19 Julho 2017
Movimentos e organizações lançam manifesto pela mudança. Documento descreve como especulação avançou nos últimos vinte anos, e propõe mobilização nacional para resistir.
O documento é publicado por Outras Palavras, 18-07-2017.
Estamos vivendo um período de transição no mundo e no Brasil. As mudanças estão em curso e serão feitas com ou sem a participação das forças democráticas da sociedade. Garantir um futuro com mais justiça social, econômica, ambiental, territorial e urbana depende da nossa participação. A hora é agora.
Em nosso país, urbanização e industrialização se deram tardiamente, durante o século XX. Sem acesso ao mercado residencial formal e sem acesso às políticas públicas urbanas, uma imensa massa de pessoas se instalou como pode, especialmente nas metrópoles, com parcos recursos, constituindo uma mão-de-obra farta e barata.
O resultado desse processo foi a construção de gigantescas periferias. Em contraposição, outra cidade, mais visível, hegemônica, restrita, concentrou os investimentos públicos e privados em favor de um mercado imobiliário altamente especulativo e de luxo, promovendo assim a abissal desigualdade social que reafirma, parcialmente, a herança de quatro séculos de exploração do trabalho escravo.
Os últimos 30 anos foram acompanhados de mudanças significativas no país e no mundo, com o fortalecimento, a centralização e a concentração dos conglomerados transnacionais e do capital financeiro.
A dinâmica populacional mudou, em grande parte devido à expansão da urbanização e ao avanço do saneamento: diminuíram a mortalidade infantil e a taxa de natalidade. Aumentou a expectativa de vida. As migrações internas, que tinham como destino o Centro Sul, se reorientaram para o Centro-Oeste e o Norte. Todas as regiões tiveram crescimento econômico maior que o do Sudeste, embora este se conserve como polo mais dinâmico do país.
A dinâmica da urbanização vem mudando: as metrópoles que mais crescem estão no Centro-Oeste. No Norte, as cidades de porte médio, de modo geral, crescem mais do que as metrópoles, em PIB e população, apresentando um processo notável de dispersão urbana e especulação fundiária.
Na atual conjuntura, o Brasil vive um processo de internacionalização, desindustrialização e financeirização que nos levou, dentre outras outras consequências, ao retorno à condição de país agro-exportador, com uma carteira de comércio exterior concentrada em grãos, carnes, celulose, minérios e etanol. A participação da indústria no PIB do país decresceu a níveis equivalentes às primeiras décadas do século passado, com forte impacto sobre as cidades.
Nos anos 1980 e 1990, com o impulso das lutas pela redemocratização do país, em que pese a ausência de investimentos públicos devido a politicas de austeridade fiscal, muitas cidades viveram experiências inovadoras em governos locais conhecidos como “prefeituras democrático- -populares”. Movimentos sociais, pesquisadores, professores, ONGs e profissionais se organizaram na defesa dessa proposta. Dentre os muitos projetos implementados estavam os CIEPs (ou CEUs), o Orçamento Participativo, com repercussão e acolhida no mundo todo, além da urbanização de favelas e áreas precárias, a assistência técnica à moradia social e um conjunto impressionante de leis que se seguiram à Constituição Federal de 1988: o Estatuto da Cidade, as Leis de Consórcio Públicos, a Lei do Fundo de Habitação de Interesse Social, a Lei do Saneamento Básico, a Lei da Mobilidade Urbana, a Lei dos Resíduos Sólidos e o Estatuto da Metrópole, entre outras.
A partir de 2002, temos uma tentativa de implementação de políticas públicas visando diminuir as desigualdades sociais no Brasil sem, no entanto, tocar nos fundamentos mais estruturantes e seculares da nossa formação social. Não por acaso, no campo do urbano constatamos que, apesar da criação do Ministério das Cidades, com seu Conselho Nacional; da realização das conferências municipais, estaduais e nacionais participativas; e arcabouço legal urbanístico inovador, as cidades pouco a pouco retomaram o rumo do aprofundamento da desigualdade, sucumbindo à ampliação das forças conservadoras no interior da politica de coalizão. Os operadores do Direito na esfera pública mantiveram uma injustificável distância e desconhecimento em relação às novas conquistas legais. A defesa incondicional da propriedade privada, alma do patrimonialismo tradicional, se reafirmou.
Os últimos anos nos trazem material suficiente para compreender em que medida as cidades podem combinar crescimento econômico e regressão social. Entre 2009 e 2014, os setores imobiliários e da construção civil alavancaram o PIB. No entanto, o mercado aquecido elevou o valor dos imóveis numa proporção de 2 a 3 vezes acima da inflação média no período, obviamente também muito acima da valorização dos salários. O mercado aquecido por incentivos estatais e as mega-obras relacionadas à Copa do Mundo e às Olimpíadas contribuíram em muito para esse cenário.
A prioridade dada ao automóvel (e não ao transporte coletivo) pela política de desoneração fiscal fez com que o número de veículos dobrasse nas ruas das cidades, impondo um custo econômico, social (em horas vividas nos congestionamentos) e na saúde (devido à poluição do ar e às mortes no trânsito) que se tornaram insuportáveis.
Não bastassem a piora nas condições de moradia, o aumento no preço dos imóveis e das tarifas de transporte coletivo, assistimos à disseminação de epidemias como zika, chikungunya, dengue e febre amarela. Obviamente, tais questões de saúde pública estão ligadas ao modelo desigual nos investimentos e predatório de uso e ocupação do solo.
Alinhados ao primado do rodoviarismo e do mercado imobiliário dirigido para poucos, os governos municipais promoveram, com a ajuda da flexibilização da regulação fundiária, um radical espraiamento urbano, em especial nas cidades de porte médio, aumentando os custos da urbanização, favorecendo a especulação com terras, ampliando as viagens diárias. Essa dinâmica lançou os trabalhadores de baixa renda para a periferia da periferia, em bairros resultantes da autoconstrução ou de conjuntos habitacionais de promoção público/privada, altamente subsidiados.
Quando a crise econômica, adiada pelos investimentos em grandes obras de construção civil e pela desoneração industrial tornou-se incontornável, a maior parte da população trabalhadora, até então favorecida pelas políticas de inclusão via consumo, foi a mais atingida. Se as reformas pró-cidadania e justiça social foram adiadas — fundiária, mobilidade, saneamento, ambiental — a partir de 2016, um conjunto de outras reformas – corte de gastos em saúde e educação, terceirização, trabalhista, previdência, MP 759 – dá a entender que a tragédia urbana brasileira vai se aprofundar e agora, radicalmente diante da ruptura com a democracia.
Considerando as forças que dirigem o processo de desmanche do ainda parco bem-estar social, de entrega de patrimônios públicos e de manutenção de privilégios, podemos esperar um cenário análogo ao dos anos 1980: pauperização, violência, crescimento de favelas, desagregação familiar, aumento de pessoas em situação de rua, aumento da violência contra mulheres, crianças pedintes nos semáforos etc.
É urgente elaborar, por meio de uma construção social, um projeto para as cidades do Brasil, no médio e longo prazo, tendo como parâmetros a justiça espacial, intra-urbana e regional; a sustentabilidade social, econômica e ambiental; o combate a toda sorte de desigualdade — social, racial e de gênero –, o respeito à diversidade geográfica e cultural, além do controle social e o respeito aos recursos públicos. Da análise do passado recente, algumas teses são fundamentais e devem ser colocadas:
Deve ser recuperado o protagonismo dos municípios e dos cidadãos nos destinos das cidades. Os investimentos – finalidade e localização – 5 devem estar subordinados aos indicadores de vulnerabilidade social e ambiental e ao controle social, de modo a afastar a influência dos lobbies ligados a interesses privados e aos financiamentos de campanhas eleitorais. A reforma política é condição indispensável para garantir o primado do interesse público e social na construção e gestão das cidades.
A qualidade dos projetos de arquitetura e engenharia também são condições indispensáveis para licitações honestas e preços justos. Isso implica combater práticas arcaicas e corrompidas que controlam terras e fundos públicos e guardam nenhuma relação com as necessidades e demandas populares.
Mais do que nunca, devemos lutar para a aplicação dos princípios do arcabouço legal conquistado com as lutas pela Reforma Urbana assumidos na Constituição Federal de 1988. Devemos exigir de promotores, juízes e desembargadores o reconhecimento da precedência da função social da cidade e da propriedade, bem como o direito à moradia – previstos na CF 1988 e no Estatuto da Cidade (Lei 10.257) – sobre os patrimônios privados ociosos improdutivos.
É inadmissível manter por longos anos imóveis vazios, bem servidos de infraestrutura resultante do investimento público, acumulando mosquitos e lixo, enquanto milhões e milhões de pessoas ficam sem alternativa de moradia, ocupando áreas de proteção ambiental como beiras de rios e córregos, morros íngremes, dunas, mangues, áreas de risco de desmoronamentos. Temos instrumentos legais suficientes para resolver esse gigantesco problema social e ambiental.
Numa conjuntura onde parte considerável da opinião pública se permite verbalizar estigmas dos mais conservadores, devemos combater a desmoralização e a criminalização de organizações populares e movimentos sociais. É nossa tarefa reconhecer a importância deles na reconstrução de uma agenda urbana com protagonismo da sociedade e lembrar que muitas de nossas melhores políticas públicas foram criadas a partir de formulações de movimentos sociais. Esses atores coletivos são fundamentais para a ampliação da democracia, para o controle social sobre o Estado e sobre interesses de oligopólios privados. Será necessário, por sua vez, que os movimentos evitem tendências de adaptação e reprodução de práticas tradicionais de clientela e reafirmem princípios de distância salutar em relação à máquina estatal, apoiando-se na cultura política de solidariedade, de autonomia e empoderamento popular.
Também cabe a nós compreender como se materializa nas cidades a desigualdades de classe, raça e gênero. Isto para sabermos ouvir as vozes dos personagens que entram em cena e protagonizam um novo ciclo de lutas: do movimento negro, dos feminismos, dos coletivos artísticos das periferias, da cultura emergente de apropriação dos espaços públicos e também dos secundaristas, cuja disposição e irreverência surpreendeu a todos. Ainda que enfrentem adversidades específicas, esses atores coletivos têm pontos em comum: são comunidades políticas que clamam pela efetivação de direitos, por formas inclusivas de sociabilidade e modos mais horizontais de decisão, pela cidade como arena de participação de todas e todos, como lugar do uso e do encontro.
E se quisermos de fato uma urbanização coerente com a expansão da cidadania e das oportunidades para todos e todas, é inevitável ter de reforçar, atualizar e ampliar as formas mais institucionais de participação, aplicando mecanismos como plebiscitos e referendos relativos a temas estratégicos, além de fomentar novos canais de democracia direta. E se está evidente que o rodoviarismo é um paradigma inviável e falido, é preciso defender de uma vez por todas a prioridade do transporte coletivo eficiente, integrado, não poluidor com tarifa subsidiada, além do fomento dos meios de transporte não-motorizados e à mobilidade ativa. Para isso temos a Lei federal da Mobilidade Urbana – 12.587/2012.
Da mesma forma é inadiável promover o saneamento ambiental garantindo a universalidade de bens básicos à vida digna, saudável e segura como o acesso à água potável, esgoto, drenagem e coleta de resíduos sólidos (Lei federal do Saneamento Básico 11.445/2007) e Lei federal dos Resíduos Sólidos 12.305/2010). Atualmente, reverter esse quadro exige a abordagem de práticas ambientalmente responsáveis de captação, distribuição, uso e reuso da água, além de descarte do esgoto. O mesmo deve ser feito com os resíduos sólidos, fonte de emprego e riqueza, que devem obedecer aos ciclos da redução do consumo (ou seja uma nova atitude diante da vida e do planeta), reuso e reciclagem.
Para completar as ações públicas na urbanização das periferias invisíveis e abandonadas pelo Estado é preciso levar até elas o serviço de arquitetos, engenheiros, advogados e assistentes sociais por meio da Assistência Técnica conforme Lei federal (11.888/2008), levando segurança jurídica, segurança estrutural e também combate à insalubridade habitacional nas áreas de alta densidade de ocupação.
Ao urbanismo dos grandes eventos e à arquitetura do espetáculo devemos dizer que seus impactos urbanos são visivelmente negativos, suas composições político-econômicas duvidosas e seus ônus sociais eticamente inadmissíveis. É preciso reafirmar que a orientação dos investimentos nas cidades deve ser dada pela mitigação das desigualdades sócio-espaciais e pela expansão da cidadania. Isto significa atentar para as necessidades da maioria da população, para a sustentabilidade econômica e ambiental. Consoante a isso, quaisquer remoções violentas ou sem o assentamento adequado dos afetados devem ser firmemente rejeitadas.
É absolutamente impossível minimizar os problemas urbanos nas metrópoles sem enfrentar a desarticulação administrativa entre os municípios e entre estes e os governos estaduais e o governo federal. É urgente implementar políticas integradas e colaborativas entre essas esferas e, sobretudo, para as regiões metropolitanas.
É necessário integrar à política urbana temas como a agricultura urbana e a segurança alimentar visando diminuir a viagem dos alimentos; a proteção das reservas hídricas; proteção efetiva de APPs, APMs, mangues e dunas; a proteção efetiva e despoluição de cursos de água; a cidade de uso misto e compacta bem como ampliar áreas verdes e a arborização dos espaços de uso coletivo. As lutas e planos urbanos devem se articular às lutas camponesas especialmente na defesa da agricultura familiar e da agroecologia.
Realizar essas demandas somente será possível se assumirmos um projeto coletivo e pactuado, que necessita de capilarização, presença na opinião pública e base social. Somente com convergência poderemos caminhar para cidades economicamente dinâmicas, socialmente justas, ambientalmente responsáveis e culturalmente plurais.
Fomentem os debates e formem núcleos do Projeto Brasil Cidades em seus bairros, em suas universidades e em suas organizações.
Venham com a gente nessa luta!
ABONG – Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais
AMPROVIC – Associação de Moradores e Proprietários Village Campinas
ANPUR – Associação Nacional de Planejamento Urbano e Regional
ANTP – Associação Nacional de Transporte Público Articulação Pastorais e Movimentos Sociais
CEBES – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos Centro de Direitos Humanos Maria da Graça Braz
CMP – Central de Movimentos Populares Coletivo de Apoio Técnico – RJ Coletivo Sistema Negro
CONAM – Confederação Nacional de Associações de Moradores
CONEN – Coordenação Nacional de Entidades Negras
CREA – Conselho Regional de Engenheiros e Arquitetos –
MT ETTERN- Laboratório Estado Trabalho Território e Natureza
IPPUR UFRJ Evangélicos de Esquerda Evangélicos pela Justiça
FASE – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional
FeNEA – Federação Nacional de Estudantes de Arquitetura
FLM – Frente de Luta por Moradia signatários entidades
FISENGE – Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros
FNA – Federação Nacional dos Arquitetos – BA
Frente 3 de Fevereiro Fundo Sócio Ambiental Casa
GPDU/UFF – Grupo de Pesquisa Grandes Projetos de Desenvolvimento
IAB – Instituto dos Arquitetos do Brasil – DF
IAB – Instituto dos Arquitetos do Brasil – RS
IFES – Instituto Federal do Espírito Santo Instituto Pólis
IPDM – Igreja Povo de Deus em Movimento
INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos
IPPUC – Instituto de Pesquisa Planejamento Urbano de Curitiba
LABHAB – Laboratório de Habitação e Assentamento Humanos Levante Popular da Juventude Lideranças Populares da Vila Autódromo
MNCCD – Movimento Nacional Contra Corrupção e pela Democracia
MNLM – Movimento Nacional de Luta por Moradia
MTD – Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos Movimento Parque Augusta
NEPHU/UFF – Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos Observatório das Metrópoles
Outras Palavras
Peabiru Assessoria Técnica
Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares
Rede Novos Parques
SARJ – Sindicato dos Arquitetos do Rio de Janeiro 9
SASP – Sindicato dos Arquitetos de São Paulo
SENGE – Sindicado dos Engenheiros
SINDARQ – Sindicato dos Arquitetos
SPU – Superintendência do Patrimônio da União
TEMA – Planejamento e Projetos, Urbanos, Arquitetônicos e Sociais
UEE-SP – União dos Estudantes do Estado de São Paulo
UNEAFRO – União de Núcleos de Educação Popular para Negrxs e Classe Trabalhadora
UNE -União Nacional de Estudantes
UNA LGBT – União Nacional de Lésbicas Gays Bissexuais e Transexuais União de Mulheres de São Paulo
UNITAL – Universidade Tiradentes do Alagoas
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Por um projeto para as cidades brasileiras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU