Por: João Vitor Santos | 07 Outubro 2018
Em tempos de redes sociais e das chamadas bolhas de socialização no ambiente virtual, a psicóloga Carmen de Oliveira chama atenção para o isolamento que vivemos nos impondo. Mas não é somente um isolamento virtual, pois vivemos em bolhas no mundo real. Ela fala de espécies de guetos que se formam, seja nos condomínios de luxo em que se vive isolado sob o argumento da segurança, seja nas periferias em que as pessoas não conseguem acessar as cidades. “Bauman falava que as cidades já não favorecem o encontro. É o encontro com o outro”, destaca. Sem esse contato com o outro, não há reconhecimento das diferenças, pois se está apenas entre iguais, age-se com indiferença. “E da indiferença para a intolerância é um passinho”, completa, recordando que o fascismo se incrusta justamente nessas brechas de intolerância, de inabilidade de enxergar “o outro”, que nos permitimos.
Carmen foi a conferencista do IHU Ideias realizado na última quinta-feira, dia 04-10. Sob o tema As juventudes e o cenário eleitoral brasileiro. Possibilidades e limites, em sua palestra, propôs uma reflexão sobre como compreender a adesão de jovens a posições totalitárias, em flertes com a chamada perspectiva fascista, hoje materializada na figura do candidato a presidente da República Jair Bolsonaro. Mas é olhando para os jovens que a psicóloga incita a pensar sobre a sociedade de nosso tempo. “Não só entre os jovens, mas em toda a sociedade há uma polarização, que nos faz desacreditar da possibilidade de um pacto social, a busca por um comum”, aponta.
Carmen: “Bauman falava que as cidades já não favorecem o encontro. É o encontro com o outro” (Foto: João Vitor Santos/IHU)
Segundo ela, essa geração mais jovem cresceu sob governos petistas “e com certa calmaria econômica”, o que permitia certo conforto e acesso a bens de consumo. Mas não só no Brasil, em todo o mundo, esses jovens que também são nativos digitais se alinham em fileiras contrárias à ideia de adolescente consumista e alienado politicamente. A partir das redes digitais, fazem suas mobilizações. “Depois de 2013 vemos uma série de intensas participações no espectro político, em que vai se questionar o que está estabelecido”, reitera. “Por isso não podemos dizer que o jovem tem desinteresse pela política. Eles questionam as instituições e isso é bom para a democracia, pois se busca construir algo novo”, analisa.
É assim, segundo Carmen, que as gerações mais novas vão se mobilizando a partir do ambiente de redes sociais, fazendo algo que é tão característico nessa faixa etária: questionar o que está estabelecido. “E nesse caso, o estabelecido são governos progressistas”, observa. Para ela, não há problema algum que esse questionamento se dê inicialmente em ambiente virtual. “Não sou saudosista, não fico lamentando a falta do panfleto e da assembleia. Mas o problema é umas poucas empresas deterem um monopólio na gestão dessas redes. São eles que vão decidir quem e o que a gente vê”, reflete. Com isso, cada vez mais o diferente vai se apagando do campo de relações virtuais e, aliando isso a sua perspectiva de isolamento no mundo não virtual, mergulhamos cada vez mais nas certezas que são geradas a partir das falas das bolhas que reúnem apenas os iguais.
Carmen de Oliveira também observa que as bolhas não são prisões e, logo, podem ser rompidas. Um exemplo são as manifestações que ocorreram no dia 29 de setembro contra o candidato Jair Bolsonaro em todo o Brasil. “Foi uma espécie de um fura-bolha cultural, que misturou pessoas diversas, de vários partidos, de várias idades. Na Redenção [em Porto Alegre], era quase um festival. As pessoas estavam ali com a família, com os amigos”, diz. A psicóloga também chama atenção para o carinho, o cuidado que se tinha entre os participantes da manifestação que ficou conhecida como #elenão. “Tinha gente tomando o cuidado para não tropeçar na bengala da velhinha, cuidando para a fumaça do cara do churrasquinho não ir no carrinho com o bebê que estava por ali”, recorda.
Dia 29-09, o Parque da Redenção, em Porto Alegre, foi tomado por "diversas tribos" unidas pelo #EleNão (Foto: Flávio Dutra)
Na visão de Carmen, essa é uma outra perspectiva de fazer política. “Era curioso observar como um carro de som e algumas pessoas em volta, naquilo que nos lembrava um antigo comício. Mas eram poucos que se concentravam ali. A maioria estava noutro lado, como numa festa”, completa. Para ela, são indícios de que há a emergência de uma renovação nas formas de fazer política, de pensar na alegria, nos pontos em comum que as diversas bandeiras têm. “É por aí que podemos pensar na construção de algo juntos, do comum. Nesse sentido, a esquerda também precisa se reinventar, pois ainda está muito baseada num modelo antigo e centralizador”, observa.
Mas como compreender a adesão tão grande de jovens a perspectivas mais totalitárias, como é o caso do projeto de Jair Bolsonaro? Carmen recorda que muitos analistas observam que o jovem, desde sempre, tem essa necessidade de contestação. Se cresceu no tempo de governos petistas, contestar pode ser ir contra isso. E como esses governos, em certa medida, abriram espaço para minorias como as mulheres, movimentos LGBT, entre outros, ser contra o PT passou a ser sinônimo de contrariedade dessas lutas. “Desde a família o jovem busca na contestação a forma de estabelecer sua identidade, por isso vai ir contra o status quo estabelecido”, acrescenta.
Assim, para Carmen, por mais paradoxal que possa ser, o “ser do contra” para o jovem de hoje que busca uma certa transgressão é se opor a lógicas mais progressistas. Por esse caminho, o fascismo e o totalitarismo se apresentam como uma alternativa sedutora. “E esse jovem vai discriminar as mulheres, os sexos como forma de fazer oposição à esquerda”, reitera.
Outros autores analisam essa perspectiva pela necessidade de o jovem buscar um herói. E, nesse sentido, o totalitarismo e o fascismo são muito eficientes em criar essas figuras no ambiente virtual, vide o exemplo de Kim Kataguiri e outras figuras endossadas pelo Movimento Brasil Livre - MBL. “É aí que entra a lógica da memificação das redes. A política vira piada, meme. Observe como vemos muitas pessoas dizendo que Bolsonaro não disse determinada coisa, que falou isso, mas que estava brincando”, reflete a psicóloga.
Não é à toa que Bolsonaro vai seguir a cartilha das redes sociais, fazendo desse o seu maior veículo de comunicação. Ao longo de todo tempo em que esteve internado, esse foi o seu canal direto de comunicação com as pessoas. Mesmo fora do hospital, respondia às denúncias feitas contra ele nos grandes veículos de comunicação através de suas redes. “E ele vai parecer grandioso, corajoso, aquele que fala a verdade, sem medo”, observa Carmen.
Para a psicóloga, esses fatores são muito importantes para compreender a adesão de jovens a figuras como Bolsonaro, mas não são suficientes, e por isso vai buscar reflexões a partir da psicanálise. Recorda que Félix Guattari fala como Hitler vai se apresentar não como um gênio do mal, mas como um plebeu, um militar com um ar popular, num misto de uma debilidade que poderia tanto seduzir como ser manipulado. Além disso, seguindo com Guattari, Carmen observa como é pela figura de Hitler que tem vazão uma espécie de “delírio racista” que ressurge dos ossários da 1ª Guerra Mundial. Ou seja, uma espécie de espírito de rancor e vingança.
Muitas são as pessoas que relatam que a campanha eleitoral de 2018 tem interferido em relações familiares e de amizades. Seja qual for o resultado do pleito de domingo, essa fissura nas relações já terá sido feita e o desafio passa a ser pensar em como reconstruir essas relações. Como se aproximar daquele parente que no grupo do WhatsApp da família destilava ódio? Como voltar a conviver com aquele colega de trabalho que passou a pregar o aniquilamento de feministas e de gays? Como voltar ao chopp com aqueles amigos que dizem ter ódio do PT e de tudo que ele representa? “É por isso que digo que não se trata de trazer a análise para a questão do Bolsonaro. Isso não é uma questão biográfica. Me interessa menos o Bolsonaro e mais a engrenagem que está no entorno”, reflete.
Carmen quer chamar atenção para a micropolítica que faz o nazismo e o fascismo estarem tão presentes hoje e aqui quanto sempre estiveram. “É a mesma engrenagem do racismo, da misoginia e de outras formas de preconceito. Guattari coloca isso como pior e mais eficiente do que os campos de concentração e os fornos”. Por isso a psicóloga destaca que se requer vigilância constante, para que, mesmo sem querer, não deixar essas perspectivas passarem pela fina teia que nos protege e chegar ao nosso coração.
Para Carmen, manifestação na Redenção teve ares de festa, de festival (Foto: Flávio Dutra)
A partir da reflexão de um grupo que se intitula como Comitê Invisível – e que tem lançado uma série de textos sem autores, destacando essa alcunha coletiva de produção e reflexão –, Carmen ainda acrescenta: “vemos que o capitalismo precisa de crises para se superar. É algo como desestabilizar para depois estabilizar”. E, claro, essa estabilização se dá de acordo com a radicalização de suas lógicas capitais. “Veja como acordamos todos os dias nos últimos dois anos sobressaltados, querendo saber qual a sacanagem do dia, no meio de um estado de crise que é muito mais do que só econômica”, exemplifica. “Não, as massas não foram enganadas, disse Wilhelm Reich no começo do século XX, elas desejaram o fascismo”, pontua.
Carmen de Oliveira questiona o que há em comum nos movimentos #foraDilma, #foraTemer, o antipetismo e até o #elenão. “O que há em comum é a exclusão do outro. Mas será que nada é capaz de nos unificar a não ser o ódio que se tem em comum do outro, seja ele quem for?”, questiona novamente. Para pensar nisso, propõe mais uma vez olhar como se constrói essa negação. Segundo a psicóloga, Nietzsche vai dar pistas quando fala da trama do ressentimento. “Quando se pensa que um Deus criador pode não existir, o mundo desaba e se passa a buscar um culpado. Posso pensar que a culpa é minha, mas posso também jogar a culpa no outro”, explica. Para ela, o momento que vivemos não busca apenas a culpabilização do outro pelo meu sofrimento, se quer na verdade amortizar, aniquilar o outro que, por ser diferente de mim, poder ser o culpado pela queda do meu mundo.
Para tentar superar esse ódio, Carmen sugere pensar em mutações que devem ser afirmativas e não constituídas a partir da negação do outro. “Žižek vai dizer que saber para que se luta é o começo, mas também é preciso saber o que seguir. Afinal, que partido, que mundo nós queremos?”, sugere. Outro movimento que propõe é o deslocamento do locus da política, pensar que a política se faz também nas formas como construímos a relação com o outro. “É, segundo o Comitê Invisível, habitar plenamente, tomar conta dos mundos que habitamos. E isso vai muito além dos programas de governos.”
Outro ponto de virada e superação, para Carmen, é ter a clareza de que não se precisa de um “céu social” ou de um “messias” que vai nos salvar. “A potência está na intersecção das lutas. É a busca das lutas em comum”, resume. Por isso, ao fim de sua fala, volta à imagem do Parque da Redenção do dia 29 de setembro de 2018, quando diferentes grupos se unem com alegria para lutar pelos seus ideais e por algo em comum. “São sinais de que é possível construir ações coletivas de outra forma. Somos capazes de desinflar o ódio e superar as ações totalitárias com alegria. A tristeza é prima-irmã do ressentimento. É preciso um pouco mais de alegria para buscar novas paixões, como diz Spinoza”.
Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, com especialização em Saúde Pública pela Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul, mestrado em Psicologia Clínica pela PUCRS e doutorado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP.
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O contato com o diferente é uma estratégia contra o fascismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU