05 Novembro 2017
A ideia de que a natureza humana é inerentemente competitiva e individualista não é só prejudicial; é também contestada pela psicologia, neurociência e biologia evolutiva, afirma George Monbiot em seu novo livro. Out of the Wreckage: A New Politics for an Age of Crisis [algo como: “Além das ruínas: Uma Nova Política para uma Era de Crises”] apresenta um argumento convincente de como podemos reorganizar nosso mundo para melhor, de baixo para cima.
George Monbiot acredita ardentemente na “política do pertencimento”. Em entrevista a Mark Karlin do sítio Truthout ele explica o argumento exposto no novo livro: os seres humanos são altruístas, mas precisamos de um novo discurso de empatia e desenvolvimento compartilhado para superar a propaganda do discurso neoliberal.
A entrevista é publicada por Outras Palavras, 03-11-2017. A tradução é de Camila Teicher.
Eis a entrevista.
Você começa seu livro destacando a importância das narrativas que aceitamos, enquanto membros de uma sociedade. Como chegamos a este ponto, em que a narrativa neoliberal prevalece?
Começando pela fundação, por Friedrich Hayek e outros, da Sociedade Mont Pèlerin em 1947. Os neoliberais, com o apoio de alguns financiadores muito ricos, construíram uma espécie de rede internacional. Estabeleceram think tanks, patrocinaram e se apropriaram de departamentos acadêmicos, levaram jornalistas e editores a suas reuniões e conseguiram inserir assessores nos departamentos políticos mais importantes. Eles sabiam que, como a social-democracia keynesiana era amplamente aceita pelos partidos em todo o espectro político, não tinham chance de sucesso imediato. Mas foram pacientes. Ao longo de trinta anos, construíram suas redes, refinaram seus argumentos e atraíram cada vez mais pessoas a sua órbita. Sabiam que, quando uma crise econômica e política surgisse, estariam prontos para entrar em ação. Como Milton Friedman destacou, “quando chegou o momento em que era necessário mudar… havia uma alternativa pronta para ser aplicada”.
Acima de tudo, eles tinham algo de que seus oponentes careciam: uma nova narrativa. A cada geração, mais ou menos, as narrativas políticos precisam ser renovados ou substituídos, em parte porque a política por eles gerada se esgota ou é corrompida ou enfraquecida por ataques; em parte porque as pessoas tornam-se apáticas e complacentes. Este é o grande erro que nós, que desejamos uma política generosa e inclusiva, cometemos: não fomos capazes de gerar um a narrativa política nova e bem desenvolvido desde que John Maynard Keynes escreveu sua Teoria Geral em 1936. Esse nosso fracasso é uma receita para um eventual colapso.
O neoliberalismo é, em essência, um esquema para benefício próprio: uma teoria elaborada que funciona como uma desculpa para que os muito ricos se isentem das “limitações” da democracia – impostos, regulações, salários e condições de trabalho decentes para seus empregados, cuidado para com o mundo vivo e todas as demais decências que devemos uns aos outros. No entanto, o neoliberalismo “pegou” porque foi enquadrado dentro da estrutura narrativa política clássica, que sempre funcionou ao longo da história, a qual chamo de “Discurso da Restauração”. Funciona da seguinte forma:
A desordem aflige o território, causada pelas forças poderosas e nefastas que agem contra os interesses da humanidade. O herói – que pode ser uma única pessoa ou um grupo –revolta-se contra essa desordem, combate as forças nefastas, vence-as apesar dos prognósticos pessimistas e restaura a ordem.
Essa é uma metanarrativa fundamental à qual estamos inerentemente ligados. Eles armaram sua política em torno dessa estrutura e enunciaram seu discurso com extravagância e poder persuasivo. A razão pela qual estamos emperrados no neoliberalismo – apesar de seus fracassos manifestos, particularmente a grande crise iniciada em 2008 – é o fato de que seus oponentes não produziram nenhum Discurso de Restauração próprio, novo e coerente.
É isso que procuro abordar em Out of the Wreckage. O livro parte do sucesso do neoliberalismo e de outros movimentos que usaram esse enquadramento narrativo e constrói um novo Discurso de Restauração que, acredito eu, é apropriado para o nosso tempo.
A alegação de que as pessoas são altruístas e comunitárias por natureza está implícita e explícita no seu livro. Dado o atual triunfo das duras narrativas individualistas na maioria das nações desenvolvidas e produtoras de matérias-primas, que evidência subjaz a sua alegação de que somos inerentemente parte de uma sociedade do pertencimento?
Nos últimos 20 anos, aproximadamente, houve uma notável convergência de descobertas na neurociência, psicologia, antropologia e biologia evolutiva. Apontam para o fato de que a humanidade é “espetacularmente incomum se comparada aos animais” em nosso grau de altruísmo, como propõe um artigo no periódico Frontiers in Psychology. Há uma lista de referências de artigos científicos sobre o assunto em Out of the Wreckage.
Também temos uma incrível capacidade de empatia e uma tendência à cooperação à qual somente a do rato-toupeira-pelado se compara, entre os mamíferos. Essas tendências são inatas. Nós evoluímos nas savanas africanas: um mundo de dentes, garras, chifres e presas. Sobrevivemos apesar de sermos mais fracos e mais lentos em relação tanto aos nossos predadores quanto à maioria das nossas caças. Conseguimos isso através do desenvolvimento, a um nível extraordinário, da capacidade de ajuda mútua. Como foi essencial para nossa sobrevivência, esse impulso de cooperação ficou gravado em nossos cérebros através da seleção natural.
Porém, a grande tragédia que enfrentamos é ter essa extraordinária boa natureza escondida de nós, em parte por nossas próprias percepções. Temos uma tendência inerente a estarmos alerta ao perigo. O comportamento violento e destrutivo de alguns se destaca mais em nossas mentes do que o comportamento altruísta e cooperativo de muitos.
Obviamente, em qualquer nação há pessoas que não compartilham da tendência geral ao altruísmo e empatia… Infelizmente, elas são representadas desproporcionalmente nos níveis mais altos dos governos e corporações. O atual presidente dos Estados Unidos é um bom exemplo. Nós os vemos e observamos a maneira como se comportam e dizemos a nós mesmos que assim é como os seres humanos são. Mas não. É o que um por cento dos seres humanos é.
Mas a outra razão para esta tragédia da percepção equivocada é o fato de que estamos imersos em uma ideologia virulenta de individualismo e competição extremos que nos diz, na contramão de todas as evidências científicas, que nossas características dominantes são egoísmo e ganância e que isso é bom porque estimula o empreendedorismo, que, por sua vez, produz riqueza, que, de alguma forma, vai se propagar e enriquecer a todos. Essa é a principal ideologia do neoliberalismo, que valoriza e centraliza nossas piores tendências e celebra a desigualdade e a dominação resultantes. Uma das nossas tarefas mais importantes é substituir esse falso discurso com o que a ciência nos diz sobre quem somos realmente. Não precisamos mudar a natureza humana; precisamos revelá-la.
Qual é a diferença entre provisão de serviços pelo Estado e o papel das comunidades fortes?
Não quero descartar a importância da provisão estatal. Ainda é crucial. O caráter de uma sociedade é determinado pelo grau em que o estado provê serviços públicos de qualidade e uma ampla rede de segurança social. Quando os governos falham em defender seus povos dessa maneira, a insegurança e a precariedade imperam e a sociedade como um todo se torna mais dura e mais suscetível ao medo, ódio e reacionarismo. Mas é um erro imaginar que podemos deixar tudo unicamente nas mãos do governo.
O problema de contar somente com o governo é que isso contribui para a alienação. O Estado provê serviços de maneira vertical, de cima para baixo, e tende a enquadrar as pessoas em compartimentos, para assegurar que recebam a provisão certa. Paralelamente a outras forças alienantes, isso pode debilitar a coesão social e o senso de pertencimento, se não for equilibrado pela ação comunitária. Também pode fazer com que nos sintamos dependentes e altamente vulneráveis a cortes no orçamento. De fato, muitas pessoas estão sofrendo o pior dos dois mundos: a ajuda mútua e a independência foram erodidas pela necessidade de provisões do Estado, só que agora essa provisão estatal está sendo retirada, deixando as pessoas sem uma coisa nem outra.
Portanto, ao buscar a nova visão que tento promover, precisamos do que chamo de “Política do Pertencimento” para ressuscitar a vida comunitária. Há duas maneiras de fazer isso que me interessam.
A primeira é o desenvolvimento de uma cultura participativa rica: projetos comunitários pensados para atrair o maior número de pessoas possível; alguns requereriam muito pouco empenho ou habilidade, e gradualmente se proliferariam para se tornar o que os profissionais chamam de “redes densas”. Há alguns exemplos espetaculares, como o movimento em Roterdã que começou com a transformação de uma antiga casa de banho turco abandonada em uma sala pública de leitura que acabou gerando 1.300 projetos e empreendimentos comunitários. Eventualmente, chega-se a um ponto de inflexão no qual a participação da comunidade torna-se a norma e não a exceção, e então muitos empreendimentos sociais, cooperativas e outros negócios comunitários se formam e começam a representar um grande parte da economia local.
A segunda é a recuperação dos bens comuns, um dos quatro grandes setores da economia que sempre esquecemos (nossos debates tendem a se concentrar somente em dois: o Estado e o mercado, negligenciando tanto os bens comuns quanto o grupo familiar). Os bens comuns são recursos pertencentes a e gerenciados e compartilhados igualmente por uma comunidade e têm sido implacavelmente atacados tanto pelo Estado quanto pelo mercado. Acredito que a restauração dos bens comuns é crucial para a restauração da comunidade, da democracia, de um senso de pertencimento e do mundo vivo. São os bens comuns que dão sentido à comunidade.Neste livro dou exemplos do que isso significa e de como a restauração pode acontecer.
Qual é a sua resposta a alguém que lhe pergunte “como começo a entrar nesse novo discurso de pertencimento comunitário?”
Acho que os grandes modelos organizacionais desenvolvidos pela campanha de Sanders nos EUA e a campanha de Corbyn/Momentum no Reino Unido fornecem um protótipo instigante de como podemos mudar a política plano nível nacional. A técnica está ainda em fase inicial e seu uso em ambas as campanhas foi experimental. No entanto, nos dois casos, mesmo começando do zero e em circunstâncias altamente desfavoráveis, esses modelos deram aos candidatos uma chance real de ganhar poder.
Desde então, as técnicas vêm sendo desenvolvidas e refinadas, e não demorará muito até que vejamos uma série de vitórias espetaculares de candidatos genuinamente progressistas alavancados por esse modelo. Mas ele também pode ser empregado, especialmente em conjunto com as táticas muito úteis desenvolvidas pelo movimento Indivisible [que resiste, nos EUA, à agenda de retrocessos de Donald Trump], no trabalho em campanhas específicas. Sinto que estamos apenas começando a ver o que as redes de voluntários (em proliferação) que usam a tecnologia digital e o contato humano direto podem alcançar. Se fizermos tudo certo, acredito que vamos nos tornar imparáveis.
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“A condição humana é anticapitalista” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU