15 Dezembro 2016
“Se sonhar e lutar pelo que sempre se chamou justiça social é populismo, então é isso que os assusta. É a palavra maldita da política contemporânea. Por isso, degradam o vocábulo instalando a escuridão, sibilina ideia de que são populistas aqueles que na realidade são fascistas”, escreve Mempo Giardinelli, escritor e jornalista, em artigo publicado por Página/12, 12-12-2016. A tradução é de André Langer.
O sr. Macri completou um ano na presidência e esta coluna renunciou a outra carta semestral. Já há análises muito boas sobre um ano lamentável e sobram diagnósticos, desde os alegremente estúpidos até os rigorosos e sombrios.
Parece ser melhor continuar uma reflexão iniciada notas atrás, uma vez que, ao completar-se um ano da Aliança Pró-Radical no governo, volta-se a falar do populismo em termos pejorativos, e isso sim propõe um debate útil um após o início da demolição oligárquica e mafiosa que comove a Argentina.
Quando o macrismo começa a sofrer tropeços legislativos, quedas nas pesquisas, e explode a corrupção cada vez mais evidente com dezenas de imputações e processos – inclusive de presidente e vice-presidente e com baixíssimas probabilidades de saírem limpos se existir aqui o que aqui se chama Justiça – alguns analistas condenam o populismo como uma espécie de mágica encarnação satânica, todo-poderosa e onipresente.
Curiosamente, no heterogêneo pelotão de oficialistas independentes aparece uma intelectual rigorosa, aguda e de respeitável trajetória como Beatriz Sarlo, que esta semana, em um artigo publicado no Perfil, teoriza sobre o nascimento de um suposto “populismo cool” ou “com onda”, em um artigo em que, de passagem, iguala e degrada o que chama “paleo-populismo” mediante a acusação de que ambos “precisam embelezar o povo” para transformá-lo em clientela política.
Semelhante apedrejamento ideológico esquece ou deixa passar o fato inegável de que todos os contos das últimas décadas mostraram-se brutalmente prejudiciais para os setores populares, os trabalhadores e as classes médias emergentes. À queda do Muro de Berlim e ao fim da Guerra Fria impôs-se o conto da globalização: abaixo as fronteiras, abaixo as identidades, abaixo inclusive as línguas nacionais. Depois veio o conto do derrame, tão imbecil que não é preciso gastar linhas para condená-lo. E, em seguida, veio o neoliberalismo, conto que hoje parece triunfar graças aos dois grandes poderes tecnológicos a serviço do capitalismo feroz: o comunicacional hiper concentrado que impera em todo o mundo e aqui se chama Clarín, La Nación, Papel Prensa, TN, Perfil e um monte de pequenos etc.; e o poder das redes sociais, que sendo um recurso maravilhoso serve clara e contundentemente para o controle social e para anestesiar juventudes. A missão: tornar as sociedades estúpidas inventando realidades virtuais que ocultam e distorcem o dia a dia das grandes maiorias.
Diante disso, a única perspectiva real de freio a tanta brutalidade foi – como se evidenciou em Nossa América nos últimos dois ou três lustros – a defesa e a proteção das identidades nacionais, dos recursos e patrimônios coletivos, da educação horizontal e popular, da industrialização, do transporte e do crédito a serviço da produção e do trabalho e da autodeterminação nas relações internacionais. Tudo isso foi possível trabalhosa e conflituosamente com Estados fortes, capazes de enfrentar e vencer as deficiências da política, da economia e das piores expressões da natureza humana. Ou seja, Estados que primordial e prioritariamente procuraram igualdade social, erradicar a pobreza e consolidar os pilares sociais da paz: pão, teto, trabalho, educação, solidariedade e participação.
Na Argentina, teve vários nomes no último século: radicalismo, socialismo, peronismo. Criações políticas que ganharam afetos populares pela simples razão de que em suas melhores expressões, as não claudicantes, construíram tudo de bom que ainda resta aos argentinos. E também na América Latina, com diferentes nomes, mas iguais eixos anti-oligárquicos e de freio à voracidade do capital e da exploração trabalhista.
É claro que o nome que tudo isso tem é populismo.
Se sonhar e lutar pelo que sempre se chamou justiça social é populismo, então é isso que os assusta. É a palavra maldita da política contemporânea. Por isso, degradam o vocábulo instalando a escuridão, sibilina ideia de que são populistas aqueles que na realidade são fascistas. Mas o fascismo do Tio Donald que tanto os impressionou não é populismo; é simplesmente fascismo. Como aqui o fascismo macrista – cada vez mais evidente, racista e agressivo –, que pretende refundar a Argentina desmantelando o melhor que fizeram o peronismo histórico e seu último filho, o kirchnerismo.
A degradação conceitual do vocábulo populismo é funcional ao governo destes caras estão desesperados para cooptar o pior da política para cumprir o velho sonho gorila de que matar o peronismo é acabar com o fato maldito da política argentina.
Falar agora em neopopulismo, ou cool, com onda ou outras adjetivações pejorativas, é um modo de rebaixar o conceito e impedir o debate de fundo, que consiste em ver de que maneira se atende ao que interessa à parte menos favorecida do povo, a que menos recursos econômicos tem para uma vida digna. Esse é o tema, essa a ideia central em debate. Porque a essência de toda nação é o povo e não as tecnologias nem os interesses globais. E são os interesses nacionais e populares que importam. Os que contam e devem ser objeto inalienável da ação política, aqui e na China.
O populismo é, de fato, o projeto político de nação que deu a melhor qualidade de vida aos setores médios e populares no último século e em 33 anos de democracia. Mesmo com deficiências e equívocos, corruptelas e imbecilidades, hoje e frente ao neoliberalismo rasteiro segue sendo a melhor perspectiva para uma pátria justa, livre e soberana, um Estado forte e superior, controles firmes ao capitalismo selvagem, tendo a igualdade e a justiça social como horizontes.
É hora de sair da posição defensiva em que o populismo esteve historicamente. É hora de assumir e proclamar que o populismo se quiser ser, em pleno século XXI, a maior e melhor esperança de mudanças profundas nas até agora sempre desiguais relações capital-trabalho. Um populismo ativo, heterodoxo, militante e incômodo para a hipocrisia do “politicamente correto” é a melhor esperança frente ao fascismo neoliberal.
Declará-lo “cool” para nos empatar com o Tio Donald e com o fantoche presidencial, não passa de reconhecimento. O de que algo se move nas profundezas deste nosso país, abusado e violado. Chama-se populismo e, por isso mesmo, o entulham com adjetivos.
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Populismo: nem neo, nem cool, nem de onda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU