17 Agosto 2018
Os problemas de moradia aumentam na cidade, e 25% de habitantes moram em favelas. A população se mobiliza, toma espaços e pressiona o Governo federal em busca de soluções.
A reportagem é de Sanne Derks, publicada por El País, 15-08-2018.
No Rio do Janeiro, os problemas de moradia dificultam cada vez mais que os pobres possam viver no centro da cidade. Entretanto, também expõem a criatividade das pessoas na hora de reivindicar seus direitos. A população se mobiliza, ocupa espaços e pressiona o Governo federal em busca de ajuda. Embora sejam acusados de delinquentes, já que as ocupações costumam vir acompanhadas de pobreza, tráfico de drogas e violência, os mais desfavorecidos tentam resistir e lutar por seu direito à moradia.
“O pessoal ria que queríamos morar no centro. Diziam que era impossível, que pobre não pode morar lá. Mas por que não vamos ter direito a isso?”, diz Elisete Napoleão, que vive na Ocupação Manuel Congo, a poucos metros da Prefeitura carioca. O lugar leva o nome do líder de uma das maiores rebeliões de escravos da história do Brasil. “O edifício estava vazio fazia mais de 20 anos.
Entramos num grupo de pessoas e levantamos uma barricada na porta, há 10 anos. Veio a polícia, mas não conseguiu nos tirar. A gente tinha se preparado muito bem. Tínhamos entrado em contato com advogados e conhecíamos nossos direitos. Começamos um processo de negociação e no final reformaram os apartamentos com um programa do Governo federal”, conta.
Embora a moradia seja um dos direitos humanos fundamentais reconhecidos pela Constituição, o Rio sofre graves problemas nesse setor. Cerca de 25% de seus moradores vivem nas favelas, segundo dados de algumas ONGs. Os pobres estão cada vez mais excluídos do centro urbano. Como resultado dos colossais eventos que sediou — a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016 —, o Rio viveu um profundo processo de transformação. A ele se somou o fenômeno da elitização, que agravou a marginalização dos pobres. Áreas centrais com maior percentual de população com baixa renda, como a zona portuária, foram revitalizadas. Os pobres tiveram que ir embora de vários bairros da cidade para deixar lugar para os luxuosos edifícios de classe média. Muitos foram expressamente desalojados, enquanto outros não conseguiram resistir ao aumento dos preços dos imóveis e aluguéis, e para muitos o destino foram as favelas. Os gráficos do índice FIPE-Zap, referência para medir o setor imobiliário brasileiro, mostram isso.
Nos últimos três anos, a população sem teto triplicou, segundo o Observatório de Segurança Pública da cidade. Além disso, os Jogos Olímpicos arruinaram o Estado do Rio, de modo que os mais desfavorecidos não podem esperar que o Governo lhes ofereça um futuro melhor.
Porém, os cariocas tentam reivindicar seu direito à cidade, por exemplo, ocupando edifícios vazios e casas antigas em mal estado. Em primeiro lugar há as iniciativas particulares, pelas quais um grupo de pessoas se instala num espaço abandonado. Esse costuma ser o caso dos casarões coloniais do século XIX. Às vezes, os proprietários originais morreram e os deixaram para seus parentes em Portugal, que nunca foram ao Brasil reivindicá-las. Em alguns casos, as casas vazias são ocupadas por pessoas que procuram um lugar para morar. A lei brasileira proíbe alterar a fachada, mas por trás da sua colorida aparência é frequente que tenham sido subdivididas para acolher mais gente. Com frequência quem entrou primeiro explora o espaço cobrando um aluguel dos outros moradores. Algumas dessas casas foram tomadas por traficantes que vendem drogas nas ruas do bairro da Lapa e no centro da cidade.
Veio a polícia, mas não conseguiu nos tirar. A gente tinha se preparado muito bem. Tínhamos entrado em contato com advogados e conhecíamos nossos direitos. Começamos um processo de negociação e no final reformaram os apartamentos com um programa do Governo federal Outra forma de ocupação é realizada pelos movimentos sociais, que entram em espaços abandonados de maneira organizada, como no caso do Manuel Congo. O objetivo destas iniciativas é instalar-se em um edifício vazio e solicitar financiamento do Minha Casa, Minha Vida, o maior programa de moradia social do Governo federal, executado pela Caixa Econômica Federal. Se a ajuda for concedida, pode-se reformar o edifício, como se fez no Manuel Congo, ou construir um novo, destinado a moradias sociais. O sucesso do Manuel Congo se tornou um modelo de rebeldia e uma fonte de inspiração para iniciativas similares.
Mariana Crioula, alusão a uma escrava que virou modelo de resistência, é o nome do movimento social que ocupou um armazém vazio do porto, situado imediatamente de costas para o Morro da Providência, a favela mais antiga do Rio. Grande parte do edifício está descoberto porque o telhado desmoronou. Há sete anos, o movimento luta por seu direito a uma vida digna. Embora no antigo armazém só vivam permanentemente quatro pessoas em barracos construídos por elas mesmas, o grupo ao qual pertencem está formado por 70 membros que pagam uma cota, comparecem a assembleias e participam ativamente do processo para obter uma moradia. Todos aspiram a conseguir um lar nos apartamentos que o Minha Casa, Minha Vida projeta construir no armazém.
Sete anos de tédio burocrático, reuniões intermináveis e grandes dose de frustração transformaram suas esperanças em desespero. Augusto, um diretor de cinema que não podia pagar o aluguel na favela da Rocinha, onde antes tinha sua casa, agora vive no Mariana Crioula. Comenta que “tudo está preparado. Os arquitetos desenharam o edifício, temos as plantas e os desenhos. Cumprimos todos os requisitos. A única coisa que esperamos é que o banco transfira o dinheiro para que possamos começar a construir, mas não sabemos se esse dia vai chegar.” Segundo um artigo publicado n’O Globo, somente 0,5% dos recursos do Minha Casa, Minha Vida em 2017 foram destinados às pessoas de renda mais baixa, que são as mais vulneráveis e as que mais precisam de uma moradia. Para Augusto, é paradoxal que um banco seja o encarregado de levar a cabo um projeto sem fins lucrativos. “Os bancos querem tirar lucro, não ajudar os pobres. Preferem comprar o edifício, expulsar os sem-teto e construir apartamentos para vender à classe média a preços muito altos.”
Cerca de 25% dos moradores do Rio vive nas favelas. Nos últimos três anos, a população sem teto triplicou no projeto Vito Gianotti, o edifício ocupado era um antigo hotel na área de São Cristóvão, que já estava dividido em quartos. Seus habitantes se cansaram de esperar e começaram a reformá-los do seu próprio bolso. O Quilombo da Gamboa, também na zona do porto, foi ocupado há dois anos. Roberto Santos esclarece que “na verdade, o projeto remonta ao ano de 2016. Entramos em outro edifício e começamos os trâmites com o Minha Casa, Minha Vida. Para que tudo saia bem é fundamental uma boa organização, o que significa, entre outras coisas, um controle rigoroso de quem permanece no edifício e quem vai embora. No nosso caso não funcionou, e os traficantes de drogas pouco a pouco assumiram o controle.” Santos conta que tinha sido eleito líder por seus companheiros. Um dia recebeu uma ameaça de morte, quebraram o computador onde estava sua dissertação de mestrado, e ele teve que fugir. Por medo de ser morto, procurou um lugar seguro onde se esconder e se instalou no armazém vazio atualmente conhecido como Projeto Quilombo da Gamboa.
Há algumas semanas, um incêndio destruiu parte do edifício, e agora seus habitantes vão ter que reconstruir suas moradias provisórias. Os bombeiros foram até lá e quiseram mandá-los embora. Embora os moradores resistissem, ficou demonstrado, como diz Roberto, que “quando você ocupa, pode perder sua casa do dia para a noite”.
O apartheid habitacional no Brasil ficou escancarado com o desabamento do prédio Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, no centro de São Paulo, em maio. O edifício de 24 andares, ocupado por cerca de 150 famílias, pegou fogo e foi ao chão. Três meses depois da tragédia, cerca de 500 pessoas continuam acampadas no Largo, em tendas improvisadas em meio à sujeira e à infestação de ratos e baratas.
Em todo o Brasil, segundo dados do IBGE, mais de seis milhões de famílias — ou aproximadamente 20 milhões de pessoas — precisam de um lugar para viver, ao mesmo tempo em que sete milhões de imóveis estão vazios.
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Ocupações no Rio: quem disse que os pobres não podem viver no centro? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU