15 Agosto 2018
Enquanto escrevo estas linhas, estão velando em Imazita o corpo do Pe. Carlos Riudavets sj, Charly, para nós que tivemos a sorte de encontrar com ele em algum momento. Durante a tarde de sábado, os companheiros jesuítas, as irmãs, antigos alunos, pessoas da comunidade e da população de Imaza e Chiriaco se reuniram para rezar juntos, recordar a vida de Charly e tornar, assim, mais suportável sua trágica morte.
O depoimento é de Javier Arellano Yanguas, colaborador de ALBOAN e da Universidade de Deusto - Centro de Ética Aplicada, publicado por Infosj e reproduzido por Religión Digital, 14-08-2018. A tradução é de Graziela Wolfart.
À distância, me imagino cruzando o rio Chiriaco, chegando ao porto da Missão e caminhando pela margem até a capela construída nos anos 70. Naquele momento, o impulso do Vaticano II levou um grupo de jovens jesuítas e religiosas a tomar distância dos modelos missionários tradicionais para assumir com seriedade a cultura Awajun-Wampis como lugar privilegiado da revelação divina.
O jesuíta Carlos Riudavets, rodeado de crianças na missão no Peru (Foto: Religión Digital)
Essa bonita capela, com sua virgem indígena, sua arquitetura selvática e seus símbolos nativos foram uma das primeiras concretizações desse esforço. Pouco a pouco, o otimismo desses primeiros anos de pós-Concílio foi se diluindo. As mudanças na arquitetura e na iconografia eram muito mais fáceis de realizar do que as mudanças de fundo, que eram necessárias. Levar a sério a história, a vida e a cultura indígena requer adentrar em um caminho que não se sabe onde leva.
Nas décadas seguintes, muitos de nós passamos pela missão de Alto Marañón: jesuítas, religiosas, e pessoas voluntárias vindas dos mais diversos lugares. No entanto, menos de uma dezena de pessoas permaneceram e ofereceram a totalidade da vida ao serviço do povo Awajun-Wampis. Charly foi uma dessas pessoas.
Ao dar um passeio agora, em minha memória, por Alto Marañón, revivo três grandes histórias sobrepostas, que me parece importante recordar para fazer justiça à vida e à morte de Charly: uma história de compromisso pessoal, uma história de missão compartilhada e a história aberta ao futuro do povo Awajun-Wampis.
Charly chegou a Alto Marañón em 1980, para trabalhar no Colégio Valentín Salegui. Desde aquele momento foi o pilar sobre o qual se sustentou o colégio. Foi um homem querido pelos alunos e respeitado pelas comunidades e organizações indígenas.
Foi como um pai para muitos jovens indígenas que estudaram no colégio, distantes de suas comunidades. Sempre disposto a colaborar e a acolher. Graças a Charly, chegar a Yamakai-éntsa, após dias de viagem, significava se sentir em casa. Sempre havia lugar para dormir, um prato para comer e uma boa conversa.
Sua longa experiência na selva lhe dava um certo ceticismo diante dos grandes planos que vinham de fora, inclusive aqueles promovidos pela Companhia de Jesus. No entanto, esse ceticismo inicial não lhe impedia de apoiar com convicção as iniciativas, uma vez que se decidia colocá-las em prática. Charly deixou sua vida na formação de jovens indígenas, em um contexto materialmente difícil, com uma grande austeridade de vida, assumindo momentos de grande solidão e dificuldades, e, apesar disso, sempre se destacou por sua afabilidade, acolhida e bom humor. Só por isso entraria já na categoria dos herois.
Mas, além disso, a vida de Charly tem outra dimensão, a missão, que compartilhou com esse gupo de jesuítas e religiosas que entregaram e entregam sua vida pelo povo Awajun-Wampis. Uma missão que tiveram que renovar após o Vaticano II. Uma missão que já não buscava a adesão dos Awajun-Wampis a uma ortodoxia ininteligível para eles como condição para ser “contados” entre os membros da igreja. Isso já não tinha sentido.
A missão para eles foi ampliar a Igreja e enriquecê-la com a experiência do Deus de Jesus que vivem os Awajun-Wampis. Isso supõe se libertar de seguranças, formulações e esquemas teológicos fortemente enraizados para adentrar na vida e na espiritualidade dos indígenas. A tradução prática disso é uma pastoral que se especializa em escutar, mais do que em pregar, e em acompanhar a experiência das comunidades para descobrir como o espírito de Jesus está presente em sua vida. Não é fácil essa tarefa e, além disso, frequentemente trouxe consigo a incomprensão de algumas autoridades eclesiais que não os viam suficientemente comprometidos com a “evangelização explícita”.
Foto: Religión Digital
Em sua vertente social, esse processo de acompanhamento os levou a renunciar ao protagonismo para que fossem os próprios indígenas que assumissem a responsabilidade social e política, mas sem ignorar o devir das comunidades. Assim, em 2009, após o traumático enfrentamento de Baguazo, a Igreja de Alto Marañón foi o principal apoio dos grupos e líderes indígenas para enfrentar a dolorosa situação. Sem dúvida, essa experiência de missão é um tesouro que vale a pena ser conhecido e recuperado para nos ajudar a entender melhor o que tem de catolicidade nisso.
Por fim, as duas dimensões anteriores não têm sentido sem a vida e a história do povo Awajun-Wampis. Charly se apaixonou por eles e pôs sua vida a seu dispor. Nos quarenta anos de sua vida entre eles, a situação mudou enormemente e, com ela, os desafios a serem enfrentados. Há quarenta anos o grande desafio era a falta de educação secundária e a Companhia de Jesus respondeu com criatividade e generosidade, fundando o colégio agropecuário intercultural Valentín Salegui. Hoje há novos desafios que colocam em risco a sobrevivência do povo Awajun-Wampis.
Há desafios que estão relacionados com fatores externos, como o Estado e as empresas extrativas. Estes desafios levaram nos últimos anos uma boa parte das energias das organizações indígenas. Mas há também desafios internos que se referem às mudanças culturais, sociais e de liderança que as comunidades estão sofrendo. Estes segundos são os mais difíceis de abordar e, portanto, os que supõem um maior risco para seu futuro.
Tenho certeza de que Charly continuará acompanhando o povo e ajudará a abordar esses novos desafios. Sem dúvida serão necessárias mais vocações religiosas e leigas que se apaixonem pelos povos indígenas e ofereçam a eles sua vida. Além disso, é preciso facilitar para que os Awajun-Wampis assumam mais responsabilidades eclesiais e tornem a Igreja mais indígena. Por último, devemos nos esforçar para pensar em novas formas de colaboração para que aqueles que, como nós, não podem permanecer na selva, mas nos sentimos preocupados com o futuro do povo Awajun-Wampis, possamos apoiar.
Charly, que tua memória ajude a renovar a missão da Igreja e nos faça melhores servidores do povo.
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Peru. Adeus ao jesuíta "Charly" Riudavets, "herói" dos indígenas peruanos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU