, nem que sejam imperceptíveis ou irrelevantes. Que sejam cotidianas quer dizer, por um lado, que se repetem permanentemente, ao ponto que essa sucessão regular de injustiças marca o ritmo da vida de muitas pessoas, inclusive de pessoas que às vezes as ignoram e até as justificam. Por outro lado, que sejam cotidianas quer dizer que possuem uma legitimidade consuetudinária, que é abonada por normas não codificadas de convivência social.
Agora, não se trata de fazer um terceiro banheiro, desenvolver uma equipe médica especial ou promover jogos olímpicos trans. Mas, é o primeiro que nos ocorre: que existem varões e mulheres, por um lado, e por outro há pessoas trans, que necessitam de instituições paralelas. Essa é uma representação equivocada. Se as crenças que sustentavam nossas instituições foram minadas, é necessário reestruturar nossas instituições por completo, incluindo as concepções tradicionais acerca do que entendemos por homens e mulheres. Nesta reestruturação, o respeito ao nome e à identidade de gênero das pessoas trans é uma prática valiosa e necessária, mas não suficiente. As representações sobre gênero estruturam todos os aspectos de nossa vida, inclusive aqueles que parecem ter pouco ou nada a ver com o gênero, por exemplo, enviar uma carta por correio postal.
A filosofia pode fazer algo com tudo isto?
Sim. Espero muito da filosofia. Formei-me com pessoas que recitavam fragmentos de Adorno para dizer que a filosofia não tem que servir para nada porque a lógica da utilidade é aliada ao capitalismo. Contudo, não estamos na Europa de meados do século passado, estamos na Argentina em 2018. Acredito que reivindicar a inutilidade da filosofia como projeto emancipatório é uma expressão do privilégio. A filosofia pode ser um fim em si mesma só quando você possui todas as suas necessidades cobertas.
Muitas pessoas precisam e ainda necessitamos trabalhar muito sobre as instituições para as tornar habitáveis, porque, em geral, não há lugar para nós. A universidade não é uma exceção. Trabalhar sobre as condições institucionais para ser possíveis dentro da academia implica gerar as condições de inteligibilidade que conduzam a essa hospitalidade. Mas, os diálogos entre representantes das instituições e as pessoas marginalizadas se produzem em condições assimétricas.
Neste terreno tão desafiador, a filosofia pode desempenhar um papel significativo. Em meu caso, o trabalho que faço contribui para pensar como funcionam as identidades sociais e os preconceitos na economia da credibilidade, e também para desenvolver estratégias para desmontar as injustiças sistemáticas que as pessoas marginalizadas experimentam em seus intercâmbios epistêmicos.
Em uma conferência, você disse que se dedica aos estudos trans. Pode nos contar em que consistem?
É um campo emergente e interdisciplinar, que possui um compromisso social e político explícito. Em geral, reconhece-se que começaram a se desenvolver nos anos 1990, mas, é claro, toda a periodização tem algo de arbitrário. A chave foi a tomada da palavra por parte das pessoas trans - que historicamente foram objeto de estudo -, uma espécie de “já basta!” epistemológico articulado sob a consigna do ativismo das pessoas com deficiência: “nada de nós sem nós”.
O desenvolvimento foi bastante desparelho em nível global, mas teve um impacto significativo em todas as partes. Há contextos, como o estadunidense, onde os estudos trans souberam ganhar um certo reconhecimento institucional, e outros contextos onde isso ainda é impensável. Na Argentina, este desenvolvimento não teve um espaço próprio na academia, mas se deu de uma maneira sustentável durante os últimos 25 anos, pelo menos. A referência inescapável em nosso país é Mauro Cabral, um agudo intelectual cujo pensamento transformou a cena intelectual e política.
A existência de intelectuais trans altera os papéis de costume na produção de conhecimento, isso é algo difícil de assimilar, inclusive para muitas pessoas trans.
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“O gênero é uma construção cultural, mas mudou muito a maneira como se constrói”. Entrevista com Blas Radi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU