31 Janeiro 2017
“O clima criado por Francisco desagrada apenas aqueles que têm medo da nossa melhor tradição e querem permanecer agarrados somente aos esqueletos do passado. Quem quer a continuidade com o Vaticano II encontra hoje amplas pradarias de prática e de pensamento, abertas e disponíveis. Quem quer uma hermenêutica da ruptura em relação ao Concílio se encastela no silêncio ou se enfaixa na capa magna.”
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua.
O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 29-01-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Desde o início estava claro: diante da retomada da grande virada conciliar que o Papa Francisco trouxe no estilo de pensamento e de prática eclesial, e do qual a Igreja tinha o justo “pressentimento”, haveria uma resistência nada pequena, especialmente por parte daqueles que tinham se iludido de que podiam fazer com que o Concílio fosse esquecido, que a Cúria fosse normalizada, que o maximalismo moral e o juridicismo canonístico fossem absolutizados.
Por isso, eu li com muito interesse e com sintonia o que Luca Diotallevi escreveu há alguns dias no jornal Il Foglio. Com razão, ele defendia que ainda hoje é necessário um pensamento à altura, são necessárias decisões estratégicas, é necessário um responsável exercício da autoridade; não serve a retórica de quem fala de “saída” e tranca portas e janelas; não serve a bajulação bergoglista, tão consensual quanto vazia.
Por isso, acho importante valorizar um ponto fundamental do pontificado de Francisco: ou seja, a retomada de uma continuidade estrutural com o processo de “ressourcement” e de “aggiornamento” introduzido no estilo eclesial por parte dos grandes documentos do Concílio Vaticano II.
Aqui, devemos ser muito claros, sem nos deixar distrair pela fumaça de contenção ou pela miopia de análise. Quando se colocou nesse caminho aberta e inequivocamente conciliar, Francisco teve que – inevitavelmente – se distanciar de tons, temas e ênfases que o magistério tinha assumido não só “antes do Concílio”, mas também “depois do Concílio”.
Com efeito, a partir de meados dos anos 1980 até a primeira década do novo século, sob o pontificado de João Paulo II e de Bento XVI, pudemos assistir à prevalência – não uniforme, mas bastante pesada – de uma forte descontinuidade com o Vaticano II: diante desses desenvolvimentos de mais de 30 anos de “recepção fracassada” do Concílio, a retomada desejada por Francisco inevitavelmente aparece como uma súbita aceleração.
Mas se trata de um efeito ótico: depois de um período tão longo em que o filme do Concílio tinha sido reduzido a “slow motion” ou até mesmo a “stand by”, quando Francisco apertou o “play”, e as imagens voltaram a passar com naturalidade, muitos exclamaram: “Parecia que estávamos sonhando!”. A realidade eclesial, às vezes, era tão diferente, que o Concílio parecia ter se tornado um “sonho”.
O ponto sobre o qual eu gostaria de me deter, então, é este: com que critérios tal “diferença de ritmo” – que é apenas continuidade fiel ao ritmo dos anos 1960/1970 – foi lida? Observam-se, principalmente, duas reações: as definidas pelo pensamento “pré-anticonciliar” – que falam abertamente e sem qualquer restrição de modernismo, relativismo, protestantização – e aquelas “preter-conciliares”, que raciocinam como se o Concílio não tivesse existido e utilizam critérios de de discernimento velhos, rudes ou até errados.
Mas é interessante que o próprio papa, junto com a grande maioria da Igreja que caminha com ele, sabe muito bem que essa passagem era e será inevitável.
Isso foi expressado do modo mais claro em alguns números da Amoris laetitia, cujo valor vai além da simples “pastoral familiar” e diz respeito, em geral, à configuração de toda a pastoral e da própria relação entre Igreja e mundo. Poderíamos quase dizer que, nesses números iniciais e finais da exortação, o magistério episcopal e papal retoma a lição da Gaudium et spes e a relança para o presente e para o futuro, para além e contra todas as tentativas de esquecê-la, de removê-la e de anestesiá-la.
Tentemos fazer um pequeno resumo sintético:
1. O Magistério não pode e não deve dizer tudo e, por isso, precisa de “outras autoridades” (AL 2-3). Essa é a raiz sistemática do “discernimento”, que implica a consciência e a responsabilidade de “muitos”.
2. É preciso exercer uma serena autocrítica em relação a erros graves, que comprometeram a capacidade de comunicar o Evangelho. Não se trata simplesmente de denunciar os “males do século”, mas de mostrar honestamente os limites da palavra eclesial:
- evitar a exclusividade da denúncia retórica dos males atuais;
- não recorrer apenas à imposição das normas por autoridade;
- às vezes, o modo de apresentar as convicções e de tratar as pessoas foi contraproducente;
- uma idealização excessiva de um conceito de matrimônio abstrato demais;
- uma insistência exagerada e exclusiva em questões doutrinais, bioéticas e morais, sem motivar a abertura à graça;
- a substituição das consciências, em vez da sua formação (AL 35-37).
3. O estilo com que a teologia propõe a si mesma deve mudar: não precisamos de teologias frias de escrivaninha, mas de teologias participadas, feridas, quase acidentadas (AL 311-312).
4. É mesquinho pretender julgar uma pessoa apenas com base em uma lei objetiva (AL 304).
Por todas essas razões, era inevitável uma reação irada por parte daqueles que continuam pretendendo que o Magistério permaneça vinculado sine die aos seus erros de tepidez e de remoção pós-conciliar. Como se aquilo que dissemos e escrevemos oficialmente de 1980 a 2010 tivesse que permanecer vinculante para sempre, pelos séculos dos séculos...
A isso não se opõem os slogans, nem apenas os “gestos”: são os textos do Vaticano II que hoje voltam a viver e a agir, depois de um congelamento devido ao medo e ao oportunismo. Nesta primavera, no entanto, também se precisa de textos e de pensamentos à altura. Aqueles que o Espírito já soube suscitar nos pastores e aqueles que também esperam pelos teólogos, que podem pensar de modo grande a herança conciliar em todas as suas gamas e nuances.
O clima criado por Francisco desagrada apenas aqueles que têm medo da nossa melhor tradição e querem permanecer agarrados somente aos esqueletos do passado. Quem quer a continuidade com o Vaticano II encontra hoje amplas pradarias de prática e de pensamento, abertas e disponíveis. Quem quer uma hermenêutica da ruptura em relação ao Concílio se encastela no silêncio ou se enfaixa na capa magna, ironiza cinicamente ou confia no transcorrer do tempo. Como se o tempo pudesse dar razão a quem o nega! Como se longas décadas de “teologia de autoridade”, com muito pouco espaço para a razão de verdade – em alguns campos estratégicos como a moral e a liturgia –, não estivessem destinados a produzir tantos soldadinhos obedientes e também alguns monstros! Que agora devemos manter sob controle e também consolar, seja como soldados, seja como monstros. Dando o gosto da liberdade aos primeiros e o senso da medida aos segundos.
No entanto, apesar de tudo isso, o retorno com autoridade do Concílio Vaticano II exige uma recepção exatamente como há 50 anos. Aquilo que parecia perdido, de fato, não se perdeu. Mas participar desse dom renovado não é algo pouco exigente: requer uma disponibilidade à conversão e uma capacidade de oração, uma arte da escuta e uma força na palavra que colocarão a todos sob dura prova. Este nosso tempo de graça também é sempre uma prensa: para que a oliva produza óleo – e não só bagaço – é preciso trabalho e paciência, audácia e oração. Como sempre.
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Um magistério capaz de autocrítica: do "standby" ao "play". Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU