10 Outubro 2018
O clericalismo se baseia em uma abordagem equivocada da Igreja e da sua definição como povo de Deus.
A opinião é do padre Rodrigue Gbédjinou, da Arquidiocese de Cotonou, no Benin, e especialista em teologia dogmática. O artigo foi publicado por La Croix International, 08-10-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A Carta do Papa Francisco ao Povo de Deus de 20 de agosto se assemelha à carta enviada por Bento XVI aos cristãos da Irlanda em 19 de março de 2010. Ambas vieram como respostas ao escândalo da pedofilia.
Em sua carta, Francisco enfatiza a necessidade de solidariedade entre o povo de Deus através da comunhão de cada membro do corpo com cada membro sofredor (cf. 1Co 12, 26).
A efetividade dessa solidariedade exige uma conversão da ação eclesial, que ainda sofre o peso do clericalismo.
Uma tentação contínua
Os ministros do Senhor frequentemente estão conscientes – não necessariamente de forma errônea – de estarem separados. Infelizmente, no entanto, essa consciência também pode criar uma casta ou uma mentalidade privilegiada, resultando no fato de eles se considerarem como os únicos e indispensáveis canais da graça de Deus.
Na Bíblia, Josué não podia entender que o Espírito também foi dado a Meldade e Eldade, assim como aos 70 anciãos, e por isso se queixou a Moisés (cf. Nm 11, 25-29).
João denunciou a Jesus a pessoa que expulsava demônios no seu nome, embora não fosse apóstolo. João expressou seu desejo de impedir isso (cf. Mc 9, 38-48).
Moisés e Cristo, o novo Moisés, rejeitaram qualquer limitação da ação do Espírito. No entanto, eles não negaram que o Espírito age ordinariamente naqueles e através daqueles a quem o Senhor escolheu, mesmo que Deus também possa agir em outros lugares.
O clericalismo no nosso tempo
Parece que existe um desejo – consciente ou inconsciente – de criar e de manter uma barreira entre o clero e os cristãos leigos.
Segundo o Papa Francisco, isso se manifesta “sempre que tentamos suplantar, silenciar, ignorar ou reduzir o povo de Deus a pequenas elites”.
“Isso se manifesta claramente em um modo anômalo de entender a autoridade na Igreja – tão comum em muitas comunidades onde ocorreram as condutas de abuso sexual, de poder e de consciência – como é o clericalismo, aquela ‘atitude que não só anula a personalidade dos cristãos, mas tende também a diminuir e a subestimar a graça batismal que o Espírito Santo pôs no coração do nosso povo’. O clericalismo, favorecido tanto pelos próprios sacerdotes como pelos leigos, gera uma ruptura no corpo eclesial que beneficia e ajuda a perpetuar muitos dos males que denunciamos hoje. Dizer não ao abuso, é dizer energicamente não a qualquer forma de clericalismo”, escreveu o Papa Francisco.
Lidando com o drama do clericalismo
O clericalismo se baseia em uma abordagem equivocada da Igreja e da sua definição como povo de Deus.
Deixando de lado qualquer cooptação política, o povo de Deus, que é convocado e reunido por e para Deus, abrange os fiéis de Cristo, o clero e os leigos.
Nesse contexto, o clericalismo consiste na tentação do clero de reduzir os leigos, e não o povo de Deus, a pequenas elites.
Uma concepção particular da teologia das ordens e dos modos do seu exercício certamente pode se prestar a isso.
No entanto, o batismo, que nos torna filhos e filhas de Deus na Igreja, sacerdotes, profetas e reis, é a base da nossa igual dignidade.
- O clericalismo é uma caricatura do senso de autoridade na Igreja. O desejo pela primeira posição, que é uma aspiração legítima e humana, não poupou os discípulos de Cristo. Mas lhes permitiu esclarecer o critério relevante, a saber, “ser os servos de todos”. Praesumus si prosumus: estamos acima quando servimos, como disse Santo Agostinho.
- O clericalismo é promovido não apenas pelo próprio clero, mas também por uma visão do povo de Deus de si mesmo, uma visão que leva a abusos de consciência e de poder.
Cum vobis christianus, per vobis clerus (episcopus/sacerdos).
Um certo nível de estima é necessário para os ministros do Senhor, mas ele não deve ser exagerado. Na Igreja como povo de Deus, corpo de Cristo e comunhão, todos são responsáveis uns pelos outros, cada um em seu papel. A pessoa cristã é preeminente.
- Clericalismo e pedofilia? A conexão parece ter sido claramente estabelecida. Mas o clericalismo é realmente a principal causa do desenvolvimento da pedofilia? Certamente, mas muito mais é o silêncio eclesial a cercou.
Precisamos encontrar a coragem para condenar as críticas da nossa sociedade hipócrita, da qual o nosso clero também é filho. Todo o povo de Deus também não é responsável por essa tragédia?
- O clericalismo, portanto, constitui um desafio a uma abordagem renovada à natureza da Igreja, a sempre se referir a Deus, que convoca o povo, a Cristo, a cabeça do corpo, e ao Espírito, sua alma e vida.
No entanto, ele não será corrigido promovendo uma forma eclesial de “laicismo”.
A estrutura do povo de Deus como desejada pelo Senhor quando ele escolheu discípulos e apóstolos abrange tanto os sacerdotes quanto os leigos. No entanto, as modalidades da sua relação precisam ser entendidas à luz do Evangelho e das contingências históricas do tempo.
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Clericalismo, uma tentação contínua. Artigo de Rodrigue Gbédjinou - Instituto Humanitas Unisinos - IHU