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20 Outubro 2017

"Para Borges as fronteiras são sempre móveis e finas: nunca há uma cortina de ferro entre verdade e ficção, entre vigília e sonho, entre realidade e imaginação, entre racionalidade e sentimento, entre essencialidade e ramificação, entre concreto e abstrato, entre teologia e literatura fantástica, entre casticidade anglo-saxônica e ênfase barroca" escreve Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Settimana News, 14-10-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

É por mérito de Borges que eu, como todo leitor - antes de visitá-la - imaginei e quase sonhei Buenos Aires, a sua cidade, na qual floresceu sua veia poética: em 1923, de fato, ele havia composto a sua primeira coleção de poesia intitulado-a justamente Fervor de Buenos Aires. A parábola literária de Borges vai se elevar ao céu também de outras nações, e vai se apagar na Europa, em Genebra, com a última ópera Los conjurados (1985), onde em filigrana aparecia a Confederação Suíça, seu extremo porto de chegada. Mas mesmo quando os meus pés pisaram a terra argentina, o sonho continuou a se desenrolar porque a Buenos Aires de Borges conserva sempre um caráter mágico que não é substituído pela realidade histórica e topográfica atual. É isso que expressa o poema Las calles que serve de incipit para aquela coleção poética:

“As ruas de Buenos Aires, já são minhas entranhas. Não as ávidas ruas, incômodas de gente de bulício, Mas as ruas indolentes do bairro, Quase invisíveis de tão usuais, Enternecidas de penumbra e de ocaso E aquelas mais longe Carentes de árvores piedosas Onde austeras casinhas apenas se aventuram”.

Como já declaramos, o que se seguirá agora é um perfil muito pessoal e livre da dimensão religiosa de Borges. Não é, portanto, uma exegese crítica da sua obra que, inclusive, tem uma multidão de intérpretes, prontos a se exercitar sobre uma literatura muito móvel e semelhante a um arco-íris. É, antes, o testemunho de um leitor apaixonado que nunca conheceu o escritor pessoalmente, embora por duas vezes - por dois de seus amigos italianos, como o falecido Domenico Porzio, autor de uma extraordinária 'introdução' em Tutte le opere de Borges nos dois volumes dos "Meridiani" Mondadori publicados em 1984-85, e o conhecido e criativo editor Franco Maria Ricci - o contato ficou bem próximo, mas depois desvaneceu por razões externas.

Meu encontro está, portanto, ligado às suas páginas e o auto-retrato que emerge a partir delas. Trata-se de perfil mutável e incompressível no molde frio de palavras porque - como ele afirmava - "o universo é fluido e mutável, a linguagem rígida". Uma fisionomia, a sua, marcada precisamente pela mobilidade de um ecletismo nobre, herdeiro da curiositas insone da classicidade latina.

Por isso sentimo-nos capturados e por fim aprisionados, como escreveu um crítico literário, José María Poirier, pela "teia de aranha de seu suave ceticismo, de seu caótico enciclopedismo, do seu ecumenismo eclético". Imersos em seu mundo encontramo-nos jogados entre história e mito, inclusive porque para ele "talvez a história universal é a história de um punhado de metáforas", aliás, "a história universal é a de um só homem".

Em um dos 24 textos em prosa, colocados ao lado dos 29 poemas do O fazedor (1960), é emblemática a parábola que entrelaça o mundo exterior e o pessoal:

“Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naus, de ilhas, de peixes, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu rosto".

Até mesmo o tempo que escorre inexorável aparentemente fora de nós, na realidade está em nós, aliás, é o nosso eu, como afirma em Outras inquisições (1952):

"O tempo é a substância de que sou feito. O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio; é um tigre que me despedaça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo".

É por isso, então, que – como lemos em Os conjurados - "Não há um instante que não seja carregado como uma arma".

Para Borges as fronteiras são sempre móveis e finas: nunca há uma cortina de ferro entre verdade e ficção, entre vigília e sonho, entre realidade e imaginação, entre racionalidade e sentimento, entre essencialidade e ramificação, entre concreto e abstrato, entre teologia e literatura fantástica, entre casticidade anglo-saxônica e ênfase barroca ... As duas parábolas gêmeas que fecham o Sermão da Montanha de Jesus (Mateus 7, 24-27), onde estão em cena os dois construtores antitéticos sobre a rocha e sobre a areia, são assim invertidas, mas não desmentidas por Borges no seu programa existencial e literário global: "Nada se constrói sobre pedra, tudo se constrói sobre areia, mas devemos construir como se a areia fosse pedra". E, no fim, floresce o paradoxo supremo: "A vida é pobre demais para não ser também imortal".

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