23 Julho 2018
“Assim como para Trump, embora de maneira diferente, a questão que dará dor de cabeça para Francisco daqui para frente é: quando flexibilidade e pragmatismo se transformam em apaziguamento covarde?”, escreve John L. Allen Jr., jornalista, em artigo publicado por Crux, 22-07-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
O presidente dos EUA, Donald Trump passou a maior parte da semana passada tentando fazer parecer que sua controversa reunião com Vladimir Putin tinha sido um avanço.
"A reunião com a Rússia foi um grande sucesso, exceto para o verdadeiro inimigo do povo, as mídias fake news", insistiu o presidente Trump num tuíte na quinta-feira.
Enquanto Trump se esforça para mostrar que sua estranha relação com Putin é positiva, vale a pena recordar que ele não é o único líder mundial a ter um "problema Rússia". O Papa Francisco tem também. E, embora o Pontífice tenha uma perspectiva e uma agenda diferentes do líder dos EUA, talvez estejamos também à beira de um importante ponto de virada em seus laços com a Rússia.
Desde o início de seu papado em julho de 2013, a posse de Francisco parecia cheia de promessa na frente ecumênica, inclusive com a Rússia. Finalmente, a Igreja Católica tinha um líder do mundo em desenvolvimento que não carrega a bagagem de séculos de rivalidades entre Oriente e Ocidente da Europa e, mais recentemente, as tensões da guerra fria entre a antiga União Soviética e a Aliança Atlântica.
O novo Pontífice também trouxe uma visão de mundo que lhe permite operar fora das estruturas diplomáticas e geopolíticas habituais. Por exemplo, Putin reconheceu a ajuda de Francisco em evitar uma ofensiva ocidental anti-Assad na Síria, e em geral o Vaticano compartilha a visão com Moscou de que tentar destituir o líder sírio seria um erro.
Além disso, Putin e seus aliados ortodoxos saíram por cima quando Francisco não repreendeu a Rússia com virulência por sua intervenção na Ucrânia em 2014. Em certo ponto, o próprio Francisco ofendeu sua Igreja Greco-Católica na Ucrânia, a maior e mais influente Igreja Oriental em comunhão com Roma, descrevendo o conflito no país como "fratricida" - sugerindo que ele seria em grande parte interno ao invés do resultado de uma agressão russa.
Esse degelo entre Moscou e Roma, culminou num primeiro encontro entre Francisco e o Patriarca Kirill de Moscou. O encontro aconteceu em Havana, Cuba, em fevereiro de 2016, enquanto o Papa se dirigia para o México. A declaração conjunta que os dois homens lançaram revoltou ainda mais o sentimento greco-católico, pois se referia a eles como "uniatas", um termo que não cabe mais atualmente e cujo uso foi abandonado pela maioria dos discursos ecumênicos oficiais.
A declaração conjunta também evitou qualquer crítica à política russa na Ucrânia, ou qualquer menção do sofrimento dos católicos ucranianos durante a era soviética.
Tudo isso trouxe reação contra o Papa. Críticos acusaram-no e ao Vaticano de excessiva "correção ecumênica”, insistindo que ele deveria ser mais claro sobre a Ucrânia, e que deveria desafiar a Ortodoxa Russa a conter a hostilidade em relação aos greco-católicos e às Igrejas orientais em geral.
Basicamente, aqueles católicos pensam que os ortodoxos russos querem o diálogo ecumênico em seus termos, e gostariam que o Papa lembrasse aos russos quem tem realmente preponderância no cristianismo.
É possível suspeitar que o tratamento complacente do Vaticano tenha relação com a proteção dos interesses dos católicos dentro da Rússia em si, mas essa geralmente não é a impressão deles.
"Como nossa própria Igreja é pequena e fraca por si só, nos alegramos se estes contatos com a Santa Sé ajudaram a dar alguns pequenos passos, mas nada mais", disse o mons. Igor Kovalevsky, secretário-geral da Conferência Episcopal da Rússia, em entrevista ao National Catholic Reporter em maio.
"Tudo isso parece estar acontecendo sobre nossas cabeças sem muita referência às condições locais", disse Kovalevsky, sugerindo que, seja o que for que o Vaticano está querendo em sua relação com Moscou, incentivar o crescimento e o fortalecimento da Igreja local não parece estar entre os principais objetivos.
Tudo isso pode estar chegando a um desfecho em breve se, como esperado, o Patriarcado Ecumênico da Constantinopla, o tradicional "primeiro entre iguais" do mundo ortodoxo, reconhecer a "autocefalia", a independência do ramo da Igreja Ortodoxa na Ucrânia que atualmente não faz parte da Igreja Ortodoxa Russa.
Os líderes da Igreja ucraniana independente esperavam que o decreto fosse emitido antes de 28 de julho, quando será comemorado o aniversário de 1030 anos do batismo da Rússia de Kiev. Agora parece que o mais rápido que pode sair é em agosto, quando se reunirá o sínodo do Patriarcado Ecumênico.
A Igreja Ortodoxa Ucraniana está expressando confiança no resultado, especialmente após a licitação para autocefalia ser apoiada em abril pelo presidente do país, Petro Poroshenko e pelo Parlamento nacional.
Embora a Igreja Greco-Católica oficialmente não tenha posição sobre assuntos ortodoxos internos, é um segredo aberto que a maioria dos ucranianos católicos apoia a autocefalia, vendo como um passo importante para uma Ucrânia verdadeiramente independente. Em um nível prático, membros das igrejas católica e ortodoxa ucraniana colaboram profundamente numa grande variedade de frentes e tem diálogos teológicos de longa data.
A Igreja Ortodoxa Russa, contudo, alertou sobre um “cisma” na ordem semelhando ao de 1056, caso Constantinopla reconheça a autocefalia.
Em maio, numa audiência com o clero russo liderado pelo Metropolitano Hilarion de Moscou, Francisco fez alguns comentários interpretados como amigáveis pelos russos.
"A Igreja Católica, as Igrejas Católicas não devem interferir nos assuntos internos da Igreja Ortodoxa Russa, nem mesmo em questões políticas", disse Francisco nessa ocasião. "Esta é minha posição e a posição da Santa Sé atualmente. Aqueles que se o fizerem não estarão obedecendo a Santa Sé."
A questão que se coloca é até que ponto Francisco e o Vaticano estão dispostos a aplacar as sensibilidades russas, assumindo que o decreto aconteça.
Por exemplo, quando o Vaticano estiver organizando encontros ecumênicos no futuro, omitirá a autocéfala Igreja Ortodoxa Ucraniana da lista de convidados a fim de assegurar uma participação russa?
No início deste ano, havia rumores sobre uma segunda reunião entre Francisco e Kirill - possivelmente quando o Papa viajou para Bari, na Itália, em 07 de julho, ou quando viajará para os países bálticos em setembro.
O Vaticano estaria disposto a se distanciar dos rivais ucranianos de Moscou para fazer isso acontecer?
Há muita coisa em jogo. Os russos ortodoxos representam algo como entre a metade e dois terços de todos os crentes ortodoxos no mundo, dependendo de como você conta, e não há nenhum sério desfecho ecumênico se eles não estiverem envolvidos.
Além disso, a Rússia é uma grande potência, e se o Vaticano quer agir como uma voz da consciência na cena mundial, o relacionamento com Putin e sua equipe é a única opção realista.
Assim como para Trump, embora de maneira diferente, a questão que dará dor de cabeça para Francisco daqui para frente é: quando flexibilidade e pragmatismo se transformam em apaziguamento covarde?
Até agora, para ambos os homens, a resposta parece continuar sendo um trabalho em andamento.
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De maneiras diferentes, Francisco e Trump compartilham um problema com Putin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU