16 Novembro 2016
"Estamos testemunhando o retorno do que os alunos de história da Igreja se lembrarão como "americanismo", quando em 1899 o Papa Leão XIII acusou a Igreja dos EUA de se adaptar demais à cultura política americana". O artigo é de Massimo Faggioli, professor de teologia e estudos religiosos na Universidade de Villanova, nos EUA, em artigo publicado por La Croix International, 14-11-2016. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Eis o artigo.
Uma pequena maioria dos católicos norte-americanos (52% contra 45%) contribuiu para que Donald Trump vencesse a disputa pela Casa Branca.
Isso é algo com que a Igreja Católica nos Estados Unidos terá de conviver.
Os futuros estudiosos do catolicismo norte-americano não serão benevolentes para com aqueles que possibilitaram que isso acontecesse. A lista inclui o Partido Democrata, que nomeou uma pessoa que parecia (tendo essa impressão algum fundamento ou não) politicamente indiferente, se não desdenhosa, ao chamado "voto religioso" do país.
A questão agora é como a Igreja Católica vai reagir perante este terremoto político - na sua relação com o novo governo, com um papa como Francisco, que é muito mais distante de Trump do que a maioria dos católicos norte-americanos e internamente, com um cenário eclesial bastante dividido.
Este último item é o mais complexo de todos, porque é algo que terá um impacto a longo prazo, para bem depois que Trump encerrar seu mandato. A eleição do novo presidente da Conferência dos Bispos dos EUA esta semana será apenas mais um passo no longo processo de compreensão do que acaba de acontecer no país.
Há pouco mais de um ano, o Papa Francisco visitou os Estados Unidos. O impacto da sua extraordinária visita, que entusiasmou os católicos norte-americanos, ainda não está claro. Com certeza, ela não modificou uma das principais características de seu pontificado: que ele tem problemas com os católicos norte-americanos, e muitos católicos norte-americanos (incluindo muitos dos bispos nomeados por João Paulo II e Bento XVI) têm problemas com ele.
Estamos testemunhando o retorno do que os alunos de história da Igreja se lembrarão como "americanismo", quando em 1899 o Papa Leão XIII acusou a Igreja dos EUA de se adaptar demais à cultura política americana.
Mas o Papa Francisco não tem apenas um "problema americano". Há também uma questão neoamericanista, um problema bilateral, tanto com a Igreja global quanto com os Estados Unidos.
Primeiro, há a crítica neoconservadora a Francisco. É o lado mais visível do catolicismo neoamericanista, que se infiltrou no discurso católico, advindo de um ponto de vista intelectual separado da teologia.
O problema do americanismo católico tradicionalista e neoconservador em relação ao Papa diz respeito não tanto à sua teologia, mas sim à sua visão da Igreja e à sua mensagem sociopolítica. Francisco tornou o final do alinhamento ideológico entre o conservadorismo político-religioso e a Igreja Católica tão claro quanto a base da civilização euro-americana.
Neoconservadores acusam-no de ter se popularizado às custas da Igreja Católica. O principal problema aqui é que eles consideram este padre jesuíta da América Latina de um jeito diferente.
Não me lembro de autointitulados guardiões da ortodoxia católica questionarem os efeitos colaterais da popularidade papal de João Paulo II e Bento XVI ou acusarem qualquer um deles de heresia. Mas eles acusam Francisco de construir sua popularidade pelo abandono ou pela diluição de ensinamentos impopulares da Igreja (relacionados à moralidade sexual e ao casamento, por exemplo). Desta forma, segundo eles, o Papa está dividindo a Igreja. Como se os católicos (incluindo os norte-americanos) não estivessem divididos a respeito dos ensinamentos da Igreja sobre a moralidade sexual por pelo menos cinquenta anos.
Isso revela a lacuna entre o catolicismo idealizado por Francisco e a narrativa usada pelos neoconservadores para descrever o papel da religião no destino da civilização ocidental. Eles acusam o Papa de falhar no desafio crucial de manter uma "Igreja forte". Talvez eles estejam certos, no sentido de que ele não reconhece que a força social e política da Igreja Católica Romana é menos importante do que o seu cristianismo, isto é, sua constituição à imagem de Cristo.
Se você acredita que a mensagem moral de Jesus Cristo em termos de misericórdia, justiça social e inclusão dos pobres custa muito para a Igreja Católica, então você não entende o Papa Francisco.
Mas há também um segundo lado do neoamericanismo católico. Trata-se de um catolicismo neoamericanista que é teológico e eclesiológico, e não pode ser atribuído a especialistas e formadores de opinião teologicamente analfabetos.
A crença de que os Estados Unidos são uma nação extraordinária com uma missão especial é típica deste catolicismo neoamericanista. É uma eclesiologia exclusivista decorrente da teologia não-católica (vem do Calvinismo, mais especificamente) que defende uma Igreja menor e mais pura. Também é uma deslegitimação teológica da política e do Estado, baseada em uma interpretação específica (e questionável) da eclesiologia da "Cidade de Deus" de Santo Agostinho. E constitui uma hipocrisia moralista focada em meros princípios, o que implica uma falta de interesse pelas consequências das decisões tomadas em nome de uma relação de respeito aos princípios morais puramente nominalista.
Vimos esses elementos atuarem pela maneira como setores influentes da Igreja Católica nos Estados Unidos prepararam (ou melhor, não se prepararam) para a eleição presidencial de 2016. Houve relutância em se envolver e criticar a retórica neonacionalista e anti-internacionalista na política americana (especialmente quando advinda de políticos católicos). Alguns bispos influentes também apelaram para que os católicos deixassem a Igreja (um convite estendido particularmente aos políticos católicos ativos no Partido Democrata).
Sobre o tema do aborto, vimos - mais do que nunca - que eleitores que focaram somente na questão "pró-vida" (incluindo alguns bispos) estavam convencidos de que precisavam considerar os posicionamentos dos candidatos somente sobre esse tópico.
E houve uma crescente popularidade de teólogos que passaram décadas dizendo aos católicos que ser ativo no processo político só traz prejuízos à própria identidade católica, ao contrário do que diz a doutrina social católica sobre engajamento político. Este é um problema especialmente notório na esquerda do espectro político da intelligentsia teológica católica.
Esta última característica é particularmente paradoxal - desde o decreto "non expedit", emitido pelos papas do final do século XIX e início do século XX, contra a participação dos católicos no processo político democrático, ao "non expedit" emitido por teólogos católicos leigos em uma dissonância clara da mensagem social e política do Papa Francisco.
A Igreja Católica nos Estados Unidos é uma das mais vibrantes do mundo e tem um importante papel de liderança. Mas está sendo acometida por vários males. Há o problema da polarização política e cultural dentro da Igreja, da segregação mútua entre os bispos e os fiéis católicos e das relações entre o Papa Francisco e segmentos do catolicismo norte-americano. Isso se estende além dos bispos e inclui alguns teólogos, faculdades e universidades católicas dos EUA, assim como associações de leigos, como, por exemplo, os Cavaleiros de Colombo.
A questão do equilíbrio entre uma interpretação universal (católica) do catolicismo e sua necessária incorporação local e nacional é uma questão recorrente que todos os católicos do mundo têm de enfrentar, consciente ou inconscientemente.
Mas, neste momento histórico, diante da eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, parece-me que no fundo do coração do futuro da Igreja americana está a escolha fundamental entre ser uma Igreja Católica Apostólica Romana nos EUA ou ser uma Igreja Católica Americanista.
E isso, ao que me parece, é uma questão urgente e crucial para os católicos neste grande país.
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A Igreja na Era Trump: catolicismo ou americanismo? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU