08 Março 2018
Mulheres seguem recebendo e tendo menos oportunidades que homens no mercado de trabalho. Mas está cada vez mais difícil fingir que essa diferença não existe.
A reportagem é de Maíra Mathias, publicada por EPSJV/Fiocruz, 06-03-2018.
Aconteceu em janeiro. Numa competição de skate em Santa Catarina, um homem e uma mulher sobem ao pódio. São fotografados. Muita gente só foi perceber o que estava errado com a cena depois, quando a imagem caiu nas redes sociais. Enquanto a atleta Yndira Asp segura um prêmio de R$ 5 mil pelo primeiro lugar na competição feminina, seu colega de esporte, Pedro Barros, leva para casa um prêmio bem maior, de R$ 17 mil, pela masculina. Enquanto isso, muito longe dali, na Islândia, o comecinho de 2018 trouxe uma vitória histórica para o movimento feminista. O país se tornou o primeiro no mundo a proibir que empresas paguem salários diferentes para homens e mulheres que exercem a mesma função. E embora a realidade dos demais países esteja mais parecida com a primeira situação do que com a segunda, a desigualdade de gênero no mercado de trabalho está cada vez mais sob os holofotes. Literalmente.
O assunto do momento é a indústria do entretenimento nos Estados Unidos. Por lá, diversas atrizes e personalidades de Hollywood criaram o #MeToo. Embora o movimento tenha sido colado somente às denúncias de assédio sexual nos ambientes de trabalho, desde o início toca em uma questão importante: a forma como homens poderosos prejudicam carreiras de mulheres que não se submetem às suas chantagens. Em artigo publicado no jornal New York Times, a atriz Salma Hayek expôs a sua experiência com o produtor de cinema Harvey Weinstein, alvo de dezenas de denúncias. Ela conta como Weinstein ameaçou tirá-la tanto do papel principal quanto da produção de ‘Frida’, filme que narra a vida da pintora mexicana Frida Khalo, uma iniciativa de Hayek que, durante anos, trabalhou no projeto. Outras atrizes, como Rosanna Arquette e Marisa Tomei, foram colocadas na “geladeira” por Weinstein no ápice de suas carreiras na década de 1990. Com sua influência, ele fez com que não conseguissem mais bons papeis em nenhum estúdio durante anos.
Na toada das denúncias, é claro, pipocaram muitas - mas muitas - matérias levando a público as diferenças salariais entre os atores e as atrizes. Uma delas poderia ilustrar o verbete contrassenso no dicionário. Depois das denúncias de assédio no ambiente de trabalho contra o ator Kevin Spacey, decidiu-se regravar um filme já pronto em que ele estava. Assim, as cenas tiveram que ser refeitas. Eis que o ator Mark Wahlberg ganhou 1,5 mil vezes mais do que Michelle Williams para voltar a filmar. Ele ganhou US$ 1,5 milhão; ela mil dólares. E a ironia: o nome do filme é ‘Todo o dinheiro do mundo’.
“Sabe como eu chamo isso? Fogo de monturo. Estava pegando fogo por baixo, ninguém via. Aí alguém passou, lascou um fósforo - e esse fósforo aceso foi a grita das americanas”, descreve Hildete Pereira de Melo, professora aposentada da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pioneira dos estudos brasileiros sobre desigualdade de gênero no mundo do trabalho. “E aí as pessoas passam a enxergar de verdade esses absurdos. Não engolem mais o prêmio diferente no skate. O fogo de monturo explodiu”, compara.
Mas será que um movimento como o #MeToo pode repercutir na vida das mulheres em geral? As que não estão no foco das atenções? Aquelas que, historicamente, são as mais vulneráveis: as pobres, as negras, as mulheres da periferia? “Eu acho que essas denúncias ajudam bastante. Tudo é poderoso na medida em que a realidade é questionada e mais gente esperneia”, afirma a pesquisadora, que, no entanto, pondera que essa onda de atenção que o tema tem gerado pode quebrar de uma hora para outra. E, por isso, é preciso ir muito além das denúncias e constituir uma base de mulheres politizadas.
“É preciso que a base sinta e tome para si a discussão a fundo. Que se engaje. A Islândia, por exemplo, tem um movimento de mulheres fortíssimo que conseguiu fazer uma greve feminina total em 24 de outubro passado. Aqui até tentamos fazer uma paralisação nacional em 2017. E nem era por igualdade de salário, como lá, mas contra a violência, por causa dos feminicídios que têm repercutido. E nem era o dia todo, apenas duas horas. Não conseguimos adesão em massa”, lamenta.
As mulheres representam 51,3% dos 208 milhões de brasileiros. São maioria. Mas no mercado de trabalho, na política, em cargos de chefia e em muitos outros espaços isso não se expressa. Nas eleições de 2016, representaram 31,6% do total de candidatos, calculou a Folha (16/02). No Congresso, são apenas 19,9% dos parlamentares. Há 27 anos, são majoritárias no ensino superior e representam 49% das bolsistas do CNPq. Mas esse número cai pela metade quando falamos das bolsas mais prestigiosas da agência, a categoria 1A (Globo, 23/01).
Relatório publicado anualmente pelo Fórum Econômico Mundial comparou 144 países em 2017. O Brasil está na 90o posição no ranking de equidade de gênero – e muito disso se deve à baixa representatividade que as mulheres têm na política e da discrepância nos salários. Por aqui, a renda feminina média corresponde a 58% da masculina. A média salarial no ano foi estimada em R$ 36.330 para mulheres e R$ 62.860 para homens. Ao invés de melhorar, o país vem piorando. Em 2016, estava na 79ª posição e, em 2006, na 67ª.
“Deixamos de ser apenas 20% do mercado de trabalho na década de 1970 para chegar aos 45% nos anos 2000. Mas isso está estacionado desde então”, acrescenta Hildete. E o panorama que está se armando diante do “desmantelo” da legislação do trabalho não é bom, alerta. Em fevereiro, o Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou que o desemprego havia saltado de 11,5% para 12,7%, maior índice já registrado desde que se começou a fazer pesquisas do tipo no país. E são justamente as mulheres as mais prejudicadas. A conclusão, que já é consenso entre cientistas, foi de novo confirmada por uma pesquisa divulgada no dia 20 de fevereiro pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) e pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas. Elas representam 59% daqueles que procuram emprego; demoram mais tempo para se reinserir no mercado (15 meses contra os 12 meses levados pelos homens); e ocupam menos vagas formais (34,9% versus 46,4%). E é justamente a informalidade que está puxando a ‘recuperação’ do mercado de trabalho. Segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) contínua do IBGE, o país tem 11,1 milhões de trabalhadores sem carteira, enquanto 23,1 milhões entram na categoria ‘por conta própria’. A soma de ambos supera em 900 mil o número de pessoas com carteira assinada. “E o emprego formal será com trabalho intermitente”, a modalidade mais imprevisível e que paga menos, lembra Hildete. “Ao longo de todo o século 20 as mulheres sempre tiveram uma taxa de desemprego maior que a dos homens. Embora não diferencie entre homem e mulher, é claro que num mundo do trabalho já desigual, a reforma trabalhista liberal penalizará mais as mulheres”, garante a pesquisadora.
Ao mesmo tempo, ganha musculatura no país um discurso conservador que diminui a relevância das iniquidades de gênero (quando simplesmente não nega sua existência). Embora o principal investimento das forças sociais de direita seja na chamada ‘pauta moral’, há riscos de esse discurso contaminar também o mundo do trabalho? A resposta é sim, segundo Hildete. Mas não imediatamente, já que na avaliação da pesquisadora, esse ‘trabalho’ a direita liberal vem fazendo. “Contudo, o obscurantismo trazido por essa narrativa de ideologia de gênero, que tenta convencer os pais de que abordar essas questões na escola é doutrinação e quer proibir as crianças de discutir o que é ser homem, o que é ser mulher na nossa sociedade é um retrocesso muito grande. No Brasil, ainda temos muito o que conquistar então qualquer passo atrás é grave”, diz.
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