17 Agosto 2018
As agências das Nações Unidas estão acompanhando o movimento migratório da Venezuela ao estado de Roraima, no extremo norte do Brasil, alertas às violações de direitos humanos contra as mulheres e a população LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) devido à vulnerabilidade ao tráfico humano, a exploração sexual, a violência, discriminação e preconceito contra as (os) migrantes e as refugiadas e refugiados.
A reportagem é de Eliane Rocha, publicada por Amazônia Real, 15-08-2018.
Desde que se intensificou o fluxo migratório de venezuelanos a partir do ano de 2016, é a primeira vez que a ONU debate sobre violações às mulheres e LGBTs em Roraima. Para a discussão, promoveu o seminário “Migração, Refúgio e Violência de Gênero: promovendo o direito de todas e todos”, realizado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), em parceria com a ONU Mulheres, que aconteceu no mês de julho na Universidade Federal de Roraima (UFRR), na capital roraimense.
A reportagem da agência Amazônia Real ouviu representantes da comunidade LGBTs durante o seminário. A transexual venezuelana Elizabeth Betancourt, 19 anos, disse que enfrenta muita discriminação. “Principalmente por ser uma pessoa diferente, ser venezuelana. Por ser ‘trans’ sofro assédio sexual dos homens”, revela.
Elizabeth chegou em Boa Vista em 2017. Ela contou que a única opção de trabalho foi fazer programas sexuais nas ruas. “Cheguei a fazer programa muitas vezes, sofri violência física, não é isso que queria fazer. Senti na pele a violência das ruas”, disse.
Agora, ela trabalha vendendo salgados e sucos em um lanche ambulante parado em frente à maternidade de Boa Vista. “Eu trabalho das 6 da manhã até às 6 da tarde e ganho 30 reais por dia”, diz. Mas, mesmo assim, continua enfrentando discriminação.
“Minha patroa me chama de puta, fala para os clientes que me pegou nas ‘ochenta reais’ [apelido pejorativo dado às venezuelanas que fazem programa no bairro Caimbé]”, relata. “Eu me sinto ruim, que minha vida é difícil, que meu caminho é mais difícil que o de outra pessoa. É mais difícil ser migrante e trans”, desabafa.
A transexual Francy Lombardi, 28 anos, disse também vê seus direitos violados todos os dias. Há seis meses em Boa Vista, ela teve que se prostituir por falta de emprego. “Sofri violência, fui agredida. Quando fui à delegacia, o policial disse que não podia fazer nada”, queixa-se.
Engenheira industrial, chef de cozinha e cabeleireira em seu país, ela sobrevive vendendo limões nos semáforos de Boa Vista. “É muito difícil ser mulher trans no Brasil, mas não tanto quanto na Venezuela”, compara Francy.
O seminário “Migração, Refúgio e Violência de Gênero: promovendo o direito de todas e todos”, teve o objetivo de juntar as vários organizações não governamentais que já atuam em Roraima, com representantes da sociedade civil e organismos internacionais para aprofundar o debate sobre violência de gênero nesse contexto do fluxo migratório. “Desde o ano passado [2017], as agências da ONU têm trabalhado aqui por conta desse aumento do fluxo de migrantes, mas a gente entende que o serviço já estava aqui, já existia. Então, esse primeiro momento é para entender qual é o contexto atual, o que os serviços têm como desafios, quais os possíveis caminhos”, explica a chefe de escritório da UNFPA, Marcela Ulhoa.
Para o representante no Brasil do UNFPA, Jaime Nadal, é preciso aumentar as respostas e proteção aos migrantes como forma de reduzir as violações aos direitos humanos dessa população que se encontra vulnerável vivendo fora de seu país de origem.
“A proposta é ter esse espaço para compartilhar com representantes do estado, prefeitura, sociedade civil, sociedade pública, grupos de pessoas migrantes ou grupos de pessoas que tem interesse na resposta da questão migratória para tentar, conjuntamente, alguns encaminhamentos”, explica Nadal, ao chamar atenção para os direitos que estão sendo violados de todas as formas.
“Nenhum grupo migrante deveria ficar mais fragilizado ou mais vulnerável pelo fato de ser mulher ou LGBT. Os direitos humanos são universais, inalienáveis, imprescritíveis e aplicados a todo momento, a todas as pessoas”, reforça.
“A migração por si só já é uma violência”, avalia a representante do Núcleo de Mulheres de Roraima, Antonia Pedrosa. “Você sai do seu local de origem, do seu lugar no mundo, você migra, deixa sua casa, amigos, sua cultura para imergir numa cultura totalmente diferente”, analisa, ao opinar que as autoridades públicas precisam criar ferramentas para combater o cenário de violência a qual estão sujeitos os migrantes.
“Temos relatos de violência sexual, mulheres estão no mercado de trabalho tentando sobreviver de diversas maneiras, mesmo assim, sofrem violência psicológica e moral. Tem políticas públicas, mas por amostragem, a gente quer política que possa abarcar o maior número de mulheres”, critica Antonia.
Os imigrantes venezuelanos passaram a buscar refúgio na fronteira brasileira depois que uma crise política e econômica se agravou no governo do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, em 2016.
Segundo um relatório do Ministério da Justiça brasileiro, cerca de 30 mil imigrantes do país vizinho ingressaram pela fronteira em 2017. Desse total, 17.865 solicitaram o refúgio à Polícia Federal. Conforme as autoridades da imigração, ao menos 500 venezuelanos atravessam a fronteira todos os dias, pois continua faltando alimentos, assistência médica e trabalho na Venezuela.
Independente do número de imigrantes, a resposta humanitária das autoridades de Roraima foi ineficaz com decisões de deportações e fechamento da fronteira enquanto a crise na fronteira crescia. Em junho deste ano, o governo brasileiro sancionou as medidas de assistência emergencial para acolhimento de imigrantes no Brasil e descartou o fechamento da fronteira. No entanto, entre os dias 6 e 7 deste mês a Justiça Federal em Roraima fechou a fronteira por 17 horas, milhares de venezuelanos foram barrados na entrada da imigração pela Polícia Federal sob o argumento de que o estado não tinha condições de “amparo humanitário na região”.
Em Boa Vista, que tem uma população de cerca de 330 mil habitantes, já foram montados pelo Exército brasileiro 10 abrigos – seis deles abertos este ano – onde estão vivendo 4,6 mil imigrantes. Já a Polícia Federal diz que mais de 50 mil pessoas solicitaram refúgio este ano no estado. Conforme a prefeitura, 25 mil venezuelanos estão morando na capital. Apesar do grande fluxo de migrantes, a Colômbia é o pais mais procurado pelos venezuelanos, segundo a Acnur.
A pesquisadora Alessandra Ramalho, do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Roraima (UFRR), se dedica faz 1 ano em acompanhar os pontos de prostituição de venezuelanas em Boa Vista. No estudo, ela busca traçar o perfil sociocultural das mulheres e identificar situações de violência.
A atividade da prostituição é reconhecida pelo Ministério do Trabalho no Brasil, desde que as mulheres sejam adultas, mas é vista com preocupação por organizações como a UNICEF porque as mulheres migrantes são mais vulneráveis à exploração sexual de adolescentes e ao tráfico de pessoas.
Segundo a pesquisadora Alessandra Ramalho, as mulheres venezuelanas procuram a atividade da prostituição pelo fato de elas não encontrarem trabalho em Boa Vista. O serviço sexual se apresenta como meio mais rápido de ganhar dinheiro e a chance de voltar para Venezuela levando mantimentos para a família.
Conforme a pesquisadora, pelo menos 1.000 mulheres venezuelanas já passaram pelo ponto de prostituição em Boa Vista, localizado no bairro Caimbé, conhecido como o lugar das “Ochentas”, nome alusivo ao valor do programa sexual, que é de R$ 80. “Há uma rotatividade muito grande [de mulheres], quando a gente volta lá, já não encontra a mesma pessoa, então tenho que começar tudo de novo”, conta a pesquisadora sobre a fluxo de mulheres venezuelanas na atividade da prostituição.
“O tempo que elas [venezuelanas que se prostituem] ficam em Boa vista é relativo, depende da necessidade. Ficam no máximo dois meses e ganham uma média de R$ 1 mil, R$ 1,2 mil a R$ 1,5 mil por mês”, explica ela.
A pesquisadora diz que, quando essas mulheres retornam para a Venezuela, levam o dinheiro do trabalho na prostituição para comprar alimentos para a família que ficou. “Elas ficam lá de 4 a 6 meses [na Venezuela]. É o tempo que conseguem se manter com o dinheiro que levam”, diz.
Sobre o perfil socioeconômico das mulheres venezuelanas, a professora de sociologia da UFRR, France Rodrigues diz que a maioria são responsáveis por sustentar as famílias. “Ela são arrimo de família, é quem empreende o projeto migratório, que consegue recursos econômicos para manter a família na Venezuela”, explica France, que é orientadora da pesquisadora Alessandra Ramalho.
Alessandra contou que, antes de realizar a pesquisa, foi voluntária na Polícia Federal ajudando os imigrantes a preencherem formulários pedindo refúgio, dava informações e oferecia aulas de português. “Assim fui adquirindo a confiança das mulheres que trabalhavam no bairro Caimbé fazendo programas sexuais”, contou.
“Minha pesquisa consiste nas meninas que trabalham relacionadas ao sexo no bairro Caimbé para saber as narrativas e traçar o perfil cultural e social dessas meninas”, informa a estudante.
Durante as entrevistas, Alessandra disse que recebeu muitas denúncias de violências que as venezuelanas sofriam, como xenofobia, ataques de brasileiros que passam no local as agredindo verbalmente. “Eles apontam armas, atiram para cima, apontam facas”, comenta. Tem ainda a reclamação dos vizinhos porque a presença das migrantes em ruas do bairro ocorrem as 24 horas do dia.
“Há todo tipo de violência. A institucional, quando procuram um serviço e são maltratadas por serem venezuelanas; a violência cometida por clientes, maioria brasileiros e, muitos de determinada classe social, que são deputados, funcionários públicos, são policiais”, observa a professora France Rodrigues. Seu contato com a migração vem desde o doutorado realizado na Universidade de Brasília (UnB) sobre identidade brasileira e venezuelana. Depois da defesa da tese, fez pós-doutorado na Espanha com o tema migração de mulheres brasileiras e venezuelanas.
A estudante Alessandra Ramalho constatou que a faixa etária de mulheres venezuelanas trabalhando na prostituição no bairro Caimbé, em Boa Vista, é de 14 anos a 40 anos. Conforme a pesquisa, 60% das mulheres têm escolaridade (ensino médio); 10% têm algum curso superior e 30% chegaram à universidade.
“A maioria das meninas não eram prostitutas, mas tiveram que se prostituir porque era o único trabalho e meio de ganhar dinheiro mais rápido para levar para casa”, diz.
O fato de conseguirem um rendimento alto comparando ao valor da moeda venezuelana com a prostituição, segundo a pesquisadora, acaba atraindo mais mulheres ao Brasil. A pesquisa identificou que, em seu país, a família dessas mulheres não sabe que elas trabalham como prostitutas em Boa Vista.
Nos relatos sobre a violência, Alessandra Ramalho disse que ouviu muitos depoimentos de venezuelanas sobre roubos que elas sofrem dos próprios clientes dos programas sexuais. “Os clientes acabam ameaçando elas, para que não denunciem porque elas podem ser deportadas. Elas não dão queixa por medo e falta de informação sobre seus direitos”, explica a pesquisadora.
Em Roraima, as mulheres migrantes e refugiadas ainda enfrentam situações de desconfiança, xenofobia, estigmatização (devido à prostituição), assédio sexual no trabalho. Já as crianças sofrem o bullying nas escolas. Essas situações foram documentadas pela pesquisa com mulheres migrantes no ambientes de trabalho doméstico realizada pela Agência da ONU para Refugiados (Acnur) e a organização não governamental Iniciativa Reach, e apresentada durante o seminário “Migração, Refúgio e Violência de Gênero: promovendo o direito de todas e todos”, em Boa Vista.
A pesquisa, realizada no período de 19 de maio a 26 de junho deste ano, entrevistou 489 pessoas em bairros da periferia de Boa Vista. Na mesma amostra, o estudo apontou que os brasileiros também demonstram generosidade com os migrantes, fazem doações espontâneas, são cordiais e receptivos.
A pesquisa revelou que as principais ocupações das mulheres venezuelanas, que estão fora dos abrigos em Boa Vista, são trabalhos em limpeza e atividades domésticas. Em segundo lugar, como vendedoras ambulantes.
O levantamento identificou situações de assédio moral e sexual com risco de abuso e atentado violento ao pudor nos ambientes de trabalhos domésticos.
A pesquisa apontou que os venezuelanos e venezuelanas, que vivem na capital de Roraima, trabalham na média de 10 a 15 dias no mês executando serviços informais.
Segundo a pesquisa, as mulheres ganham menos que os homens migrantes e refugiados. Enquanto o valor da diária para homens fica na média de R$ 20 a R$ 90, a das mulheres fica em torno de R$ 30.
Idioma, discriminação, falta de oferta de emprego e ausência de locais de acolhimentos para os filhos durante a jornada de trabalho aparecem como dificuldades encontradas por migrantes e refugiadas para conseguir um emprego e assim sobreviver fora do país de origem, diz a pesquisa da Acnur e da Iniciativa Reach.
A representante da ONU Mulheres no Brasil, Nadine Gasmam, que participou do seminário disse que “quanto mais consolidada for a rede de proteção à mulher de um local, mais preparado ele estará para lidar com crises migratórias.” “As mulheres são fundamentais no processo de estabilidade e reconstrução de uma sociedade e elas precisam ter apoio para assumir esse papel”, afirmou.
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Migrante cidadão: ONU alerta para violações contra mulheres e LGBTs em Roraima - Instituto Humanitas Unisinos - IHU