27 Junho 2017
“Paulo encarnava a convicção de Santo Agostinho, para o qual ‘a fé, se não for pensada, não é nada’.”
O comentário é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 25-06-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
João Crisóstomo, famoso Padre da Igreja do século IV, bispo de Constantinopla, propunha um curioso paralelismo entre São Paulo e o patriarca do dilúvio bíblico, Noé: “Ele não reuniu eixos e não construiu uma arca, mas compôs cartas e, com elas, arrebatou a partir das ondas não dois ou três ou cinco membros da sua família, mas o universo inteiro, que estava a ponto de naufragar”.
Além da ênfase oratória, não há dúvida de que os 2.003 versos (de um total de 5.621 de todo o Novo Testamento) do corpus epistolar paulino constituíram um código de referência capital para a cristandade de todos os séculos: como se sabe, Lutero declarava que, para ele, abrir aqueles textos era como descerrar as portas do paraíso. O Apóstolo, aliás, encarnava a convicção de Santo Agostinho, para o qual “a fé, se não for pensada, não é nada”.
Ora, justamente em torno desse corpus, acendeu-se, há muito tempo, entre os especialistas, uma disputa histórico-crítica, que, porém, não toca a questão da “inspiração” sagrada e do “cânone” das Escrituras, questão primorosamente teológica. Para muitos, de fato, das 13 cartas que chegaram até nós, “paulinas” em sentido estrito seriam apenas sete. De fato, 1Tessalonicenses, 1-2Coríntios, Filipenses, Filêmon, Gálatas, Romanos seriam de paternidade direta do Apóstolo, enquanto as outras seis chamadas de “deutero-paulinas” (2Tessalonicenses, Colossenses, Efésios, 1-2Timóteo e Tito) seriam atribuídas – por razões literárias, teológicas e históricas – a discípulos ou a uma escola/tradição a ele conectada, mas posterior.
Às margens, notamos que, em relação à epistolografia clássica latina contemporânea, as cartas de Paulo são, em absoluto, as mais amplas. Por exemplo, as epístolas de Cícero oscilam entre um mínimo de 22 palavras a um máximo de 2.530, com uma média de 295; as cartas paulinas variam de um mínimo de 335 palavras (Filêmon) a um máximo de 7.094 (Romanos), com uma média de 2.495!
A esse amplo material documental, deve-se anexar a declaração sobre a figura de Paulo presente na segunda obra do evangelista Lucas, os Atos dos Apóstolos, e, se se quiser, também os apócrifos Atos de Paulo, um texto não canônico composto talvez no fim do século II. Elaborar um retrato global do Apóstolo e do seu pensamento, portanto, não é nada fácil. No entanto, muitos estudiosos o tentaram, o último dos quais é um dos maiores neotestamentaristas contemporâneos, Daniel Marguerat, que, de 1984 a 2008, foi professor na Universidade de Lausanne.
Em nível biográfico, o primeiro material que ele coloca sobre a sua mesa de estudo é o lucano dos Atos dos Apóstolos, porque a abordagem que o estudioso adota é o da “recepção”, uma abordagem que “implica coerência e mudança, continuidade e ruptura em relação à origem”.
Uma operação delicada que é realizada combinando o tradicional método exegético histórico-crítico ao mais recente narratológico, obtendo resultados muito complexos e variados. Nós, agora, dentro daquela dezena de capítulos de Marguerat que são dedicados à fisionomia de Paulo segundo Lucas e que traçam vários delineamentos, assinalamos apenas a convicção resultante do estudioso, obtida pelo ângulo de vista da recepção.
De um lado, há o aspecto estritamente narrativo-histórico: “Lucas é como um investigador, uma pessoa curiosa, um repórter que, ao longo das suas inúmeras viagens, reúne a memória do apóstolo fundador, conservada nas comunidades. Não me surpreenderia ao saber que Lucas faz parte de um grupo de evangelizadores preocupados em perpetuar, junto com a memória, também a prática missionária do herói”.
De outro lado, no que diz respeito ao pensamento de Paulo da forma como emerge das páginas dos Atos dos Apóstolos, Marguerat está inclinado a levantar a hipótese de que “Lucas não é um leitor das cartas, mas depende de um resumo, uma espécie de epítome da teologia de Paulo, do qual extrai afirmações adequadas para o seu projeto narrativo”.
É nesse ponto que fluem, quase como em uma trama temática, os vários assuntos, da cristologia à eclesiologia, da doutrina da salvação à da relação com Israel e, portanto, com a Torá, não excluindo, porém, aspectos inesperados: por exemplo, o perfil “socrático” que floresceria examinando dois discursos paulinos inseridos nos Atos dos Apóstolos, pronunciados em Listra (14, 8-18) e em Atenas (17, 16-34), ou o acontecimento anedótico, mas simbólico, da experiência vivida pelo Apóstolo em Éfeso na escola de um certo Tiranos por dois anos (19, 9-10).
Verificado o material do evangelista Lucas, Marguerat passa para o canteiro de obras criado pelo próprio Paulo e aqui prossegue apenas por pesquisas, nem todas de igual destaque. Naturalmente, é fundamental aquela sobre o “evangelho paulino da justificação pela fé”, verdadeiro ponto nodal do pensamento do Apóstolo.
Entrelaçam-se, aqui, categorias principais como a graça divina, a fé, a lei, a justiça e a justificação, as obras humanas, a ressurreição de Cristo e do cristão. Mais setoriais, mas mesmo assim significativas, são outras “carotagens” textuais no epistolário paulino, como a imitação de si que Paulo propõe aos cristãos por causa da sua função de pai e mãe da comunidade (1Tessalonicenses 2, 1-12), ou como a questão do véu imposto às mulheres em Corinto, quase um aviso paroquial bastante surpreendente e, aos nossos dias, provocatório (1Coríntios 11, 2-6).
Essa segunda parte “paulina” da pesquisa, obviamente, mereceria um aprofundamento maior com um espectro mais amplo. Nesse ponto, gostaríamos de anexar uma curiosidade comparativa de um gênero totalmente diferente. Quem a oferece é um dominicano que é considerado um dos maiores especialistas do sufismo e do Islã turco, Alberto Fabio Ambrosio, professor em Paris e em Roma.
Ele parte de três passagens de uma carta “deutero-paulina”, a carta aos Colossenses, uma comunidade localizada na Anatólia central, na antiga Frígia, e fundada por um discípulo de Paulo, Epafras, que surge no fim do escrito justamente ao lado de Lucas, “o querido médico” (4, 14). Sendo a área marcada por presenças judaicas, na época, a primeira comparação espontânea que os exegetas normalmente fazem é com o horizonte de algumas doutrinas judaicas, consideradas pelo Apóstolo como verdadeiras “heresias” dos cristãos locais, por causa do seu sincretismo e dos seus efeitos degenerativos em relação à concepção cristológica.
Ambrósio, em vez disso, estuda uma inesperada comparação ex-post entre alguns parágrafos do escrito paulino e temas antropológicos e teológicos que floresceriam naquela mesma região, séculos depois, justamente com o sufismo e que estão resumidos simbolicamente no sugestivo subtítulo do ensaio, Corps mystique et mystique du corps.
Cristologia, antropologia, cosmologia e até geografia, assim, cruzam-se ao longo das duas trajetórias cristã e sufi, sem misturas ou sobreposições, sem interações ou incidências diretas, mas com o escopo de elaborar um exemplo de teologia das religiões e de mostrar a possibilidade fecunda de um diálogo inter-religioso, reconhecendo o sopro do único Espírito divino, seja nas indubitáveis diversidades, seja nas gradações e nas identidades religiosas e culturais específicas.
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Disputa em torno do “Corpus” paulino. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU