31 Julho 2017
"Manovre". O cardeal Gerhard Ludwig Müller usou esta palavra em italiano e sem hesitação, para definir a sua substituição à frente da Congregação para a Doutrina da Fé. Substituição decidida pelo Papa e comunicada ao final de uma audiência de rotina, na sexta-feira, 30 de junho, no Palácio Apostólico. Sem lágrimas ou cenas à la Young Pope, com transferências de cardeais para o Alasca e cerimônias de despedida mais parecidas a viagens para as celas de Castelo de Santo Ângelo, mas apenas com um aperto de mão e um adeus.
O comentário é de Matteo Matzuzzi, publicada por Il Foglio, 29-07-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mas a questão é que, pela primeira vez na história, o prefeito da principal congregação da Cúria Romana, a "Suprema", foi afastado. Aposentado antecipadamente. "O fato significativo é que ele não o afastou antes, mas esperou o momento do término do mandato", explica o professor Daniele Menozzi, historiador da Igreja na Scuola Normale de Pisa, ex-aluno de Giuseppe Alberigo e Giovanni Miccoli , fundadores da Escola de Bolonha.
“É um pontificado em que há liberdade de expressar as próprias opiniões, porém depois, quando se trata de governar é evidente que o Papa quer seguir seu projeto".
É uma manobra necessária para executar uma virada, defendem os equilibrados observadores dos fatos vaticanos, longe do alvoroço ‘desviacionista’ que também trouxe informações sobre divisões entre os apoiadores de Jorge Mario Bergoglio e seus adversários, quase como se fosse a final da Champions League. Uma virada, aliás, nada mais é do que a consagração do hospital de campo universal não delimitado por cercas, mas cheio de misericórdia, aberto a todos e para todos, sanatório de feridas dolorosas, de chagas que até o momento nunca haviam sido tratadas com a correta perícia.
Além disso, Francisco já havia afirmado em sua famosa entrevista dada ao princípio do pontificado para a Civiltà Cattolica, a premissa sintética do programa oficial do pontificado, difundido posteriormente urbi et orbi pela exortação pós-sinodal, o Evangelii Gaudium que traz toda a informação sobre os objetivos e os processos que Bergoglio, buscado quase no fim do mundo, quer implementar. Nem ele próprio ainda sabe no que vai dar, quais serão os resultados. O importante é começar, colocar em movimento a Igreja. Dar a largada e depois ver o que acontece. Em suma, provocar. Ignorando as consequências. Nada de programas manuscritos, tabelas e ordens do dia. Sem prazos finais. Mas ideias bem claras, aquelas que já em 2013, quando se começou a falar de revolução logo após a eleição, o fiel cardeal Maradiaga, não por acaso colocado à frente do comitê de nove especialistas encarregados de redesenhar a reforma da Cúria, listava apertis verbis, para o mundo todo.
Recordando de imediato o vento do espírito que soprava impetuoso sobre São Pedro para testemunhar que tudo mudaria, que a igreja consumada por disputas internas, tacanhos escândalos de sacristia e bandos de corvos esvoaçantes, seria derrubada.
Abalada pela força pouca tranquila de um Papa que sempre olhou para aquela cúria com suspeita, que frequentava Roma o menos possível, nauseado pelas rotinas do Vaticano, sempre iguais a si mesmas e capazes de sufocar qualquer prímula capaz de abrir seu caminho através das camadas de neve.
"Acredito firmemente que a igreja esteja no alvorecer de uma nova era, como cinquenta anos atrás, quando João XXIII abriu as janelas para deixar entrar o ar fresco", ele dizia. E Maradiaga esbarrava precisamente com Müller, o teólogo alemão já curador da obra omnia ratzingeriana que Bento XVI tinha chamado ao Santo Ofício apenas no verão de 2012, poucos meses antes de renunciar à Cátedra de Pedro.
Müller, no L'Osservatore Romano, recomendava calma sobre as viradas idealizadas e sugeria encostar as janelas, pois ar fresco em demasia poderia causar doenças incômodas e irritantes, mesmo fora de época. Maradiaga, das colunas do Kölner Stadt-Anzeiger, quase zombava dele: "Eu o entendo, é um alemão, um professor alemão de teologia. Em sua mente só existe o verdadeiro e o falso. Mas eu digo: meu irmão, o mundo não é assim, você deveria ser um pouco mais flexível quando ouve outras vozes. E, portanto, não apenas ouvir e dizer não".
No entanto, as coisas não são tão lineares e simples, porque "a escolha do substituto de Müller indica uma vontade de evitar qualquer exagero", afirma Menozzi – que recentemente enviou ao prelo da editora Morcelliana I papi e il moderno. Una lettura del cattolicesimo contemporaneo (Os Papas e o moderno. Uma leitura do catolicismo contemporâneo, em tradução livre). A referência é ao jesuíta espanhol Luis Francisco Ladaria Ferrer, considerado quase por unanimidade um prelado de tendência "centro-conservadora", só para recorrer novamente às clássicas e talvez demasiado simplistas categorias com que se costuma analisar a política eclesiástica.
Mas é realmente uma virada, essa mudança em curso no que foi o Santo Ofício? De acordo com Robert Royal, presidente do Faith & Reason Institute de Washington e editor do The Catholic Thing, "é difícil dizer", porque inclusive "já vimos tantas viradas, que esta poderia ser apenas mais uma". Mas talvez haja algo a mais, como "a escolha de uma figura mais fraca do que Müller, sem dar o alarme de que uma grande mudança esteja a caminho".
Mas não é que a fatal decisão seja o sintoma da dificuldade de manter sob controle a cúria, incapaz de se sintonizar nas frequências definidas por um Papa tão estranho para aquele mundo? Ou seja, uma decisão tão grave e rumorosa como tentativa última para evitar cair no atoleiro e não ser esmagado pelas engrenagens da pluricentenária máquina romana.
Não passou em branco, sobre o assunto, o texto de Giulio Cirignano que o L'Osservatore Romano reproduziu na semana passada, no qual escrevia que "o maior obstáculo para a conversão que o Papa Francisco quer trazer para a igreja é constituído, de certo forma, pela atitude de grande parte do clero, superior e inferior. Atitude, às vezes de fechamento, se não mesmo de hostilidade".
Em suma, "como os discípulos no Jardim das Oliveiras, os seus discípulos ainda estão dormindo. O fato é desconcertante. Por esta razão, o fenômeno deve ser examinado a fundo, nas suas causas e nas suas modalidades". “O clero - salientava Cirignano - arrasta atrás de si a comunidade, que ao contrário deveria ser acompanhada neste momento extraordinário. Muitos fiéis compreenderam, apesar de tudo, o momento favorável, o kairós, que o Senhor está oferecendo à sua comunidade. Grande parte dos fiéis está comemorando. No entanto, aquela parte mais próxima a pastores pouco iluminados é mantida dentro de um horizonte antigo, o horizonte das práticas habituais, da linguagem ultrapassada, do pensamento repetitivo e sem vitalidade. No fundo, o Sinédrio é sempre fiel a si mesmo, repleto de devoto obséquio ao passado confundido com fidelidade à tradição, pobre de profecia". Coisas grandes, portanto.
No entanto, os nossos interlocutores têm algumas dúvidas. Especialmente porque Francisco no final das contas, sabe muito bem como se mover com a Cúria, e age usando mais a astúcia da raposa do que a força do leão. "Bergoglio mudou bastante, por exemplo, as estruturas do Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família", explica Royal. “É claro que a Congregação para a Doutrina da Fé é mais central, mas talvez seja justamente por isso que o Papa decidiu agir com prudência.
Mesmo assim, já ignorava Müller sempre que queria e vai fazer o mesmo com um substituto mais fraco. Na verdade - prossegue o editor do The Catholic Thing - vai fazer muito mais e não vejo nenhuma força de oposição no interior da Cúria". Pelo menos não uma oposição organizada, capaz de resistir ao que - para usar novamente as palavras de Maradiaga - é um "sopro de ar fresco".
Müller, afinal de contas, deixava bem claro na entrevista ao Foglio: inconcebível falar de amigos e inimigos do Papa entre os cardeais, não existe. É impossível, afinal sua púrpura e anel são recebidos usque ad sanguinis effusionem, ou seja, fiéis ao Papa até (se necessário) o martírio. Porém grupos e correntes sempre existiram. A disputa, não só teológica, mas também pessoal entre o agora ex-prefeito para a Doutrina da Fé e Christoph Schönborn, arcebispo de Viena e autor da solução para a abertura do último Sínodo, é óbvio e confirma isso.
Por outro lado, lembrava ainda Müller, não é que devemos buscar o aplauso a todo custo, e também não está escrito em lugar algum que é preciso agir e decidir em perfeita harmonia.
Roland Noè, diretor da agência católica no idioma alemão Kath.net não acredita que estamos diante de uma virada, inclusive porque "nos últimos anos temos assistido a um lento mas constante processo do que eu chamaria de marginalização da doutrina. Neste pontificado, a 'Suprema' (Nota de IHU On-Line: refere-se à Congregação da Doutrina da Fé) é tudo, menos que suprema.
Desempenha papéis marginais de controle e de contenção que, vistos de fora, muitas vezes não são nem mesmo perceptíveis. Nesse contexto, o sucessor do cardeal Müller é um fiador, um fino teólogo conservador, expressão clássica do professor jesuíta da Gregoriana que nunca é o protagonista em primeiro plano, mas dispõe os trilhos para que o trem não descarrilhe, mesmo que ele viaje a uma velocidade muito elevada e em terreno pouco conhecido".
Para resumir: "A substituição essencialmente significa, portanto, uma visível ruptura com os dois últimos pontificados, em que a doutrina e a fina teologia produtiva estavam no centro inclusive das intenções pastorais".
Não vai ser "o caos gerado com uma canetada" de que falava o grande filósofo alemão Robert Spaemann, segundo a qual a igreja viaja para um cisma que "não reside na periferia, mas no próprio coração da Igreja", mas "não há dúvida de que a situação está complicada", reconhece Menozzi. No entanto, é igualmente verdade que "o Papa está ciente desta situação desde o início". Para ele não contam programas imutáveis, agendas fixas e predeterminadas, “o seu objetivo é dar impulsos e depois ver como eles são recebidos. A sua linha não é a de um reformismo radical, arrasador. Mas, pelo contrário, bastante prudente. Francisco - prossegue o historiador da igreja - tende a dar orientações, estas sim de maneira muito claras e relevantes e pode-se dizer que, nesse contexto, a sua orientação é bastante radical”. Uma linha que é então "traduzida em impulsos, confiando as suas indicações à meditação do povo de fiéis".
O fato de que algum cardeal divirta-se bancando o "ingênuo" (os direitos autorais cabem integralmente ao arcebispo cardeal de Lima, Juan Luis Cipriani Thorne, também outrora grande acusador de Müller, mas por razões opostas, ou seja, por sua proximidade ao padre da Teologia da libertação, Gustavo Gutiérrez), para o Papa não é um grande problema. "|Ele não vê as contraposições de forma negativa, é mais importante que a igreja recupere vida, que volte a respirar depois de ter ficado cristalizada por muito tempo", ressalta Daniele Menozzi.
Em um Papa agora mais livre para agir, não acredita Noé: "Nós já vimos que Francisco, mesmo no passado, nunca permitiu que algo o limitasse. É o Pontífice mais autoritário das últimas décadas, governa a seu próprio modo e de forma direta, sem se preocupar muito com os aparatos que estão ao seu dispor. Se vai haver uma aceleração (e haverá), não vai amadurecer como consequência do fato de que Francisco libertou-se das amarras, mas porque ele leva adiante de forma decidida o seu projeto".
E o que é esse projeto? "Muitos se perguntam isso, explica Noé, inclusive pela falta de clareza e transparência dos processos; processos que dizem respeito primeiramente - e até mesmo de forma desordenada – a um desmantelamento de tradições". Retorna-se ao que dizia Menozzi, ou seja, que "o importante é começar os processos, enquanto parece menos importante a necessidade de dar um direcionamento claro para esses processos".
A chave para entender um pouco o método e tentar investigar o que Bergoglio tem em mente é voltar para os quatro princípios mais uma vez declarados na mensagem ao G20 de 20 de junho passado, afirma o diretor da Kath.net "ou seja, que o tempo é superior ao espaço, a unidade prevalece ao conflito, a realidade é mais importante do que a ideia, e o todo é superior às partes". Pontos "aliás, pouco discutidos", ressalta.
Existe a convicção de que agora, talvez no início do outono, será iniciada a fase-2 do pontificado, que quase todos os Papas conheceram, ora caracterizada por uma dinâmica de reforma, ora por uma retirada gradual. As expectativas são altas, e não apenas entre aqueles que estão assistindo ao barco petrino navegar correntes furiosas, com o risco de que as ondas sejam altas demais para manter o rumo do leme.
O risco, portanto, é de ficar atado entre as muitas expectativas que precisam se confrontar e os ritmos cadenciados do Vaticano.
"Vamos ser claros. Se por reforma entende-se a renovação das estruturas institucionais e governamentais, então isso pode ser verdade. Mas se, da forma como eu vejo - relata Menozzi - o Papa por reforma entende uma transformação nas profundezas dos corações, ou seja, quer determinar uma mais profunda compreensão do Evangelho, então não me parece que exista algum impasse”.
O ponto é que, o historiador continua, "a igreja é por sua própria natureza composta e é muito mais dinâmica do que nos dias de João Paulo II e Bento XVI". Um movimento, em suma, que visa tornar irreversíveis os processos iniciados, de modo que os impulsos lançados possam ser ouvidos por todos. "Mas nada é irreversível", afirma Noé:
"Algumas pessoas gostam de falar do fato que Francisco encaminha reformas irreversíveis que mudam radicalmente o próprio significado da igreja e da experiência de fé. No momento, no entanto, podemos constatar apenas confusão e incerteza, devidas também a certo eclipse da razão". E mais, observa o diretor da Kath.net, "o fato mais surpreendente é que, enquanto o Papa é acarinhado pelo mundo, a igreja em muitas partes do mundo está perdendo terreno e balança na falta de uma sustentação firme. Portanto, se com as reformas as ações pararem nas estruturas, tais reformas permanecerão apenas na aparência, algo externo. Para mim - explica – o desinteresse pelo que são a igreja e a fé parece mais do que óbvio. Um desinteresse acompanhado por uma crescente agressividade".
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Púrpuras ao vento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU