17 Outubro 2018
A ficção é uma disciplina que depende da realidade. Esta, às vezes, costuma ser mais impressionante que todas as ficções juntas. O Brasil que está a ponto de eleger Jair Bolsonaro como próximo presidente da República é uma das histórias reais mais fictícias que se possa conjecturar. A jornalista franco-marroquina e especialista em América Latina, Lamia Oualalou a conta a partir de sua mais insólita raiz: o movimento evangélico que se apoderou do primeiro país católico do mundo e, a partir dali, muito antes das eleições presidenciais, derrotou a esquerda brasileira na intimidade dos templos das múltiplas igrejas evangélicas que pululam no país.
Sua investigação jornalística publicada em francês por Editions du Cerf, Jésus t’aime (Jesus te ama), é a crônica resplandecente e rigorosa de um movimento de vagas raízes teológicas que foi trepando pela coluna vertebral do país humilde e periférico abandonado pelo Estado, a Igreja Católica e a própria esquerda. A nação que nos anos 60 viu nascer a teologia da libertação perdeu para o que a autora chama de “a teologia da prosperidade” e suas eloquentes e disparatadas encenações: a Judá Cola substitui a Coca-Cola, Bolsonaro é um santo ao lado de Satanás, quer dizer, o PT, os pastores das igrejas evangélicas são os novos milionários do Brasil e os proprietários dos principais meios de comunicação que colocaram a serviço do candidato que saiu à frente no primeiro turno.
Longe das radiografias fáceis, a investigação jornalística de Lamia Oualalou demonstra que o apogeu dos evangélicos é uma forma de resposta à ausência do Estado, que seu enraizamento na região urbana periférica responde ao distanciamento da Igreja Católica dessas áreas e que sua pavorosa influência política se apoia no abandono das classes mais vulneráveis por parte de uma esquerda que as deixou órfãs. Jesus te ama é um livro oriundo da raiz mais profunda do Brasil, onde a jornalista (Le Figaro, Mediapart, Europe 1, Le Monde Diplomatique) viveu muitos anos.
Lamia Oualalou traça o caminho paradoxal de uma dupla vitória, a dos evangélicos e Bolsonaro, paralela à derrota da esquerda e da Igreja do Papa Francisco.
A entrevista é de Eduardo Febbro, publicada por Página/12, 16-10-2018. A tradução é do Cepat.
Com os resultados do primeiro turno das eleições no Brasil e o peso considerável que os evangélicos tiveram nela, é possível dizer que há uma expansão dos evangélicos na América Latina?
Sim, há uma expansão no México, na Argentina, no Chile. No Brasil, vemos a consequência da influência dos evangélicos diretamente nas eleições: os pastores evangélicos convocaram para votar em Bolsonaro. Hoje, temos uma boa parte da população brasileira que não só é evangélica como também segue o que o pastor diz. Isto teve e terá um impacto muito complicado, porque o PT não sabe falar com os evangélicos. Esse foi um dos grandes erros que cometeu no passado.
Em sua pesquisa, você demonstra que essa expansão dos evangélicos é uma resposta à ausência do Estado... e algo mais.
Houve vários fatores combinados. Por um lado, pouco a pouco a Igreja Católica foi desaparecendo dos lugares mais populares, sobretudo das novas cidades e favelas que foram criadas em uma velocidade enorme, após os anos 70. A Igreja Católica tem aqui um problema de presença urbana: nas favelas e cidades emergentes, a Igreja Católica não entra. Nesse mundo suburbano, pobre, com gente oriunda por exemplo do Nordeste, não há lugares de socialização. A única coisa que existe é o templo evangélico, onde podem cantar, fazer amigos, deixar seus filhos. Não estão presentes o Estado com seus auxílios (saúde, trabalho, educação), nem a Igreja Católica, mas, sim, os evangélicos que costumam prestar alguns desses serviços. Os evangélicos, no Brasil, ocuparam o espaço do Estado com o consecutivo impacto cultural e político que isso acarreta: as pessoas só ouvem a rádio evangélica, veem o canal evangélico, participam dos grupos evangélicos do Facebook e WhatsApp. As pessoas vivem fechadas nesse mundo. E, claro, vivem nesse círculo porque os partidos e movimentos progressistas, o PT por exemplo, abandonaram estas pessoas. Por fim, o que aconteceu é que foram cortadas as pontes para dialogar com as pessoas humildes.
Que enorme e doloroso paradoxo! O Brasil foi a terra onde se forjou a Teologia da Libertação e hoje se tornou o berço evangélico, que você define como uma “teologia da prosperidade”.
A lógica da teologia da prosperidade é fascinante porque diz ao membro da Igreja que, basicamente, tem direito a tudo: à saúde, a uma boa vida material. E isso agora mesmo e não na próxima vida!. E se não já não tem isso é porque não sabe exigir. Isto implica uma mudança no que diz respeito à relação com Deus: Deus tem que te dar isso e você só precisa saber pedir. E para pedir a ele, você deve fazer parte do grupo evangélico, pagar e rezar. E, ao final, de alguma forma funciona: quando os evangélicos dizem “deixa de beber e você vai encontra um trabalho”, as pessoas acabam trabalhando mais e melhor sem estar bêbadas. Por isso, as pessoas acabam vendo que há um impacto positivo em suas vidas, ainda que aquilo que obtenham seja mínimo.
A esquerda brasileira parece que também não entendeu o tema da teologia da prosperidade.
Não, claro que não e isso foi outra tragédia. A esquerda interpretou a teologia da prosperidade de forma muito básica. Fez a leitura dela unicamente como uma adaptação do neoliberalismo. É certo que há uma parte de consumismo, mas também existe uma forte lógica de solidariedade. Hoje, se pagam as consequências: o que começou com Deus se tornou um enorme movimento moralista, anti-PT, anti-intervenção do Estado.
Os evangélicos estão em uma lógica de consumo capitalista. Não obstante, é preciso ressaltar que esse era o discurso de todo o país. Inclusive nos anos de Lula se dizia: “agora todos os brasileiros podem ser cidadãos porque têm acesso a um cartão de crédito” (Guido Mantega, ex-ministro da Fazenda). Para muita gente, os anos de Lula deram mais legitimidade à teologia da prosperidade. Esse discurso se apoderou de todo o país. Ser evangélico também é uma forma de ascensão na escala social. Nem o trabalho, nem a política, nem o sindicalismo permitem isso.
Os evangélicos fizeram um trabalho de penetração setor por setor: seduziram os atletas, os atores, os surfistas, a polícia, o crime organizado, etc. Setorizaram sua expansão.
De fato, não há uma Igreja evangélica, mas muitas. Seu único ponto em comum é a forte personalidade dos pastores. Os evangélicos têm uma visão de marketing sobre a sociedade. Fazem uma Igreja que interessa as pessoas que jogam futebol, outra Igreja para os gays porque estão excluídos, outra Igreja mais rigorosa e uma mais permissiva. Isto acaba tendo uma força incrível porque você sempre acaba encontrando uma Igreja do seu gosto. Estão igualmente em todas as esferas de poder: no sistema judiciário, na política (têm 90 deputados), na polícia. Se forem à página da polícia militar, verão que uma parte das ajudas sociais estão organizadas pelos evangélicos. São majoritários até nas prisões. No Rio de Janeiro, das 100 representações religiosas que estão presentes nas prisões, 92 são evangélicas. O Estado permite isso porque perdeu sua capacidade de intervenção.
Com Bolsonaro e seus apoios evangélicos estamos diante de uma dupla derrota: a do PT e a do Papa Francisco.
Acredito que quando veio ao Brasil o Papa Francisco se deu conta de que era muito tarde. As imagens da viagem do Papa com milhões e milhões de pessoas correspondiam a bairros católicos. Quando se perguntava aos evangélicos o que pensavam de Francisco, muitos deles não sabiam quem era o Papa. E estamos falando do primeiro país católico do mundo. Além disso, para não perder terreno, uma parte da Igreja Católica acaba em muitos casos imitando a Igreja Evangélica. O Papa teve que aceitá-los. A única maneira de mudar a situação atual é com trabalho de base. Contudo, as pessoas que estão no Brasil foram nomeadas pelos dois papas anteriores (Bento XVI e João Paulo II) e hoje não repercutem o que Francisco ordena. Derrota também do PT, claro. Como a esquerda brasileira abandonou as populações pobres, esta população foi cada vez mais para a direita. Além disso, a campanha se articulou em torno do WhatsApp, detalhe que o PT também não entendeu.
Em suma, Bolsonaro não estaria onde está sem as contribuições dos evangélicos. Estes derrotaram o PT nos templos antes das eleições.
Ele entendeu muito bem como falar com eles. Não é evangélico (sua mulher sim), mas aceitou toda uma parte do circo evangélico: pediu a um Pastor que o batizasse e comparece com frequência aos atos evangélicos. Neste momento de crise e de medo, ele vem com este discurso de ordem, de matar os bandidos. A isto se acrescenta o trabalho de demonização do PT que os pastores empreenderam. Nos templos se diz que a crise e a recessão são culpa de satanás, e esse satanás é o PT. Apresentam o PT como se fosse um partido radical, quando na realidade é de centro-esquerda. Distribuem uma retórica que nada tem a ver com a realidade e as pessoas acreditam. Além disso, os evangélicos trabalharam o tema dos meios de comunicação. A segunda televisão do país é propriedade de Edir Macedo, o Bispo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Macedo pôs todo o seu aparelho midiático a serviço de Bolsonaro. O poder de Bolsonaro irá depender muito do poder dos pastores evangélicos. O PT tenta às pressas se aproximar desse eleitorado, mas é tarde. O que precisaria fazer é desconstruir a imagem dos pastores e demonstrar que são bandidos, que são as principais fortunas do país. Mas isto não se realiza em algumas semanas.
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“Os evangélicos no Brasil ocuparam o espaço do Estado”. Entrevista com Lamia Oualalou - Instituto Humanitas Unisinos - IHU