11 Novembro 2016
"Uma leitura dos contrastes evidentes entre Trump e Francisco sugere uma relação tensa e complicada. Por outro lado, visto que diferenças assim fazem parte do curso político ao redor do mundo inteiro, talvez uma parceria entre estas duas figuras possa surgir como uma das grandes surpresas dos nossos tempos", escreve John L. Allen Jr., em artigo publicado por Crux, 09-11-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
O instinto é o de prever uma relação complicada entre os EUA e o Vaticano na medida em que Donald Trump e o Papa Francisco são as figuras no comando agora. Mesmo assim, há pelo menos três áreas em que uma parceria surpreendente pode ocorrer.
Desafiando tudo aquilo que se sabia de política convencional, Donald Trump surpreendeu o mundo ao vencer a corrida presidencial.
Dado o papel que os Estados Unidos desempenham no cenário mundial, os atores internacionais estão neste momento se pondo a descobrir o que a vitória de Trump significa sobre a direção que os Estados Unidos vem tomando e qual a melhor maneira de reagir.
Um desses atores, é claro, vem a ser o Vaticano.
Para empregar as categorias tornadas famosas por Joseph Nye, o Vaticano é a “potência macia” mais importante do mundo, sendo a única religião mundial importante que tem em seu seio um Estado soberano com um corpo diplomático próprio; os Estados Unidos, com gastos militares excedendo todos os demais países juntos, é a “potência dura” mais importante do planeta.
Inevitavelmente, portanto, a relação entre esses dois atores é importante e, nesta manhã, o pessoal da Secretaria de Estado do Vaticano, que tem como responsabilidade primeira a política externa, sem dúvida está tentando entender em que ponto as coisas se encontram.
Honestamente, à primeira vista as estrelas não parecem alinhadas para uma relação auspiciosa entre o atual governo em Roma e o governo a assumir o poder em Washington.
Nunca antes na história americana, por exemplo, um presidente-eleito foi diretamente criticado por um pontífice durante as primárias. Em fevereiro deste ano, no retorno da viagem que fez ao México, com destaque para uma parada na fronteira entre EUA e México, um repórter perguntou ao papa o que ele pensava de um político que quisesse construir um muro ao longo daquela fronteira.
“Uma pessoa que pensa apenas em construir muros, onde quer que seja, e não em construir pontos, não é cristão”, disse Francisco. “Isso não está no evangelho”.
E preciso dizer que Francisco minimizou esta resposta dizendo que estava aceitando a descrição da postura adotada pelo político a partir do que disse o jornalista autor da pergunta. Também é preciso dizer que a resposta inicialmente voraz de Trump rapidamente foi suavizada na medida em que insistia ter o papa se expressado sem saber do contexto.
Os prováveis pontos de distanciamento entre a Casa Branca e um Vaticano de Francisco são fáceis de antecipar: imigração, mudança climática, iniciativas contra a pobreza, multilateralismo na política externa, crime e punição, e assim por diante.
O instinto natural provavelmente será o de prever uma relação conturbada entre os EUA e o Vaticano, na medida em que Trump e Francisco são as figuras à frente de seus Estados.
Por outro lado, no discurso de vitória Donald Trump prometeu travar “boas relações” com outros países, e em tese a Santa Sé inclui-se aqui. A questão mais interessante, portanto, é onde o atual papa e o novo presidente poderiam atuar juntos.
Além de alguns temas óbvios, como o aborto, a seguir apresento três outras possibilidades.
Perseguição anticristã: Por repetidas vezes, o Papa Francisco tem se referido àquilo que chama de “ecumenismo de sangue” que acontece no mundo de hoje, assim como tem salientado que há mais mártires cristãos, hoje, do que no início da era cristã. O candidato Trump disse coisas parecidas: “No exterior, o ISIS tem levado a cabo, uma atrás da outra, atrocidades inimagináveis (…) Lugares sagrados estão sendo profanados. Cristãos estão sendo expulsos de suas casas e levados para o extermínio. O ISIS está apagando aquilo que chama de a ‘nação da cruz’ em uma campanha genocida. Não podemos deixar que esse mal continue”. A defesa dos cristãos vulneráveis, especialmente no Oriente Médio, pode ser uma área comum de atuação.
Teoria do gênero: Papa Francisco tem se queixado de que potências mundiais inominadas – supõe-se que ele queira dizer os governos ocidentais e ONGs – têm pressionado países em desenvolvimento a propagarem a ideia de que gênero é flexível e socialmente construído, isso como condição para a cooperação financeira. O papa se referiu a isso como parte daquilo que chama “colonização ideológica”. Trump não debateu explicitamente a ideia da teoria do gênero, mas, em geral, como uma questão de política ele professa uma perspectiva ética tradicional e igualmente não se mostra disposto a ver o dinheiro americano ser gasto em ajuda ultramarina.
Consequentemente, é razoável pensar que ele pode ser favorável a rever programas de desenvolvimento através dessa lente.
A liberdade religiosa: O candidato Trump declarou: “Irei me certificar em absoluto de que ordens religiosas como as Irmãzinhas dos Pobres não sejam intimidadas pelo governo federal por causa de suas crenças religiosas”. Como sabemos, o Papa Francisco fez uma visita às Irmãzinhas no tempo em que permaneceu nos Estados Unidos em setembro passado e, na coletiva de imprensa concedida no voo que o trouxe de volta a Roma, declarou apoiar um direito de objeção de consciência para os funcionários do governo. Pelo menos nesta frente os dois líderes parecem estar em sintonia.
Até que ponto o Vaticano e a Casa Branca poderão unir forças nessas ou em outras frentes dependerá, em certa medida, das escolhas feitas por ambas as partes.
Do lado de Donald Trump, será importante escolher um enviado para o Vaticano que seja percebido como uma figura séria, capaz de mover os pauzinhos e, em geral, de reconhecer o papel que o Vaticano desempenha em assuntos mundiais. Uma maneira de conseguir isso pode ser indicando o vice-presidente eleito Mike Pence para fazer a frente, dado o seu nível de conforto com a linguagem religiosa.
Do lado do Vaticano, será importante enviar sinais de abertura e de um desejo de dialogar, além de evitar a percepção de uma batalha logo de início contra o novo governo americano.
Uma leitura dos contrastes evidentes entre Trump e Francisco sugere uma relação tensa e complicada. Por outro lado, visto que diferenças assim fazem parte do curso político ao redor do mundo inteiro, talvez uma parceria entre estas duas figuras possa surgir como uma das grandes surpresas dos nossos tempos.
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Onde Trump e Francisco poderiam atuar juntos? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU