27 Março 2018
Em sua última homilia pública antes de ascender ao trono de São Pedro, o cardeal Joseph Ratzinger proferiu sua frase, sem dúvidas, mais famosa: "Estamos construindo uma ditadura do relativismo", disse, "que não reconhece nada como definitivo". Esta frase pegou e tornou-se um grito de guerra para o testemunho público da Igreja na época de Bento XVI.
O artigo é de Matt Malone, S.J., publicado por América, 23-03-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Longe de mim querer contradizer a tese de um dos maiores pensadores cristãos do nosso tempo, mas ler a edição atual da América me fez revisitar essa homilia famosa e questionar a precisão da reivindicação central. Para ser justo, o então cardeal Ratzinger falava principalmente da trajetória de pós-conciliar do pensamento eclesial. Mas como forma de compreensão do que está acontecendo na nossa política contemporânea, temo que não seja esse o alvo, principalmente porque a situação parece pior do que a descrita por ele.
Acredito que o que o cardeal Ratzinger entende por "ditadura do relativismo" é um movimento sociopolítico que se recusa a reconhecer a realidade objetiva última chamada "verdade". Embora seja um conceito teórico coerente, quanto mais colocamos os pés no chão mais parece que as batalhas travadas em domínio público não se tratam tanto da existência de verdades supremas, mas de quais "verdades" absolutas vão reger questões públicas. Nesse sentido, os avisos do Papa Francisco sobre os perigos da ideologia e da "colonização ideológica" parecem ainda mais relevantes.
Na última página da última edição, Thomas Rosica, C.S.B., da fundação Salt and Light Catholic Media, no Canadá, descreve como o governo do país mudou suas exigências para grupos que buscam financiamento federal no programa de empregos de verão, insistindo que eles não se opõem a "direitos humanos", bem como os direitos reprodutivos. Isso não é novidade. Justin Trudeau, o atual primeiro-ministro do Canadá, deixou claro que acredita que o acesso ao aborto é um direito humano fundamental. Ele chegou a silenciar membros do próprio partido político que discordam dessa ideia.
Enquanto isso, ao sul da fronteira canadense, em Vermont, Michael O'Loughlin relata que escolas públicas católicas foram proibidas de ter acesso a fundos públicos recém-disponibilizados apenas por serem escolas religiosas. O professor Rick Garnett, da Universidade de Notre Dame, caracteriza o conflito corretamente: "trata-se de se um benefício amplamente disponível e totalmente 'secular' deve ser suspenso simplesmente como uma penalidade" para uma escola religiosa.
Os protagonistas de ambas as histórias estão fazendo afirmações com base na verdade. A alegação de Trudeau é absoluta: é tão objetivamente óbvio que o acesso ao aborto é um direito humano que as pessoas que pensam diferente não devem poder expressar sua opinião nem ter acesso a fundos públicos de qualquer tipo. E é este o caso, em sua opinião, e não importa se ela vem da fé religiosa ou exclusivamente do uso da razão. Temos de reconhecer que isso é muito diferente de como as pessoas pensavam e discutiam a questão poucos anos atrás. Naquela época, o governo muitas vezes dizia ser oficialmente agnóstico em relação à moralidade na questão do aborto e às reivindicações de verdade concorrentes. Agora, segundo Trudeau, o governo fixou essas declarações a favor de um dos lados e afirma que se justifica, portanto, o governo não apenas aplicar um padrão mínimo de acesso ao aborto, mas também promovê-lo como um bem moral.
E ainda que o caso em Vermont possa parecer uma simples questão de Igreja e Estado, é mais perverso do que isso. É verdade que muitos estados dos EUA proíbem o uso de fundos públicos por escolas paroquiais. Tais proibições foram firmadas um século atrás por legisladores protestantes, sobretudo para penalizar escolas católicas rivais. Isso é muito claro nos registros históricos. Mas embora essa guerra estivesse no núcleo das concepções religiosas concorrentes de um Deus único e verdadeiro, a atual, em Vermont, trata de a religião ocupar algum lugar na vida pública. Agora os oponentes das escolas religiosas estão dizendo, implicitamente, que há verdades, que as detemos, e que não apenas a religião não é uma das vias de acesso a essas verdades, mas é sua inimiga.
O que temos, portanto, não é uma ditadura do relativismo em que a verdade não existe, mas uma ditadura muito mais perigosa do positivismo, segundo a qual a verdade só existe de forma independente da fé e passa a existir por meio da força legal bruta. Já não ponderamos, segundo Cathleen Kaveny, o que devemos a pessoas que pensam diferente. "Ninguém está perguntando isso, e se colhe o que se planta".
O resultado é uma uniformidade ideológica imposta e monitorada pelo Estado, uma situação em que as minorias, religiosas ou não, são sempre as mais afetadas. Como já disse o pai de Trudeau e primeiro-ministro antecessor: "uma sociedade que enfatiza a uniformidade é uma sociedade que gera intolerância e ódio."
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O que é mais perigoso do que uma ditadura do relativismo? Uma ditadura do positivismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU