04 Abril 2018
A catolicidade da Igreja não é medida apenas em termos da ortodoxia de seu conteúdo, mas também em termos de como esses ensinamentos são praticados.
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de teologia e estudos religiosos da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado por La Croix International, 03-04-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A Igreja Católica e as democracias constitucionais mundiais estão enfrentando hoje o mesmo desafio crítico – de que modo, como instituições, elas podem representar de modo credível o seu povo. Vimos isso na Igreja há alguns dias, depois que cerca de 300 jovens que se reuniram em Roma para oferecer seus pontos de vista sobre a próxima sessão do Sínodo dos Bispos emitiram seu documento final.
Seu texto foi apenas a ocasião mais recente para que os críticos habituais do Papa Francisco, especialmente nos Estados Unidos, mais uma vez atacassem o papa. Os críticos acusaram os adolescentes e os jovens adultos que elaboraram e aprovaram o documento final de simplesmente “papaguearem” o papa e de serem manipulados por ele. Os jovens autores desse documento negaram oficialmente as acusações.
Curiosamente, ao negar as acusações, os jovens também apontaram para a lacuna entre o saudável ethos eclesial modelado pelo seu encontro em Roma e a polarização que se tornou tão evidente entre os católicos nos Estados Unidos. Muitos jovens em todo o mundo perguntaram a Katie Prejean, uma das participantes dos EUA, se “os estadunidenses estão realmente entalados na garganta uns dos outros o tempo todo” e se eles se odeiam tanto quanto parece do lado de fora.
Essa crítica a Francisco é uma nova forma daquilo que o papa de 81 anos chamou de “hermenêutica conspirativa” (no original em italiano, “ermeneutica conspirativa”). Francisco usou a frase durante a assembleia do Sínodo dos Bispos de 2015 para denunciar aqueles que afirmam que certos desenvolvimentos atualmente em curso na Igreja são o produto de um esquema ou de um complô.
É irônico que os críticos neotradicionalistas do papa estejam agora exigindo que o Sínodo dos Bispos seja mais representativo de todos os vários membros e grupos da Igreja. Essas mesmas pessoas não tiveram tal preocupação durante os pontificados de João Paulo II e Bento XVI, que estavam muito menos dispostos a dar esse papel ao Sínodo.
Mas tais críticas contra os preparativos para a assembleia de outubro próximo sobre a juventude são muito mais insidiosas do que as críticas contra o papa. Elas vão ainda mais longe ao questionar a credibilidade do papel representativo do Papa Francisco na Igreja.
À primeira vista, essas queixas contra os métodos do papa para desenvolver a sinodalidade parecem apenas outro modo de tentar politizar seu pontificado. Certos críticos estadunidenses, em particular, atacam Francisco porque sua visão da Igreja não corresponde à narrativa política deles sobre o catolicismo institucional. Eles têm insistido nisso desde a eleição dele há cinco anos.
Mas há algo mais profundo acontecendo agora. Ao fortalecer a sinodalidade com a Igreja, Francisco também está oferecendo ao mundo de hoje um modelo de representação efetiva aos nossos órgãos sociais e políticos.
“Uma Igreja sinodal é como um estandarte levantado entre as nações (cf. Is 11, 12) em um mundo que – embora invocando participação, solidariedade e transparência na administração da coisa pública – frequentemente entrega o destino de populações inteiras nas mãos ávidas de pequenos grupos de poder”, disse o papa em seu discurso de 2015 para marcar o 50º aniversário da instituição do Sínodo dos Bispos.
O discurso de Francisco sobre a sinodalidade e a maneira como ele está transformando o trabalho das assembleias sinodais são importantes para entender o significado de seu pontificado. Existem muitos paralelos entre a crise de representação nos nossos sistemas democráticos e a crise de representação na Igreja. Em ambos os casos, é uma crise de encarnação (o que incorporamos como povo), de imaginação (como expressamos aquilo que somos) e de representação vicária (quem e o que nos faz sentir representados).
No que concerne à Igreja, Francisco está tentando tornar o Sínodo mais representativo. Paulo VI instituiu o Sínodo dos Bispos em 1965 durante a sessão final do Concílio Vaticano II. Ele esperava que ele fosse representativo da Igreja em um sentido muito limitado, isto é, através dos bispos. Era um híbrido entre uma Igreja antirrepresentativa e monárquica (pré-Vaticano II) e uma Igreja que estava crescendo na crença de que algum tipo de representação deveria fazer parte do processo eclesial (Vaticano II).
Durante o século XX e especialmente entre a Segunda Guerra Mundial e o Vaticano II, a Igreja Católica aceitou as ideias de democracia política, representativa e constitucional – pelo menos ao nível da história da tradição católica. No nível eclesiológico, ela ainda está tentando discernir quanto da representação moderna pode fazer parte da Igreja institucional.
Francisco não tem medo de deixar que as pessoas sejam participantes ativas no processo eclesial. É verdade que seu pontificado deu apenas pequenos passos, mas ele o fez em uma direção diferente da de seus antecessores.
No entanto, há um novo problema hoje. As democracias estão vivendo uma crise relacionada à ideia de representação e ao ideal do secular. E isso está tendo um impacto sobre a Igreja. A Igreja Católica está alcançando somente agora a revolução democrática dos séculos XIX e XX, enquanto a democracia representativa está sendo desafiada pelo mundo virtual das mídias sociais e das redes sociais.
O que é verdade para o nosso processo político – o perigo de manipulação do consenso através de perfis automatizados que podem manter ocultos os rostos reais – também levanta um problema para a sinodalidade na Igreja hoje. Embora seja difícil imaginar, em um futuro próximo, um WikiSínodo ou o Concílio Ecumênico da Internet, não há dúvida de que a virtualização da experiência eclesial nas mídias sociais pode ser usada para influenciar o processo e os resultados da tomada de decisões na Igreja.
Vimos isso quando os participantes da reunião pré-sinodal dos jovens em Roma apontaram para a lacuna entre suas discussões em pessoa e a agenda impulsionada por alguns grupos nas redes sociais.
“Um consistente bloco de mais ou menos 30 indivíduos inundou as seis páginas privadas do pré-sínodo no Facebook com elogios à missa tradicional em latim, empurrando-a por um tempo para o topo dos trending topics nos contadores de mídias sociais”, disse um dos participantes em Roma.
Ainda estamos tentando entender como fazer um bom uso das mídias sociais na Igreja. Mas isso é perigoso quando os proponentes de um catolicismo supostamente mais tradicional e ortodoxo, que pensam que estão sendo marginalizados pelo Sínodo do Papa Francisco, usam as mídias sociais para se oporem aos resultados oficiais da experiência sinodal composta por pessoas reais. Suas táticas revelam um “senso da Igreja” muito fraco, uma compreensão quase-leninista da filiação à Igreja.
A credibilidade da Igreja se baseia em sua fidelidade ao Evangelho. Mas o que é típico da Igreja – em comparação com cultos e seitas – é o reconhecimento tácito de que as instituições e os órgãos eclesiais ainda são, embora inadequadamente, representativos da Igreja Católica, apesar de todos os seus limites e falhas, mais do que pequenos grupos com sua agenda própria. Essa é uma das principais diferenças entre a Igreja e outros grupos religiosos, como por exemplo o Islã, que não tem nenhuma representação visivelmente unificada em um determinado país no Ocidente.
Parte das táticas de insurgência do catolicismo neotradicionalista – muito diferente daquilo que poderíamos chamar de catolicismo conservador clássico – é o esforço constante de minar a função representativa do pontificado de Francisco e das decisões tomadas pelos órgãos e eventos eclesiais convocados por esse pontificado.
A catolicidade da Igreja – seus ensinamentos e ações – não é apenas medida em termos da ortodoxia de seu conteúdo, mas também em termos de como esses ensinamentos e ações são decididos e praticados. A representação na Igreja não é o mesmo que a democratização da Igreja. Mas uma cultura da participação enfraquecida significa também uma capacidade mais fraca da Igreja de representar, isto é, de tornar possível a presença efetiva da Trindade através de Cristo e do Espírito.
Solapar, em nome de uma ideia idiossincrática de ensino ortodoxo, a legitimidade das instituições que cooperam na representação de Cristo na Igreja significa trabalhar na direção de um sistema autoritário-corporativo ou, do outro lado do espectro, de um sistema populista-demagógico. A Igreja Católica representada na assembleia preparatória ao Sínodo sobre a juventude é mais representativa da Igreja – com todos os seus limites – do que as opiniões expressadas em um tuíte ou em uma coluna de opinião.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Sinodalidade e seus perigos: pequenos passos rumo a uma Igreja mais representativa. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU