22 Setembro 2018
Há exatamente 50 anos, em Bose (em Magnano, no Biellese, Itália), os primeiros irmãos e irmãs iam ao encontro de Enzo Bianchi para dar origem à comunidade monástica que leva o nome dessa localidade que desaparece em meio aos campos. Desde então, durante todo esse tempo, Bianchi certamente fez uma coisa: foi para a cama cedo.
A entrevista é de Roberta Scorranese, publicada por Liberi Tutti, do jornal Corriere della Sera, 21-09-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A que horas você vai dormir?
“Às 19h10, quando termina a oração, eu me retiro para o meu ermo. Só então começa a noite. Deito por volta das 23h.”
Os 75 anos vividos com desenvoltura e a barba bem arrumada traem uma atitude que o ex-prior de Bose nunca enfatiza, ao contrário de outras das suas paixões: a cordialidade. Todos sabem que ele tem uma horta que cultiva com disciplina e sempre fala dos seus tomates que crescem ao lado das onze-horas, no cimento.
Mas a verdadeira natureza desse monge leigo – profundo conhecedor das Escrituras e fino entendedor de berinjelas “perline” – deve ser captada em outros detalhes: a afabilidade com que acolhe os visitantes, a presença em meio às pessoas, os inúmeros amigos que vão a Bose para visitá-lo.
Enzo Bianchi, o que o entedia?
“Eu não conheço o tédio. Ao contrário, sou vítima da ansiedade. Se estou esperando por alguém, e a pessoa se atrasa, eu começo a me agitar.”
Um sol ainda de verão. Passeamos naquele que foi o núcleo original da Comunidade de Bose, um punhado de casas rurais pertencentes no início a diversas moradias e a uma igrejinha antiga que Enzo consertou quase sozinho, pondo como altar uma pedra de moinho da época românica.
Quando você chegou, em 1965, aqui havia apenas casas abandonadas.
Não só: durante anos, vivemos sem luz nem água corrente. O início não foi fácil, e não estou falando apenas das dificuldades materiais.
A Cúria era hostil?
Lembro-me muito bem da interdição que me atingiu por decisão do então bispo de Biella, que até se recusou a apertar a minha mão. Esta ilha de oração autônoma e acolhedora para com todos, inspirada apenas no Evangelho, dava medo.
Esse mesmo Evangelho que hoje divide os católicos em duas facções: os paladinos de valores identitários, poderíamos dizer “de paróquia”, e os que defendem os preceitos universais.
Vimos isso na clara oposição que uma parte dos católicos (como a revista Famiglia Cristiana e o jornal Avvenire; nota do editor) levantou contra o ministro do Interior [Matteo Salvini] e as suas posições sobre os migrantes. Mas há anos este mundo está dividido: por um lado, os cristãos “de campanário”, por outro, os que se inspiram no Evangelho. Para encurtar a história, os cristãos de campanário são aqueles que atacam o papa.
Você é um homem muito popular. Seus escritos são lidos por todos, as suas conferências lotam. Como concilia a escolha da vida monástica com o sucesso?
Minhas origens me defendem: muito pobres, mas corajosas. Meu pai era funileiro, às vezes consertava os telhados para arredondá-los. Minha mãe morreu ao me pôr no mundo: ela sofria de estenose mitral e sabia muito bem que o fato de me dar à luz lhe custaria muito. Eu a perdi quando tinha oito anos, mas ela teve tempo para me ensinar a fé e a alergia ao sucesso, que é uma tentação pior do que o sexo. Então, estou bem imunizado.
Bianchi, você sente falta de um filho?
Sou sincero: às vezes sim, sinto a necessidade de ter alguém que, à noite, pense em mim. Claro, eu escolhi a vida monástica, que me deu plenitude. Mas, como eu dizia, às 19h10 de todas as noites eu me retiro ao meu ermo. Especialmente nas noites de inverno, frias e escuras, às vezes sinto falta de alguém que me espere. Ou que apenas me dirija um pensamento. O celibato marca uma solidão impossível de apagar. Quando somos jovens, falta o exercício da sexualidade. Quando velhos, falta algo mais: os amigos, que, pouco a pouco, vão embora; o afeto de uma companheira; sim, também de um filho.
Quantas vezes você já ouviu: “Você escolheu o Senhor, você é um homem afortunado”?
Inumeráveis vezes, mas são duas coisas diferentes: todas as escolhas de vida levam a renúncias. A fé está no centro da minha vida, é óbvio, mas é outra coisa em comparação com o que você pode experimentar como ser humano. A solidão é humana, eu não a escondo atrás de uma couraça. Assim, em algumas raras ocasiões, eu me concedo dois dedos de conhaque da Andaluzia, grande reserva de 1866, e brindo no ar a um amigo imaginário, como se quisesse evocar a sua presença física ao meu lado.
Mas você é uma “estrela” das mídias sociais. Não lhe incomodam os tons de estádio ou a violência verbal?
Infelizmente, é apenas o sintoma de um mal-estar mais radical. Veja a Europa, não só a Itália. Todo o continente é atravessado por uma profunda mudança. É como se as raízes do nosso humanismo estivessem se extinguindo. Atenção: não falo apenas das raízes cristãs, mas do Iluminismo, do grande pensamento moderno. Intolerância e racismo são o produto de uma memória curta. Devemos reencontrar uma gramática elementar da humanidade: a barbárie é uma epidemia.
Mas quem deveria guiar essa “recuperação de uma gramática humana”? O pensamento progressivo gagueja.
Bem, o apelo do meu amigo Massimo Cacciari me agradou. Gostaria que muitos o apoiassem.
Mas como o senhor, que não frequenta os bons salões e que sempre se orgulhou disso, apoia depois um manifesto dos intelectuais?
Compartilho as ideias, certamente não mudo meu jeito de ser, muito distante longe dos salões, como você disse, e dos círculos que importam. Já vi muitos que, como eu, partiram de ideias da esquerda e hoje chegaram a um isolamento esnobe. [...]
Quem são seus amigos hoje?
Especialmente pessoas pouco conhecidas. Alguns são famosos, como Cacciari, Galimberti, Recalcati ou o cirurgião Mauro Salizzoni. Outros, ao contrário, eu encontro enquanto trabalham a terra ou amassam o pão.
Com o tempo, a sua capacidade de perdoar se tornou refinada ou se enrijeceu?
Fala-se com muita facilidade de perdão. Também são cúmplices disso certas transmissões de TV ou operações midiáticas de efeito: diz-se “eu te perdoo” com uma leveza que não está na natureza desse ato. O perdão verdadeiro não é uma simples absolvição: é preciso que aquele que perdoam consiga se identificar com aquele que fez o mal; não deve esquecer, mas apostar na mudança do outro.
Você conhece muitas pessoas incapazes de perdoar?
Conheço muitos incapazes de perdoar, acima de tudo a si mesmos. É um dos males que eu encontro com mais frequência: muitas pessoas vêm aqui, hóspedes da comunidade. Eu as vejo: estão inquietas, não sabem ficar ociosas, não sabem estar “apoiadas na sacada”, como eu digo. Elas têm que fazer alguma coisa para preencher um vazio enorme. Para saldar uma conta interior invisível e pesada. Estou convencido de que essa ânsia de perdão midiático é uma espécie de talismã que evocamos para perdoar a nós mesmos.
Existe algo que Enzo Bianchi não consegue se perdoar?
Sim, existe. Em dois casos, eu não estive perto o suficiente de muitas pessoas, assisti impotente a sua perdição. Eu poderia ter feito muito mais, mas fiquei paralisado: pecados de omissão! Nenhum de nós está isento de culpas.
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''À noite, sinto-me sozinho e sofro.'' Entrevista com Enzo Bianchi, monge italiano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU