11 Novembro 2016
"Assim que conhecemos as batidas do coração, as suas dores e os seus amores podem assumir uma forma mais profunda. E em toda essa confusão, o especificamente humano se aproxima do especificamente sagrado. O coração do mundo é uma terra santa".
O comentário é de Elizabeth Dias, jornalista, correspondente de religião e política da revista Time, é vencedora do George W. Hunt, S. J., Prêmio de Excelência em Jornalismo, Artes e Letras de 2016. A seguir publicamos o texto da palestra que ela proferiu na cerimônia de premiação realizada na Universidade de Yale em 29-09-2016. O artigo foi publicado por America, 14-11-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
O criador desta revista de notícias conhecia o poder da religião. Henry Luce, fundador da Time, nasceu de pais missionários presbiterianos na China no final do século XIX. Cresceu escrevendo sermões por diversão. E fez da religião um dos cinco pilares da cobertura da revista. Certa vez Luce disse: “Tornei-me jornalista para chegar o mais próximo possível do coração do mundo”.
O coração ama; o coração dói. Ele pode ferir e pode se espedaçar. E, com tudo isso, o coração faz mais: ele bate. Na maioria das vezes nós nem percebemos. Mas esse pulsar ordena a nossa vida e a vida dos demais. Quando funciona corretamente, o coração bombeia o sangue pelo corpo, cinco ou seis litros por minuto, e nos dá vida. Quando não funciona corretamente, a simples ausência de uma batida pode parecer um ataque cardíaco.
Reportar é um exercício de monitoramento desta batida, fazendo notar quando e como ela muda, às vezes soando um alarme quando corre, retarda ou vacila. Na maioria das vezes, relatar é simplesmente estar aí com o coração, ouvindo-o bombear, sentindo-o bater, em um momento, em algumas semanas e, até mesmo, durante anos.
Hoje, o pulsar da vida espiritual americana está mudando. Não há apenas um pulsar. Há muitos, e eles muitas vezes estão em conflito. Há a ascensão dos chamados sem religião, a “geração sem Deus”; a crescente aceitação de comunidades lésbicas, gays e transexuais nas igrejas, protestantes e católica; a migração mundial de pessoas, crianças desacompanhadas que saem da América Central, sírios que fogem do terrorismo, refugiados que procuram abrigo e, em geral, o embaralhamento inter-religioso que isso traz; o medo continuado dos americanos para com os muçulmanos e a percepção equivocada da lei islâmica (Sharia); a ascensão das mulheres na liderança religiosa; a violência contra corpos pretos e pardos; e a lista continua.
Eu gostaria de trazer aqui três das histórias que definem a paisagem espiritual e política americana neste momento. Cada uma delas é uma batida do coração na vida espiritual americana. Cada uma reflete um pulsar desta nação; elas fundamental a minha cobertura de religião e política na Time.
Não pretendo fazer o trabalho de teóloga. Sou jornalista. O meu ofício é acompanhar os movimentos dos rebanhos. Escrevo o que vejo, o que ouço, o que aprendo. Na melhor das hipóteses, relatar é um esforço de testemunhar os batimentos cardíacos do mundo e nomeá-los, descrevê-los e devolvê-los ao mundo de uma forma que abram novas conversas para compreender a verdade.
Certo dia, quatro anos atrás, também durante a eleição presidencial, eu estava dirigindo por bairros periféricos do Condado de Maryland, em Washington, quando notei uma pequena placa espremida entre as placas de campanha dos candidatos Romney/Ryan e Obama/Biden que preenchiam cada centímetro da rua. Diferentemente das outras, esta placa estava em espanhol: “Iglesia de Dios del Evangelio Completo”. Claramente não era de um candidato à presidência. Mais adiante, vi uma outra: “Primera Iglesia Bautista Hispana de Maryland”. Não muito tempo depois, num domingo à tarde observei um ônibus: “Iglesia Cuadrangular el Calvario". Decidi segui-lo. Em pouco tempo chegamos a uma igreja. Cerca de 500 fiéis de língua espanhola estavam no lado de dentro, cantando “Alabanzas”, ou hinos de louvor. Alguns seguravam pandeiros, outros dançavam próximo a uma bandeira gigante de um leão com uma juba de raios de sol alaranjados, outros ainda abanavam serpentinas e leques. Uma mulher teve uma profecia, e o pastor apressou-se em lhe passar o microfone: “Hoje o Senhor vai curar pessoas neste lugar!”, gritou em espanhol. “Gloria a Dios!”
Os fiéis, como podemos adivinhar, não eram católicos. Eram protestantes, nascidos de novo, crentes na Bíblia, carismáticos de língua espanhola. Eles representam um dos segmentos com o crescimento mais rápido entre os frequentadores americanos de igrejas. Mais de 2/3 dos 52 milhões de latinos nos Estados Unidos em 2010 eram católicos, segundo o Centro de Pesquisas Pew (Pew Research Center). Na época, o melhor palpite era que em 2030 esse número estaria próximo da metade. Mas hoje esse índice está quase sendo alcançado. Quase um a cada quatro latinos nos Estados Unidos é ex-católico. E muitos estão indo para essas igrejas protestantes evangélicas. Muitas dessas comunidades estão dobrando de tamanho em poucos anos. Eles são os “evangélicos”.
Passei oito meses frequentando cultos em três igrejas evangélicas latinas diferentes. Fiquei impressionada pela forma como o “boom” evangélico está ligado à experiência dos imigrantes. Igreja significa sobrevivência. Essas igrejas têm levado a sério o “alimentar os famintos e vestir os despidos”. Uma mãe solteira chorou ao me contar como conheceu pela primeira vez os membros da igreja que hoje frequenta. Eles estavam limpando o seu escritório tarde da noite quando souberam que ela não tinha um apartamento onde morar. Decidiram então se mudar para uma unidade de dois quartos para que ela e seu bebê pudessem viver com eles. Uma outra mulher partilhou que Deus interrompeu os seus 12 anos de enxaquecas depois que a comunidade religiosa jejuou por três dias. E uma outra ainda testemunhou que seu sangramento interno parou após o pastor tê-la ungido com óleo. O pastor de uma das igrejas me disse: “Não quero dizer no altar aos domingos: ‘Se alguém tem alguma necessidade, deixe-me saber’, porque então vou ter uma fila de pessoas na porta segunda-feira de manhã necessitadas de dinheiro para o aluguel, comida... Mas nunca deixamos que pessoas permanecem em necessidade. Não conseguimos dormir se soubermos que uma família está precisando de comida”.
Eis um lembrete da união forte existente entre a teologia e experiência. Aqui, dizer “Gloria a Dios” não é uma expressão qualquer. Certa vez, uma mulher rezou tão forte que chegou a vomitar, ou a exorcizar um demônio. Outros desmaiaram. Nessas igrejas, o dizer “Javé está perto dos corações feridos” assume uma esperança concreta e é transformador. Para muitos desses fiéis, passar para o protestantismo é, muitas vezes, um caminho para uma vida “americana” mais próspera. Eu não pude deixar de perceber que estas igrejas estavam tão distanciadas das suas contrapartes brancas. O domingo ainda é o dia mais segregado nos Estados Unidos.
A igreja neste país não está morrendo. Está se transformando. Hoje, três anos depois, as igrejas evangélicas estão menos escondidas. Como repórter, quando assistimos que uma sociedade se move o suficiente em uma direção, eis o momento de se darmos a volta. A força na espera de preencher o vácuo de pressão deixado no caminho é revelador. Na época, apenas 15% dos novos sacerdotes católicos ordenados nos Estados Unidos eram latinos, e a Igreja Católica tinha 4.800 paróquias com programação latina. A Convenção Batista do Sul, a maior denominação evangélica dos Estados Unidos, viu uma oportunidade – suas lideranças têm trabalhado para ter 7 mil igrejas batistas hispânicas em 2020.
Nesse sentido, o que veio a seguir era óbvio. O contra-ataque ousado ocorreu em março de 2013, quando o Colégio Cardinalício elegeu o Cardeal Jorge Mario Bergoglio, da Argentina, como papa, o primeiro pontífice latino-americano, ávido a renovar não apenas as Américas, mas a Igreja Católica no mundo inteiro. Seria ele capaz de reverter um tal êxodo?
Desde o momento em que apareceu na varanda papal, Francisco transformou-se numa narrativa definidora desta era: o papa dos pobres, dos países em desenvolvimento, um sacerdote com uma abertura incomum ao homem comum. Agora, três anos depois, já nos acostumamos com o seu estilo – esperamos que ele surpreenda, que conduza a partir das margens.
Lembro-me de ter chegado a Roma no ano passado, no domingo anterior à viagem papal a Cuba e aos Estados Unidos; lembro de ter ido à Praça de São Pedro e de ter ficado um tanto desorientada. Ela estava como sempre esteve: uma fortaleza de pedra gigante, uma cúpula enorme. O próprio São Pedro parecia tão distante, tão fora de alcance, tão fora de lugar. Como podia ser este o lugar do papa do povo? O Papa Francisco reina aqui? Em apenas dois anos e meio, Francisco fizera o poder e a força e todas as associações tradicionais de Roma parecerem bizarras.
E, no entanto, essa visão de base precisava de uma análise pormenorizada. Enquanto tentava entender a fortaleza de pedra, eu também escrevia um artigo sobre como o Papa Francisco tinha revitalizado o papel do Vaticano na diplomacia mundial. Ele chamou a atenção para a crise migratória no Mediterrâneo desde o início de seu papado e, mais recentemente, pediu às dioceses católicas que abrigassem famílias de refugiados. Denunciou a perseguição aos cristãos na Síria e no Iraque. Elogiou o acordo nuclear entre os Estados Unidos e o Irã. Sua encíclica sobre o meio ambiente foi cronometrada perfeitamente para influenciar o acordo climático de Paris. E, é claro, havia Cuba. No caminho de volta de uma viagem anterior ao Paraguai, Francisco minimizou o papel desempenhado por ele na reaproximação [dos EUA e Cuba], dizendo: “Nós não fizemos quase nada, só pequenas coisas”.
Aqui o papa exagerou um pouco. O que ele não disse foi que havia despachado o Cardeal Jaime Ortega y Alamino, de Havana, para visitar secretamente a Casa Branca e entregar uma carta pessoal dele, o papa, ao presidente Obama, assim como fizera dias antes ao presidente cubano, Raúl Castro. Obama ouviu Ortega, que leu a carta em voz alta: o Papa Francisco oferecia assistência para ajudar os Estados Unidos e Cuba a superarem as desconfianças. Os dois países aceitaram a oferta. E nós sabemos como isso terminou. Mais tarde, o Vaticano se ofereceu para ajudar a realocar prisioneiros da penitenciária militar da Baía de Guantánamo para que ela pudesse ser fechada.
As pequenas coisas de Francisco já provaram ser um grande ganho para o mundo. Nunca vi o Congresso dos EUA tão feliz como quando eles, os poderosos, ouviram a Francisco. E, ao mesmo tempo, nunca vi pessoas mais felizes do que aquelas cuja experiência ele, o pontífice, estava aliviando com a sua presença. Na Filadélfia, um dos eventos mais alegres ocorreu quando o Papa Francisco reuniu-se com famílias de imigrantes em frente ao Independence Hall, onde a “Declaração de Independência” dos Estados Unidos foi forjada. “Muitos de vós emigraram para este país, pagando pessoalmente um alto preço, mas com a esperança de construir uma nova vida”, disse ele. “Não desanimeis com as dificuldades que tendes de enfrentar, sejam eles quais forem. Peço para não vos esquecerdes que, tal como aqueles que vieram antes de vós, trazeis muitos talentos a esta nação. Por favor, não vos envergonheis das vossas tradições”. Eis uma mensagem que dificilmente as pessoas ouvem dos poderosos desta nação.
O Papa Francisco vem usando o seu poder para convidar outros poderosos a uma humildade renovada. Isso é custoso para os políticos. No final de sua encíclica climática Laudato Si’, ele ofereceu esta oração:
Iluminai os donos do poder e do dinheiro
para que não caiam no pecado da indiferença,
amem o bem comum, promovam os fracos,
e cuidem deste mundo que habitamos.
Os pobres e a terra estão bradando[.]
Juntos, essa humildade e essa influência constituem um paradoxo, e até agora elas vêm definindo o papado de Francisco. É um lembrete para ouvir as batidas do coração e notar que elas ressoam juntas.
Agora, o pêndulo está balançando novamente. Existe um vácuo de pressão diferente. Um ano depois que o Papa Francisco falou com as famílias de imigrantes, os americanos assistiram ao primeiro debate presidencial das eleições 2016. É difícil imaginar uma estratégia de liderança mais oposta – sem mencionar o temperamento – ao Papa Francisco do que Donald J. Trump.
De todos os elementos surpreendentes da ascensão de Donald Trump na política americana, a história religiosa é uma das mais desconcertantes. Trump se considera presbiteriano, uma “pessoa que vai à igreja aos domingos”, e em eventos de campanha ele tem embalado a sua Bíblia de infância. Trump se vangloriou de não pedir perdão, tendo citado “Dois Coríntios” em vez de “Coríntios Segundo”; elogiou a sua riqueza como uma realização suprema; e admitiu não ter certeza de merecer o apoio dos evangélicos.
A aproximação dos evangélicos com as ideias políticas republicanas não é novidade, mas neste período eleitoral os pastores em torno do candidato republicano têm atuado de forma diferente. Temos Paula White, televangelista pentecostal popular de Orlando, na Flórida, que há tempos é a conselheira espiritual de Trump. No último dia da Convenção Nacional Republicana, ela orou por Trump durante quatro horas, e depois orou em particular com ele, para que o candidato partilhasse as palavras de Deus ao aceitar a indicação republicana [à corrida presidencial]. Ela atribui a Deus o discurso de Trump naquela noite. “Acho que houve um tom diferente naquela noite; acho que foi por seu coração estar aberto a Deus”, me disse ela. Antes, White havia convidado colegas como Jan Crouch, fundador da Trinity Broadcasting Network, e Clarence McClendon, estrela do programa “Preachers of LA”, para orar com Trump na Trump Tower [arranha-céu localizado na cidade de Nova York]. Joel Osteen, pastor de uma megaigreja e escritor de livros de autoajuda, chamou Trump de um “comunicador incrível”, além de “um bom homem”. Jerry Falwell Jr., filho do falecido e destacado televangelista e fundador da Universidade da Liberdade, na Virgínia, foi o primeiro líder evangélico de renome a endossar Trump em janeiro.
O momento em que me dei conta de quão diferentes são estes pastores em torno de Donald Trump se deu num comício em Illinois no mês de março. Um pastor afro-americano praticamente desconhecido, Mark Burns, do pequeno município de Easley, na Carolina do Sul, animava a multidão com cantos entoando o nome do candidato. Em seguida, ele passou a profetizar em oração: “Senhor, esta vai a maior convenção que já existiu; que venham as eleições primárias... Não há negros, não há brancos, não há amarelos, não há vermelhos, há somente verdes!”, gritou. “E verde é dinheiro! Verde é emprego!”.
A sua narrativa não era de conversão – era econômica. Deus, diz Burns, transformou economicamente sua vida. Certa vez, antes de encontrar Jesus, ele dependia de programas de alimentação, vivia na Seção 8, foi preso e acusado por um caso simples de furto. Hoje, administra um ministério religioso televisivo com fins lucrativos. Assim ele me contou: “Jesus disse, acima de todas as coisas, oro para que prosperes, eu oro para que tenhais vida em abundância”, citando não Jesus, mas uma outra passagem do Novo Testamento. “Nunca foi intenção de Jesus que estejamos quebrados. Acho que é isso o que Donald Trump representa”.
Muitos dos pastores ao redor de Donald Trump pregam uma versão daquilo que os teólogos chamam de “o evangelho da prosperidade” – uma convicção polêmica segundo a qual Deus quer que seus seguidores sejam ricos e saudáveis. Os pregadores da prosperidade não querem apenas que os americanos sejam salvos, querem que sejam bem-sucedidos também. O próprio Trump se assemelha a um pregador da prosperidade – venham, sigam-me e encontrarão o sucesso. Faz sentido. Trump é um discípulo de longa data do “grande Norman Vincent Peale”, como ele chama o evangelista do século XX que pregava o pensamento positivo e alcançava milhões de ouvintes via programas de rádio e TV. Quando Trump diz que está ganhando nos estados onde não está, ou que os negros americanos gostam dele quando esmagadoramente não é o caso, ele está pondo em prática o princípio teológico do “nomeie-o e reivindique-o”, imaginando o sucesso futuro no tempo presente.
Até agora, essa tendência do evangelismo tem tido pouca influência na política americana. Enquanto movimento religioso, ela é bem mais jovem do que o evangelismo nos Estados Unidos – com certa de 100 anos. É, porém, uma aliança estratégica para Trump – ambos são rejeitados pelo poder tradicional, e contam com o apoio popular. No ano passado, este novo conjunto de crentes aumentou, e agora, pela primeira vez, estamos vendo-os flexionar os seus músculos políticos em nível nacional. Essa situação está decepcionando tanto certos evangélicos que estes estão querendo rejeitar o termo “evangélico” e desejando se designar por algo novo.
Do Papa Francisco a Donald Trump, em apenas um ano. Será que algum de nós teria previsto essa força durante a visita papal? Para mim, isto serve de lição para ouvirmos mais, para sabermos que pressões mais profundas estão construindo e moldando a sociedade. E agora, como sempre, um outro ponto de inflexão deve vir adiante.
Por diferentes que sejam estas três histórias, todas elas nos dizem algo importante sobre onde estamos enquanto nação – e enquanto nação de crentes e incrédulos. O chão sob nossos pés está se transformando religiosa e politicamente. Novos movimentos surgem e novos líderes do poder emergem. Precisamos de repórteres para nos ajudar a nomear primeiro e, então, entender o que está acontecendo. Reportar é um tipo específico de contar histórias. Os fatos são poderosos. As opiniões geralmente servem para proteger. Os fatos revelam. Podem promover uma história e nos abrir à verdade.
E, no entanto, a confiança nos “mídia” está em um ponto baixo na história dos Estados Unidos. Não sei ao certo o que são os “mídia” – tanto quanto desconfio que as pessoas não sabem que reportagem e jornalismo opinativo não são a mesma coisa. De acordo com o instituto Gallup, só 4 em cada 10 americanos confiam nos meios de comunicação de massa. Algumas pesquisas mostram dados ainda piores, chegando a 6%. Quarenta anos atrás, essa confiança era muito maior, com mais de 1 a cada 10.
Curiosamente, acho que o medo da imprensa e dos repórteres é, em geral, mais forte entre as comunidades religiosas. Mais frequentemente do que imaginamos, eu sou, na melhor das hipóteses, uma estranha; na pior, uma inimiga que não consegue entendê-los.
O meu trabalho como repórter é aprender histórias que, quase sempre, não são minhas. A verdade é difícil. Às vezes, reportar é ouvir o que as pessoas não podem ouvir em si mesmas. Noutras vezes, é olhar para as atrocidades que uma pessoa cometeu. Às vezes, é apenas se esforçar para descobrir o que aconteceu versus o que as pessoas querem pensar que aconteceu. O poder sempre teve uma relação de conveniência com a verdade. É fácil encontrarmos histórias de que gostamos ou que entendemos. As histórias que desafiam a nossa confiança ou experiência são mais fáceis de descartar.
Geralmente as pessoas me perguntam como a fé conforma o meu trabalho. Eu me faço uma pergunta diferente. Tenho mais curiosidade em saber como as histórias que encontro, as pessoas que conheço, me ajudam a entender melhor o que é ser humano. Reportar engloba tudo isso.
Sentei-me com Sybrina Fulton não muito tempo depois que o seu filho Trayvon Martin fora baleado e morto, ainda enquanto rezava para que Deus usasse esta morte para superar o racismo nos Estados Unidos. “Ele está no céu com Deus”, disse ela.
Ouvi a Mohamed, jovem de 18 anos, e sua irmã Sara me dizerem por que compraram spray de pimenta para sua mãe, professora substituta que veste um hijab, depois dos ataques terroristas de Paris. “Eu vejo a minha mãe. Todo mundo vê uma terrorista”, disse Mohamed.
Fiquei vendo enquanto Tom Catena, cirurgião católico no Sudão – diretor do único hospital para um milhão de civis encurralados nos combates da região das Montanhas Nuba –, me mostrava fotos de crianças queimadas e mulheres sem pernas atingidas por forças do governo sudanês. “Não é diferente do que acontece na Síria”, disse ele sobre o conflito. “Essas acontecem lá”.
E vi Ali Karti, ministro das Relações Exteriores do Sudão, zangar-se quando lhe mostrei estas mesmas fotos; ouvi-o negar que elas eram reais e descartar como mentiras os campos documentados de estupro do governo sudanês. “Nada disso está acontecendo”, disse ele. “Eu me considero um seguidor de Jesus”.
Assim que conhecemos as batidas do coração, as suas dores e os seus amores podem assumir uma forma mais profunda. E em toda essa confusão, o especificamente humano se aproxima do especificamente sagrado. O coração do mundo é uma terra santa. Penso em Santo Agostinho, que disse: “A mesma pessoa é ao mesmo tempo Deus e homem, Deus o nosso fim, homem o nosso caminho”.
A questão da fé de um repórter suscita todas as questões quanto aos limites da política identitária: Um branco pode mesmo cobrir as manifestações raciais em Ferguson? A mulher tem mais condições de compreender questões relacionadas ao cuidado dos filhos? Alguém da geração millennial conhece melhor a experiência dos jovens? Será que um ateu pode escrever mais acuradamente a Igreja Católica?
Essas são todas formas de formularmos uma questão diferente: É possível alguma vez conhecer, encontrar realmente, a realidade do outro? O dar testemunho, em toda a sua complexidade e risco, é possível? Temos condições de nos aproximar do coração do mundo? O meu trabalho é apenas tentar. Afinal, quem sou eu para considerar algo, ou alguém, indigno do meu testemunho?
As histórias não terminam quando coloco de lado minha caneta. Eles começam. Então, a decisão de testemunhar é sua. Certa vez Benjamin Britten, compositor britânico, mencionou o Triângulo Sagrado da música – ou “trindade santa” se preferir –, que envolvia compositor, intérprete e ouvinte. A música, disse ele, exige o esforço e a participação de todos os três. Penso que há um triângulo sagrado semelhante no jornalismo – repórter, sujeito e ouvinte. Isso significa que o trabalho do repórter precisa de vocês. E eu não me surpreenderia se esse esforço envolver a velha oração: “[Senhor], eu tenho fé. Mas ajuda a minha falta de fé”.
Qualquer coisa além disso eu deixo para os teólogos e teólogas. Há batidas do coração para seguir, seres humanos para encontrar, um mundo para abordar, histórias a ser contadas.
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Batidas do coração. Um relato sobre os ritmos da fé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU