11 Abril 2011
O mal amado, o "enfant terrible" da teologia. Caracterizado e filtrado por uma tradição que não apresentou fielmente a sua leitura límpida da boa nova de Jesus. Esses são, para o teólogo suíço Daniel Marguerat, alguns traços de Paulo de Tarso, o apóstolo-pensador dos primeiros séculos.
Em seu curso dentro da programação da Páscoa IHU 2011, Ler Paulo hoje. Um estudo em diálogo com filósofos contemporâneos, a partir desta segunda-feira até a próxima quarta-feira, 13 de abril, Marguerat apresentou neste primeiro dia um panorama geral dos estudos paulinos; a figura de Paulo como um homem entre dois mundos, as suas heranças religiosas e culturais; a ideia de universalismo paulino a partir da leitura do filósofo francês Alain Badiou; e a importância das mulheres na prática missionária de Paulo.
Para Marguerat, professor emérito de Novo Testamento da Universidade de Lausanne, Suíça, Paulo desenvolveu seu apostolado por meio de uma rede de missionários e missionárias, "a rede religiosa mais performática dos primeiros séculos", afirmou. O cristão convertido de Tarso também estabeleceu uma "lógica da revelação", segundo o teólogo suíço, que se desdobrava em uma argumentação pela qual o cristianismo explicava seu significado. E foi ainda o primeiro pensador a ter manifestado um "pensamento cristão", tendo sido, além disso, o primeiro a escrever a respeito.
Diálogo com a filosofia
Essa figura central para a história do cristianismo foi analisada por Marguerat – e continuará sendo nos próximos dias – em diálogo com cinco filósofos principais: Jacob Taubes, Stanislas Breton, Alain Badiou, Giorgio Agamben e Slavoj Zizek. Em resumo, esses filósofos não estão interessados pela salvação proposta por Paulo. O que eles apresentam, segundo Marguerat, é uma releitura de Paulo a partir da centralidade do seu pensamento para a civilização contemporânea, pensamento este diante do qual a Igreja não soube estar à altura.
Nesse sentido, há um salto epistemológico: diferentemente da teologia que instrumentaliza a filosofia (como as leituras de Aristóteles por Santo Agostinho), agora é a filosofia que instrumentaliza e faz uso da teologia.
A contribuição de Paulo se dá, assim, por meio de sua síntese pessoal: o apóstolo traduz a fé cristã, a partir de sua própria experiência de vida, para as categorias judaica, grega e romana. Nascido na Judeia, Paulo migra com sua família para Tarso, grande centro comercial grego. Por isso, para Marguerat, Paulo é um "homem das metrópoles e das grandes cidades". E, portanto, age em contraposição a Jesus, que sempre viveu no interior da Galileia. Mas, além disso, a origem, a cultura, a língua, quase tudo separa essas duas figuras centrais do cristianismo. Conforme Marguerat, o cristianismo nasce, justamente, dessas duas "figuras contraditórias".
Tarso possuía a principal escola estoica do Mediterrâneo, com um nível intelectual muito alto, o que colaborou para a formação de Paulo na tradição judaica farisaica, entre leigos militantes e pietistas. Mas, em uma tarde, a caminho de Damasco, Saulo passa a ser Paulo. Marguerat, no entanto, afirma que, como muitas vertentes psicológicas afirmam, a conversão, às vezes, é apenas a passagem de um modelo psicológico para outro: mas a estrutura continua sendo a mesma. Por isso, o militante fariseu converte-se no militante de Cristo.
O universalismo e a justificação pela fé
Assim, da centralidade e da obediência à lei judaica (a Torá), Paulo coloca a ênfase da sua pregação na justificação pela fé. Aqui, segundo Marguerat, está em jogo um conceito muito caro para Paulo como liberdade. Para o apóstolo, o homem não pode se libertar por si mesmo, nem por meio de seus próprios esforços contra suas paixões interiores – como ensinava a filosofia estoica. A liberdade, para Paulo, vem de um outro: de Deus, que liberta o ser humano do pecado ("sempre no singular, para Paulo", destaca Marguerat), daquilo que o separa de sua vocação a ser livre perante Deus. É salvo pela fé, pelo contrário da lei, pela graça, por aquilo que é dom, que é concedido de modo igual a cada um, como bem analisou Badiou.
Por outro lado, conforme a leitura de Paulo por Badiou analisada na parte da tarde, o apóstolo de Tarso, ao fazer uso do grego, fala a língua de "todos" da sua época: uma escolha também teológica, segundo Marguerat, para falar do Deus de todos. Assim, ao lado da justificação pela fé, está também o universalismo de Paulo.
Diz a carta aos cristãos da Galácia (3, 24-29): "A Lei foi como um educador que nos conduziu até Cristo, para que fôssemos justificados pela fé. Mas, uma vez inaugurado o regime da fé, já não estamos na dependência desse educador. Com efeito, vós todos sois filhos de Deus pela fé no Cristo Jesus. Vós todos que fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo. Não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um só, em Cristo Jesus".
Essa salvação "para todos", "sem exceção" é o símbolo do Uno que é o Deus anunciado por Paulo. E, para Badiou, o único correlato do uno é o universal, afirmou Marguerat. Assim, se Deus é Uno, é para todos, ele aceita cada um sem discriminação, nem diferença, nem distinção de qualquer gênero.
O papel das mulheres
Para Marguerat, há uma forte igualdade de direito, de dignidade e de valor entre homens e mulheres nas comunidades fundadas pela rede missionária de Paulo. Por isso, as leituras antifeministas de Paulo são uma injustiça ao seu pensamento. E aqui o teólogo partiu justamente de duas afirmações críticas de Paulo: a de I Coríntios 11 e 14.
O capítulo 11 aborda a questão do véu para as mulheres. Diz Paulo: diferentemente do homem, "toda a mulher que reza ou profetiza de cabeça descoberta, desonra a sua cabeça. Se a mulher não se cobre com o véu, mande cortar os cabelos. Julgai por vós mesmos: será conveniente que uma mulher reze a Deus sem estar coberta com o véu?" (I Coríntios 11 , 5-6.11).
Para Marguerat, em Paulo, homem e mulher são sempre recíprocos. Em sua rede, Paulo instaura e introduz uma estrutura de reciprocidade ("Diante do Senhor, a mulher é inseparável do homem, e o homem da mulher", versículo 11). Por isso, neste trecho, Paulo intervém exatamente, segundo o teólogo suíço, quando as mulheres quiseram retirar aquilo que as diferenciava do sexo masculino. De certa forma, Paulo pede que se mantenha o véu como marca que expressa a identidade feminina.
Em I Coríntios 14, o que está em jogo é a participação das mulheres na assembleia: "Que as mulheres fiquem caladas nas assembleias, como se faz em todas as Igrejas dos cristãos, pois não lhes é permitido tomar a palavra. Devem ficar submissas, como diz também a Lei". Paulo, nesse trecho, segundo Marguerat, busca organizar e propôr regras para uma liturgia cultual, para evitar uma possível "cacofonia" nos cultos, para evitar uma desordem. "Não é que as mulheres não devem perguntar. Questionar é uma demonstração de inteligência. Paulo propõe que as mulheres desloquem esse momento para outros ambientes", analisa Marguerat. Como o próprio Paulo também indica no mesmo trecho, dirigindo-se a ambos os sexos: "Se existe alguém que fale em línguas, falem dois ou no máximo três, um após o outro. Se alguém que está sentado recebe uma revelação, cale-se aquele que está a falar" (versículos 27 e 30).
O curso Ler Paulo hoje continua nesta terça-feira e quarta-feira, com as seguintes temáticas:
Dia 12 de abril (manhã e tarde)
Dia 13 de abril (manhã)
Confira a programação completa da Páscoa IHU 2011.
(Por Moisés Sbardelotto)
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O universalismo paulino: sem discriminação, nem diferença, nem distinção - Instituto Humanitas Unisinos - IHU