26 Julho 2018
O foco sobre a pílula anticoncepcional eclipsou a finalidade principal do documento, que afirmou a importância de colocar a sexualidade no centro da experiência conjugal.
A reportagem é de Claire Lesegretain e Mélinée Le Priol, publicada por La Croix International, 25-07-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
Promulgada por Paulo VI no dia 25 de julho de 1968, a Encíclica Humanae Vitae, que muitas vezes é reduzida a sua proibição da pílula anticoncepcional, não tem sido compreendida em sua totalidade; na verdade foi rejeitada pela maioria dos casais católicos. Cinquenta anos mais tarde, alguns casais agora defendem sua relevância, apontando para as consequências desastrosas de hormônios artificiais.
A recepção da Encíclica de Papa Paulo VI, Humanae Vitae, se revelou problemática, para dizer o mínimo.
A geração de maio de 1968 percebeu a Encíclica como uma provocação. Muitos católicos desdenharam o documento como "pré-histórico", e um pequeno número considerou como um critério indispensável de fidelidade à Igreja.
Em ambos os casos, as pessoas olhavam principalmente as passagens que tocavam na proibição dos meios de contracepção. Elas tendem a ignorar os 31 parágrafos sobre "a pedagogia do amor" e passagens sobre a paternidade responsável, que forneceram um quadro de humanização para a sexualidade de um casal e foram bastante progressistas para a época.
Na opinião de muitos analistas, foi este fracasso pastoral que levou à divisão que surgiu entre o magistério e o povo católico durante o último terço do século XX.
Mas agora, meio século após a sua publicação, Humanae Vitae voltou para a vanguarda da discussão.
Desde 2012 o uso da pílula anticoncepcional começou a cair e métodos naturais de regulação de natalidade estão despertando crescente interesse. Humanae Vitae finalmente provará ter sido mais "profética" do que "pré-histórica"?
"Não é nenhum dos dois; e na minha opinião é um documento datado", disse Monique Baujard, ex-diretora do Serviço Nacional para a Família e a Sociedade da Conferência Episcopal da França (CEF).
"O tom da Encíclica é paternalista e a proibição bastante infantil", disse ela. "Paulo VI estava certo ao alertar os riscos da contracepção artificial, mas ele não a deveria ter proibido."
Danielle Gaudry, ginecologista, oferece uma avaliação ainda mais dura.
"O documento não deixa espaço para o debate", disse ela, ressaltando que "há 50 anos, a maioria das mulheres católicas têm usado método contraceptivo, que ilustra que o documento não tem sido aplicado na prática."
Da mesma forma, Bénédicte Maufrais, conselheira matrimonial em Rennes, que é presidente da Associação Nacional de Conselheiros de Casamento e Família, observa que "quando um casal menciona contracepção, eles tendem a expressar mais preocupação com questões ecológicas do que com a Humanae Vitae."
"A contracepção como tal não está sendo questionada", disse ela.
Como muitos outros católicos, Baujard e Maufrais não entendem por que Paulo VI falha em seguir o conselho da Pontifícia Comissão que estudou a questão da contracepção artificial de 1963 a 1965.
"A hierarquia da Igreja tomou sua decisão por conta própria sem consultar os leigos, que são a quem concerne essa questão principalmente", disse Baujard.
"A Igreja pode dar um grande passo a frente reconhecendo que talvez tenha se confundido a nível moral com Humanae Vitae", disse Martine Sevegrand, historiadora do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), que escreveu uma tese de doutorado sobre os católicos franceses e a contracepção publicada em 1994.
“Aquilo teria permitido aos casais decidirem em consciência sobre a contracepção dependendo de sua situação, como a Pontifícia Comissão propôs em 1966 e como os bispos franceses sugeriram numa carta pastoral de 1968", acrescenta.
Ciente de que a linguagem da Encíclica não fornece uma resposta às perguntas da época, João Paulo II tentou oferecer um conceito personalista da sexualidade com sua "teologia do corpo".
Papa Francisco, por outro lado, parece preferir enfatizar os benefícios dos métodos naturais ao invés de condenar explicitamente métodos artificiais.
"Muitos casais mostram respeito pelo parceiro e seus ritmos, usando métodos naturais ou a pílula", conclui Alain Napoléoni, sexólogo de Dijon.
"É a qualidade da relação entre o casal que faz a diferença, não os meios utilizados para regular nascimentos" disse ele. "Cada casal em sua singularidade precisa decidir."
Não obstante, será que a Humanae Vitae não tem algo fundamental a dizer aos casais de hoje?
O foco sobre a pílula realmente eclipsou a finalidade principal do documento, que afirmava a importância de colocar a sexualidade no centro da experiência conjugal.
"O documento responde a confusão contemporânea sobre sexualidade", disse Gabrielle Vialla, chefe da Billings França, que sem a menor hesitação, se refere ao "gênio profético de Paulo VI".
"A experiência de casais que se amam e desejam ficar juntos não pode escapar a um ritmo periódico", disse ela. "Os homens precisam olhar para o ciclo feminino, se adaptar a ele e aprender com ele", continuou.
"A Encíclica adverte sobre os perigos de generalizar a contracepção e, portanto, pode ser considerada como visionária", disse o historiador Yves Chiron, autor de L'Église em la tourmente de 1968 (A Igreja em Tormento) publicado este ano.
De acordo com Chiron, estes perigos estão localizados em três níveis:
1) a nível moral, facilitando a infidelidade conjugal;
2) a nível antropológico, reduzindo o corpo da mulher para "um instrumento de prazer egoísta ao homem", como Paulo VI alertou;
3) a nível político, permitindo que as autoridades do governo imponham a contracepção e a esterilização, como ocorreu na China.
No entanto, respeito para o ser humano e o meio ambiente também são relevantes para a condenação da pílula, argumentou Sabrina Debusquat, jornalista especializada em questões de saúde e ecologia, autora do livro "J'eu pare la pilule" (Eu Parei de Usar Pílula).
"Como feminista, estou chateada por esta Encíclica ter sido escrita por homens", disse ela. "Mas acho que, globalmente falando, a Igreja foi, em última instância, visionária. Não podemos jogar com a química da natureza e os nossos corpos com impunidade," disse.
Por outro lado, o jesuíta Bruno Saintôt, diretor do departamento de ética biomédica do Centre Sèvres, disse que é importante não confundir a questão.
"Humanae Vitae não foi absolutamente escrita a partir de uma perspectiva ecológica" disse ele. "Ela alega derivar uma lei ética fundamental a partir de ciclos naturais, mas a lei moral não é diretamente legível tendo em perspectiva a lei biológica”, disse.
Estritamente falando, Humanae Vitae não pode ser vista como profética, disse Saintôt, porque "focaliza o mal intrínseco de algo, ao invés de explorar o bem que poderia ser desenhado a partir de métodos naturais."
Saintôt disse que uma consideração ecológica contemporânea de contracepção é interessante, mas não pode pretender ser baseada na Encíclica.
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Humanae Vitae: profética ou pré-histórica? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU