10 Março 2017
No século XVI, graças aos jesuítas portugueses, o cristianismo cria raízes nas ilhas japonesas. Frente a sua expansão, o Shogun decretou a expulsão dos padres. É uma repressão sangrenta desce sobre os fiéis.
A reportagem é de Jean-Pierre Denis, publicada por La Vie, 02-02-2017. A tradução é de Juan Luis Hermida.
Inverno de 1637, na região de Shimabara, não muito longe de Nagasaki, no sudeste do Japão. Dezenas de milhares de campesinos rebeldes se refugiam numa fortaleza abandonada e fazem barricadas sob as exortações de um líder espiritual, Amakusa Shiro. Adolescente místico e um tanto andrógino, este filho de samurai galvaniza as tropas em nome de uma espécie de teologia da liberação. “Louvado seja o santíssimo sacramento”, podemos ler em português sobre suas bandeiras adornadas com dois anjos venerando o cálice e a hóstia consagrada. Os insurgentes, cristãos na sua maioria, não tem nada a perder. Uma parte deles são ronin, samurais deixados sem mestre pela guerra dos clãs que destruiu o Japão por mais de um século, e que acabou com a aquisição total do poder dos Tokugawa e o estabelecimento de um regime militar fundado num estreito controle social. O novo governador da região não para de imaginar novos impostos sobre os nascimentos e sobre as mortes, as portas o aquecimento ou mesmo das prateleiras. Aqueles que não podem pagar são com ordinária crueldade.
Enquanto o Japão acaba de ser reunificado, os dirigentes do país tem medo de ser colonizado, ser minada por dentro por uma quinta coluna que obedecerá a Deus em vez do Shogun, o líder civil e militar. Depois da chegada dos primeiros portugueses em 1543 e em seguida a missão conduzida por São Francisco Xavier, um dos companheiros do Ignácio de Loyola, e em seguida a concessão de Nagasaki aos jesuítas em 1580, o vento virou. Certamente o cristianismo há conquistado dezenas, ou melhor, centenas de milhares de adeptos e continua o seu progresso, em parte porque os lideres locais especulavam... sobre o desenvolvimento do comércio com a Europa. Mas num país muito estruturado sobre o plano cultural, social e religioso é prejudicado pelas traições, este novo poder dava medo.
Em 1587, o Shogun Toyotomi Hideyoshi se da volta bruscamente contra os bateren, os padres, dos quais decreta a expulsão. Em 1597, 26 pessoas são crucificadas em Nagasaki voltadas para esse mar que trouxe a influência perniciosa dos nanban,os “bárbaros do Sul”, como chamavam aos portugueses que vinham de Goa ou de Macau. Esses primeiros mártires já de um cristianismo globalizado e secularizado são japoneses, europeus e indianos, jesuítas e franciscanos, homens e mulheres, sacerdotes ou médicos, catequistas, simples fiéis. Os mais jovens, Luisa e Antonio, 11 e 13 anos, cantam agonizantes o Laudate pueri dominum.
Em 1612, o Shogun Tokugawa Ieyasu, fundador da dinastia que governara o país até mediados do século XIX, proíbe o cristianismo. Em 1615, uma armada rebelde incluindo numerosos cristãos é derrotada no castelo de Osaka. Em 1622, sempre em Nagasaki, essa cidade símbolo que os americanos no século XX escolheram como alvo da bomba atômica, este será o “grande martírio”: 52 pessoas queimadas vivas ou decapitadas. Entre eles varias crianças de jovem idade.
Em 1639, se dá o fechamento absoluto do país que será decretado, com exceção de uma minúscula feitoria holandesa, colocado na mais estreita vigilância. E que tal vez preserva a sua independência, quando sabemos que a colonização da Índia até as Filipinas.
E os rebeldes de Shimabara? Famintos, bombardeados por um navio holandês (negócios são negócios), os 37.000 insurgentes são quase todos massacrados. Seus crânios são empilhados sobre as ruínas. Em Nagasaki, exposta em um pique está à cabeça de Amazuka Shiro. Permanecerá lá por muito tempo, como uma advertência. Esta repressão constitui um dos episódios mais sangrentos da história do país – mas não da época- se o comparamos, por exemplo, aos 20.000 mortos que os exércitos do Cromwell fizeram em Irlanda mais ou menos no mesmo período. Ela marca sobretudo o fim do cristianismo como religião visível, pública, ativa sobre a cena política.
Enquanto o martírio contribuiu na propagação da fé, forçamos aqueles que ainda se surpreendem à apostasia, depois desta longa tortura que constitui a tela de fundo do filme do Scorsese. Uma organização metódica que controla e denuncia. Todo informante será generosamente remunerado. Todo japonês devera estar afiliado a um templo budista. As punições são coletivas, por família, por cidade. Os poucos que passam pelas rachaduras, os campesinos vivendo em ilhas remotas, são privados de sacerdotes. Condenados à clandestinidade os kakure kirishitan (“cristãos ocultos” em nippo português) se fundem na paisagem religiosa praticando o budismo de aparências e um cristianismo de iniciação. Esses aldeãos admiráveis, verdadeiros proletários campesinos cristãos que não servem mais que de figurantes para Scorsese. Fiel ao romance, o cineasta se recusa a ver a história do ponto de vista deles, sem dúvida muito edificante. Pelo contrario ele adota a visão do poder, da historiografia oficial, numa palavra que a propaganda assim o quer pelos vencedores, que primeiro lhes temem, e com desdenho tentam desacredita-los. Os campesinos japoneses não podem ser mais que ignorantes condenados a obedecer ou a morrer, por não compreender as sutilezas da fé nem os interesses do Estado.
Scorsese como Endô, faz uma triagem radical, uma escolha eficaz da narrativa, mas também uma escolha intelectual. Traição, apostasia e “silêncio de Deus” é a trama da história tal como eles a vêm. O esmagamento de dois jesuítas perdidos numa cultura que não compreendem – Lost in translation, para retomar o título de um filme da Sofia Coppola - evoca a maquina de moer totalitária. Sua história é autentica para todos os que podem saber. Os apostatas do Scorsese não são tão diferentes que os infelizes que confessam crimes imaginários nas prisões do Stalin ou daqueles que a maquina nazista tem reduzido ao estado de colaboradores na câmara de gás. Seres totalmente desumanizados pela destruição de toda ligação e de todo ponto de referencia. Mais do que o silêncio de Deus que todo cristão sabe que ele grita a eles com o Cristo na cruz – “Meu Deus, meu Deus, porque me hás abandonado”? – é a negação do homem pelo homem que marca seu destino.
Mas se você “tira o zoom” um pouco e que nos atrevemos a liberta-lo desse viés de poder, perturbador, mas redutor, de fato manipulador, vemos que ela é apenas a parte mais escura e a mais assustadora de uma perspectiva, muito maior. Segundo o postulado do Endô, do Scorsese, e dos ditadores, o cristianismo não foi feito para o Japão, pois ele seria intrinsecamente “diferente” um “pântano” onde a fé não poderia mais que “apodrecer”. Notemos que o complexo de insularidade impregna o pensamento japonês, tão silenciosamente xenofóbico que ele escreve as palavras estrangeiras num silabário diferente dos ideogramas utilizados para o vocabulário vernáculo. Endô se sentia dividido: nem autenticamente católico, nem completamente japonês. Num país onde a aparência do individuo o “círculo” é fundamental, que drama! O tema do romance expressa bem o seu tormento interior: pode ser um “verdadeiro” japonês e um “verdadeiro” cristão? Endô e Scorsese depois dele respondem pela negativa, sem considerar na melhor das hipóteses que uma fé livre de toda perspectiva social, confinada no segredo da consciência - uma fé castigada e castrada que organizaria em resume hoje pessoas boas. Relativistas e panteístas os Japoneses seriam por natureza incapazes de acreditar num Deus pessoal e aderiram ao cristianismo só por um mal-entendido. O Japão por tanto foi capaz de digerir completamente durante a sua história as culturas que lhe eram completamente estrangeiras: budismo indiano, escritura chinesa, arte coreana, se o poder ficou com medo, foi precisamente porque o cristianismo longe de virar um pântano, progrediu, exaltando valores universais enquanto japoneses, considerando cada individuo como uma pessoa, relativizando as classes sociais e a obediência política, aportando uma promessa de libertação.
Os jesuítas adotaram uma resposta mais sutil, sobretudo se considerarmos a época a que eles pertenciam. Luis Fróis, que viveu por 30 anos no país, escreve em 1585 Europeus e Japoneses. Tratado sobre as contradições e diferenças de costumes (Chandeigne, 2012)
Neste livro de etnologia, não encontramos nenhum vestígio de julgamento sobre a superioridade cultural ou moral do Ocidente. “Na Europa consideramos como afeminado um homem com leque e que se abana: no Japão, é um sinal de baixo status e de pobreza como o de não poder usar o cinto e o de não podem se servir”, escreveu ele entre outras mil observações saborosas. O grande italiano Alessandro Valignano que é um dos primeiros a tentar classificar o dogma e o contexto. Claro, os jesuítas se depararam com um problema insolúvel: no Japão, as religiões xintoístas e budistas se misturam, enquanto que o cristianismo exige uma opção única. Claro que no Japão não existe uma palavra para expressar o Deus criador, e as primeiras traduções provocaram mal-entendidos lamentáveis. Mas nesse século de fogo e de sangue, os católicos inventaram para a fé a inculturação e o universalismo. Nas obscuras ilhas Amakusa assim que a persecução começou uma das prensas mais ativas do mundo imprimia livros em pleno regime.
No final do século XIX, a Europa redescobre o Japão, as armas americanas do Comodoro Perry, o forçam a se abrir e liberalizar. É a era Meiji. Na França, os artistas lançam a moda japonesa. Na Ásia os evangelizadores retornam. Não são mais portugueses ou espanhóis, mas franceses enviados pelas Missões Estrangeiras, com as suas barbas longas. O primeiro vigário apostólico, o padre Bernard Petijean, nativo de Blanzy-sur-Bourbince, Saône-et-Loire, descobre cristãos escondidos, esse marranos católicos de quem as estatuas de Kannon, uma figura feminista do panteão budista servem como um revestimento de um culto à Virgem. Pio IX canoniza coletivamente os mártires esquecidos. Numa França em plena renovação católica, dramas de sucesso contam a sua história e tem no destino um púbico edificado. Um século mais tarde, um grande resistente ao totalitarismo, João Paulo II, canoniza os outros mártires.
Em poucos dias, por decisão do Papa Francisco - um jesuíta-, será beatificado em Osaka o Justo Takayama Ukon. Coincidência certa e impressionante, no momento em que o filme do Scorsese chega à França. A diferença de muitos dos seus contemporâneos, esse samurai próximo do poder ser recusa a abjurar da sua fé. Seu feudo foi confiscado, e ele conheceu uma vida difícil durante duas décadas. Expulso em 1615 com 300 dos seus correligionários, ele morreu nas Filipinas, tentando com que fosse montada uma expedição militar para defender os cristãos. Uma figura, no fundo, muito mais perto da opressão comum que muito ainda sofrem os cristãos de hoje no mundo. Não necessariamente mortos, não necessariamente torturados, mas caídos, caçados, e ainda pagando um preço muito alto por uma fé que nada pode arrancar. Seja qual for o tempo. Seja qual for o poder do momento.
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“Aqueles que foram levados ao cristianismo pelos sacerdotes romanos foram primeiramente decapitados e crucificados, que já parecia terrível. Mas os japoneses viram que essas pessoas receberam a morte com um coração alegre, cantando, rindo e em muitos lugares eles poderiam matar 30, 50 e 100 com muita fé e nunca chegar ao fim. Era como um fogo apenas aguardando para se expandir. Eles então decidiram de mudar as músicas, risos e a alegria por manifestações de gemidos e prantos, então eles começaram a assa-los, amarrados em postes ou em piras, eles executaram de esta forma alguns milhares. Mais eles constataram com aborrecimento que para matar tal multidão de pessoas exigiria um tempo infinito. Então eles procuraram fazer com que abjuraram da sua fé implementado torturas de uma crueldade particularmente assustadora. Estupro sistemático, tortura de crianças frente aos seus pais, mergulhando-os nas águas termais vulcânicas: três séculos mais tarde, o catalogo de torturas seguindo este conte é dificilmente sustentável. No entanto, observa o autor de esta memória, datada em 1636, um hugonote francês, empregado pela Companhia Holandesa das Índias Orientais, “nada feito” descobrimos todos os anos que várias centenas de cristãos são torturados e condenados a morte”.
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A verdadeira história dos cristãos do Japão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU