28 Outubro 2013
Usando as categorias que ficaram famosas com Joseph Nye, os Estados Unidos são o principal "hard power" [poder duro] mundial, e o Vaticano é um dos seus mais influentes "soft powers" [poderes suaves]. Sob essa luz, uma forma de definir o papel de um embaixador dos EUA junto à Santa Sé é a sincronização dessas duas superpotências nas preocupações humanitárias comuns: alimentar os famintos, combater a pobreza, frear a guerra, fomentar o diálogo e assim por diante. Se esse é o trabalho, poucas pessoas são mais qualificadas do que Ken Hackett.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 25-10-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Natural de West Roxbury, Massachusetts, Hackett se uniu à Catholic Relief Services (CRS), a agência de caridade exterior dos bispos norte-americanos, em 1972 e passou os próximos 40 anos servindo os pobres em nome da Igreja Católica. Ele assumiu o cargo de diretor-executivo em 1993 e de presidente em 2003, até sua aposentadoria em dezembro de 2011.
Embora Hackett não tenha experiência anterior como diplomata, é quase impossível citar um canto do mundo onde ele não tenha sujado as suas botas com lama ao longo dos anos, aprendendo a situação e conhecendo os atores, tanto na Igreja quanto nos círculos governamentais e humanitários. Ele e sua esposa, Joan, tiveram seu primeiro filho em uma missão nas Filipinas e o seu segundo no Quênia.
Ele também é um especialista sobre Roma, tendo desempenhado funções de liderança tanto no Pontifício Conselho Cor Unum, a agência vaticana que supervisiona a atividade de caridade, quanto na Caritas Internationalis, a confederação com sede no Vaticano de grupos humanitários católicos. Como Francisco tem uma propensão a confiar altos cargos vaticanos a ex-diplomatas, Hackett é especialmente informado, pois ele conhece muitos deles dos seus postos anteriores em todo o mundo.
Como a CRS depende pesadamento do financiamento público norte-americano – cerca de 500 milhões de dólares por ano, entre doações em dinheiro e em bens –, Hackett também entende as políticas e agências humanitárias do governo dos EUA mais do que possivelmente qualquer figura da vida católica.
Moral da história: o governo Obama pode ter seus problemas com a Igreja em outras áreas, mas a maioria dos observadores dizem que ele fez uma escolha inteligente com Hackett. Ele lançou um blog sobre as suas experiências.
Hackett apresentou as suas credenciais ao Papa Francisco na última segunda-feira, marcando o início formal do seu mandato como embaixador. Na última quinta-feira, ele concedeu uma entrevista por telefone ao NCR.
Eis a entrevista.
Como foi a sua experiência de apresentar as suas credenciais ao Papa Francisco?
Foi magnífico e inspirador. Outros embaixadores me tinham dito que o Santo Padre gera uma conexão pessoal com você, e eles estavam certos. Tínhamos um tradutor, porque o meu italiano ainda não é lá essas grandes coisas. Ele falou principalmente em espanhol, e eu em inglês, embora ele entendesse grande parte do inglês. Eu lhe apresentei um pouco da minha experiência, embora ele já tivesse sido informado.
Eu tinha estado no dia anterior no governo do Estado da Cidade do Vaticano para ver o cardeal [Giuseppe] Bertello, a quem eu tinha visitado em várias ocasiões, quando ele era núncio em Ruanda. Quando o genocídio começou, ele teve que sair, e eu lhe contei que eu havia visitado a sua residência depois e vi buracos no teto acima da sua sala e do seu quarto, onde os morteiros tinham atingido. A conversa ressuscitou algumas imagens que ele tinha deixado para trás.
Bertello sugeriu que eu deveria falar com o Santo Padre sobre o genocídio, porque ele provavelmente não sabia muito sobre isso. Eu o fiz, e o Santo Padre ficou muito interessado, dada a sua profunda compaixão para com os pobres e os marginalizados. Foi uma experiência comovente, porque eu tinha um colega comigo, um ex-vice-presidente da CRS, que é casado com uma ruandesa que perdeu 58 membros da sua família no genocídio. Compreensivelmente, ela estava em lágrimas.
Além disso, falamos sobre alguns dos principais desafios que o mundo enfrenta: a Síria, a paz na Terra Santa, o Irã e a esperança de progresso com relação ao seu programa nuclear, questões migratórias e assim por diante. Nós não entramos em muitos aprofundamentos, mas ele foi extremamente receptivo. No fim, ele disse: "Eu estou rezando por você, estou rezando pelo seu presidente, e eu estou rezando pela paz".
Como o senhor vê o papel da embaixada dos EUA junto à Santa Sé?
O meu papel é representar o presidente e o nosso governo junto aos membros da Cúria Romana e à Santa Sé, geralmente sobre as questões que são uma prioridade para nós, reconhecendo que a Santa Sé é verdadeiramente global em seu alcance e muitas vezes tem acesso a informações e intuições sobre as situações ao redor do mundo que outros canais diplomáticos não têm.
Há muitas, muitas questões em que o governo dos EUA encontra não apenas uma causa comum com o Vaticano, mas também uma convergência real de prioridades. A lista inclui o tráfico de pessoas, o desenvolvimento humanitário internacional e a questão dos refugiados, sem falar da situação das minorias cristãs em todo o mundo. Isso é algo com que a Santa Sé está profundamente preocupada, assim como muitas comunidades religiosas com sede aqui em Roma.
O senhor tem algum objetivo pessoal como embaixador?
O que eu gostaria de fazer é articular a rede de contatos que eu desenvolvi ao longo dos anos na CRS, todas as pessoas que eu conheci em todo o mundo e ser um ouvido atento para elas e uma fonte de encorajamento. Por um lado, muitas dessas pessoas me ofereceram uma refeição e uma cama várias vezes. Por isso, eu gostaria de lhes oferecer a mesma hospitalidade aqui. Além disso, eu gostaria de ajudar a fazer com que as suas vozes sejam ouvidas, porque muitos delas vêm de lugares para os quais nós muitas vezes não prestamos muita atenção.
Recentemente, eu recebi o bispo de Djibuti aqui, algumas irmãs religiosas da Argélia, um bispo do Haiti e outro da Nigéria. São todas as pessoas que eu conheço e que têm uma riqueza de experiência e sabedoria, e eu espero que eu possa abrir novas conexões com elas, tanto para o nosso governo quanto para a Santa Sé.
O secretário de Estado, [John] Kerry, fez do engajamento dos líderes religiosos uma prioridade, reconhecendo que muitas vezes eles fornecem uma visão e inspiram uma ação que faz uma diferença real, seja qual for a sua fé. Eu gostaria de contribuir com esse esforço sendo um agente de convocação, unindo as pessoas.
Como o senhor acha que a eleição de Francisco afetou o perfil diplomático do Vaticano?
Ao longo deste mês em que eu estou vendo de perto o que está acontecendo aqui, eu acho que estamos vendo uma nova força para o bem [em Francisco] que só vai crescer em intensidade. Ele já se tornou um ponto de encontro de esperança em todo mundo entre pessoas de todas as fés.
Ontem à noite, eu estava com algumas pessoas da Fundação Simon Wiesenthal, que, naturalmente, são judias, junto com alguns muçulmanos que eles convidaram. A sua preocupação é a tolerância religiosa, e todos eles me disseram como eles ficaram admirados com as ações que Francisco tomou e as palavras que ele ofereceu. Eles o veem como um poderoso encorajamento e inspiração.
Na audiência geral de ontem, [o arcebispo Georg] Gänswein me disse que havia 92 mil pessoas registradas naquele dia e talvez outras 50 mil pessoas na rua. Eles nunca tiveram números em audiências como esses antes. Francisco tem o poder de inspirar as pessoas e de oferecer liderança sobre questões importantes que surgem da sua fé de uma forma que captura a todos.
Diplomaticamente, eu posso dizer que cada embaixador com quem eu conversei aqui diz que os seus governos estão investindo agora mais energia em inquirir sobre o que está acontecendo no Vaticano. Eles querem saber quais serão as prioridades de Francisco e o que ele pode ter a dizer sobre as principais questões mundiais.
O governo Obama tem tido uma relação mista com os bispos norte-americanos. Isso tem algum impacto sobre a sua capacidade de se engajar com o Vaticano?
Eu não me sinto negativamente afetado por isso. Eu acredito que há muito mais questões sobre as quais o nosso governo concorda com a Santa Sé, ao contrário das poucas áreas de desacordo, e é aí que eu vou colocar a minha ênfase. Eu diria o mesmo sobre a Igreja dos Estados Unidos. Na verdade, há muito mais questões em que a Igreja e os bispos estão em sintonia com a administração, embora as que recebam atenção tendam a ser aquelas onde há desacordo.
O senhor está preocupado em dar "cobertura" a um governo que alguns católicos dos Estados Unidos veem como hostil?
Eu não estou preocupado com isso. Além de todas as áreas de convergência que a Igreja e o governo têm, eu também acredito que, quando há divergências, temos que dialogar em vez de atirar pedras um contra o outro. Esse não é apenas o meu sentimento das coisas, porque eu já conversei com muitos bispos que dizem que estão satisfeitos com a minha nomeação.
Recentemente, a American Life League perguntou em voz alta se a Catholic Relief Services é um "pústula sobre a Igreja", objetando a casos em que a CRS colabora com grupos que não compartilham o ensino da Igreja sobre questões como o aborto e a contracepção. Esse tipo de crítica, que já aparece ao longo dos anos, altera a forma como o senhor será recebido no Vaticano?
Não tem alterado até agora e por que deveria? A CRS faz um trabalho maravilhoso e heroico em todo o mundo, e por isso muitas pessoas dentro da Cúria e em outros lugares na cidade experimentaram os seus programas em primeira mão. Eu não acho que eles estejam especialmente preocupados com críticos que acham uma ou duas coisas erradas em uma organização que patrocina programas de 800 milhões de dólares a cada ano, que opera em 100 países e que tem mais de 5.000 colaboradores. É claro, as coisas sempre podem dar errado, e pode haver um erro aqui ou ali, mas a reação básica à CRS que eu recebo em Roma é de gratidão. No máximo, é geralmente algo do tipo: "Aliás, vocês podem fazer mais?". Em geral, eu não valorizaria muito detratores que não têm lama debaixo dos seus pés, porque eles não trabalharam nos lugares mais difíceis.
Durante o seu primeiro mandato, o presidente Barack Obama visitou o Papa Bento XVI. Houve alguma conversa sobre um encontro durante o seu segundo mandato com o Papa Francisco?
Eu levantei essa questão com as pessoas da Casa Branca e recebi um entusiasmado "sim", mas, neste momento, não há nenhuma indicação de data. O secretário Kerry, aliás, também manifestou interesse em se encontrar com o papa.
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''Há mais sintonias do que divergências entre Obama e Francisco'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU