Por: Jéferson Ferreira Rodrigues | 26 Outubro 2016
A vida humana irrompe com suas peculiaridades. Nela vive-se aquilo que existe de melhor e de pior na arte de ser gente. Todas as ações exigem a interpelação de uma postura ética. Afinal de contas, diante de tais situações, sempre precisamos tomar uma decisão e deliberar, partindo de pressupostos que iluminam nossa capacidade de escolher e nossa consciência. A pergunta básica é: diante disso, o que é certo fazer?
Na história humana, inúmeros são os sistemas morais/éticos. A moralidade não é apenas um conjunto de regras e normas. Ela implica um estilo de vida", uma forma de viver e assumir(-se) a(na) existência com responsabilidade e liberdade. Tais sistemas balizam as relações coletivas e correspondem, em certa medida, a busca humana incessante por algo melhor, ou ainda por uma existência plena de sentido.
Nesse caso, sobrevém o “anseio” por felicidade e/ou realização, assumido em seus dramas e encantos, vividos no cultivo contínuo da sabedoria, em fina sintonia, consigo mesmo e com os outros (não-humanos e transcendente/mistério). Esse anseio está consonante com o lugar de origem. O agir humano irrompe de experiências concretas. Qualquer universalização abstrata, que não considera os lugares de origem, poderá ferir profundamente o agir humano no geral.
A “força” da universalidade surge quando os traços de uma particularidade mostram-se na sua singularidade. E aqui o conceito estético pode ajudar: “queres ser universal, comece pintando sua aldeia” (Leon Tolstoi). O “clássico” recebe tal distinção, porque soube atingir a muitos, não por imposição, mas porque soube mostra-se sem receios e sem rodeios. O agir humano pode seguir a mesma lógica: quanto mais contextual, será mais universal.
Qualquer elaboração sofisticada, em termos morais, precisará estar em sintonia com o mundo que se vive e se propõe como “norma” e "estilo" de vida. Cada lugar e tempo, guardados em suas complexidades, exigem suas perguntas e respostas. Não é suficiente traduzir elementos de ontem para hoje, sem considera-los nas suas complexidades e na sua proposição de “visão de mundo”.
Por isso, o mais adequado é falar de “interpretação” de tais mundos, pois os guarda em suas próprias alteridades, mas provoca a consciência de que algo precisará ficar, e somente assim, permitir-se-á que o novo e o diferente aconteçam. Os apegos em elementos “acidentais” não permite uma renovada interpretação. Colocam-se os holofotes naquilo que pouco significa. E aqui surge a tentação de permanecer no conforto das respostas prontas.
Entretanto, será preciso dar conta de um mundo em profundas transformações, onde novas lógicas emergem, e como tal, exigem suas próprias respostas. A produção de novas respostas porta de uma tensão vitalizante: ouvir aquilo que foi dito na história humana, mas exercitar a criatividade para compor e responder com atualidade as exigências e as demandas de cada tempo. Tal postura é válida para o mundo cultural e religioso.
Hoje se fala em decadência moral. As pessoas não encontram mais “horizontes” seguros para buscarem seus anseios de felicidade e de realização. Não se sabe ao certo o que precisa ou se deve fazer. As múltiplas possibilidades não dão conta e aprofundam cada vez mais a sensação de vazio e de incerteza que visita o pensamento e o agir do ser humano em nossos dias. E aqui surgem dois riscos: relativismo (flexibilização absoluta) e fundamentalismo (rigidez absoluta).
Tal cenário marcado por ausências e incertezas, na verdade, é o início de um novo momento na/para a humanidade. Ele não encontra terminologia adequada, mas aqui chamo de “efeito” pós-modernidade. De fato, não sabemos ao certo como tudo isso irá se desenvolver, mas é o momento inicial de “mudanças” substanciais nas estruturas humanas como um todo, em suas múltiplas dimensões. O que está acontecendo não é provisório e marcará profundamente essa e as gerações futuras. Ele provoca um desconforto natural.
O “novo” sempre nos desafia. E aqui surge: “Tenta não se acostumar”. É um mundo onde as lógicas não estão bem definidas e bem delimitadas. É um mundo que vive no imprevisível, sem muito esperar, deixando que tudo flua, sem nada ser contido. Nele é permitido perder-se, para encontrar-se no outro. E como tal, será oportuno cultivar um aprendizado no exercício da consciência e da liberdade, para o benefício de todos, ou pelo menos, de muitos.
A moral cristã não ficará imune do “enfrentamento” das questões que emergem desse “novo mundo” que irrompe. Ela poderá dar sua contribuição, nessa busca humana, de encontrar-se na profundidade de tantos contornos. Não serão suficientes respostas prontas: sempre foi assim. Será preciso auscultar as inquietações das pessoas e lhes fazer companhia. Entendê-las em seus acertos e dilemas. Discernir com elas aquilo que é mais adequado. E aqui (re)visitar a tradição poderá ser a “oportunidade” de um aprendizado recíproco.
Caso contrário, as questões, no âmbito da moralidade, não ganharão a dignidade necessária e permanecerão no “limbo” das margens sem fronteiras. Será preciso (re)pensar a postura de “saber absoluto” entranhado no pensamento eclesial. A infalibilidade moral precisará encontrar ressonância na vida falível dos humanos. E aqui, não é oportuno, uma experiência eclesial que pese em demasia as pessoas. Como tal, uma Igreja de muitos “não” deparar-se-á com uma sociedade plural dos muitos “sim”.
A Igreja, em seu ensinamento moral, terá a oportunidade de ajudar as pessoas a amadurecer sem medo e sem receios. Ela mesmo terá a oportunidade de (re)interpretar-se e renovar-se à luz das questões e dos desafios desse e de cada tempo. Os conflitos são inevitáveis, mas ajudam no processo de amadurecimento. O salto de qualidade reside na experiência de um Deus, que no seu amor pleno, inspira e propõe libertação de todas as amarras e rodeios, para bem cultivar a liberdade e a consciência diante de si e diante do agir.
A ética cristã vivida na experiência salutar do amor de Deus, não é um sistema de normas e de preceitos, mas uma atitude renovada e aberta diante de si e diante dos outros. Essa atitude está consonante com a própria atitude de Jesus de Nazaré, o Filho, que no despojamento de si aventura-se, na história humana, para mostrar a vontade de Deus. É a vontade de um Deus que se faz presença e caminha ao lado das pessoas. Não despreza ninguém, mas convida para uma nova forma de viver.
Em Jesus, o estilo de vida não correspondia as “lógicas” oficiais do seu tempo. Elas estavam fortemente marcadas por uma estrutura jurídica e centradas na purificação. Era traduzia-se na moral dos escolhidos e dos perfeitos. Não estava preocupado com as prescrições, apesar de não negligenciá-las, mas amplia-as buscando o essencial. Ele, ao contrário, aproxima-se dos desqualificados para a sociedade e para a religião, inclusive ganha um rótulo dos especialistas em julgar: “beberão e comilão, amigos dos pecadores”.
A ética de Jesus está atrelada a experiência da mesa. Ela é um lugar apropriado e privilegiado do encontro escandaloso com os mais vulneráveis. Ali comunica a boa-notícia do Reino. Todos têm lugar e importância. É uma mudança radical. Não acentua a purificação e o legalismo, mas busca aperfeiçoar a vida das pessoas numa “nova relação” com elas próprias, com os outros e com Deus. Nela irrompe a lógica reciprocidade e da busca pelo melhor.
Nesse sentido, acontece uma inversão na lógica dos entendidos: não é o ser humano que com suas ações aperfeiçoa sua vida, mas Deus que irrompendo na sua história, concede-lhe sua graça, para que possa viver plenamente, acertando e errando, na busca pela plenitude e pelo lugar definitivo em Deus. E é aqui que se encontra a força da palavra e do convite de Jesus: “Convertei-vos e crede no Evangelho”. É uma mudança radical, que não dá importância para as prescrições, apesar de não negligenciá-las, mas amplia buscando o essencial como caminho de real libertação.
A ética cristã é um estilo de vida em conformidade com o Evangelho, sintonizado com as perguntas que hoje fazemos, com as situações que hoje nos deparamos, com as injustiças que hoje nos assolam, com as oportunidades que nos provocam. A Igreja tem se afastado da rota do Evangelho. Esqueceu-se de percorrer suas veredas. Criou para si muitas normas e regras que não cabem nas linhas e na postura do Evangelho. É preciso discernimento para recolocar-se e/ou converter-se na mesma rota do Evangelho.
Diante de um “novo agir” é lamentável perceber que nem sempre o Evangelho possui o espaço que lhe é devido na vida das pessoas, que vivem sua fé na experiência cristã. Não é possível entender, como um país que se “orgulha” e até “briga” para ser considerado cristão, apresenta tamanha desigualdade humana e social. É inexplicável. O Evangelho não repercute em nós, e com isso, surgem sujeitos de todo os tipos, em todos os níveis, mas quero acentuar aqueles(as) tipo Eduardo Cunha, que com uma “fachada” cristã, realizam atrocidades e acaba repercutindo na exclusão de mais pessoas vulneráveis.
Para aprofundar nosso debate, seguimos com José Roque Junges, no Cadernos Teologia Pública, edição 07, onde através de outra leitura reflete sobre a ética teológica diante das transformações recentes e prospectivas de futuro. O autor não pretende esgotar o assunto, mas perpassa os diversos momentos do desenvolvimento do pensamento moral, inserido na tradição cristã, com seus desdobramentos próprios. E sugere como indicação de um “novo paradigma” para a reflexão o início de um percurso de discussão, pensando a ética de modo mais complexo, tendo a contribuição de Edgar Morin.
O texto está organizado com os seguintes tópicos:
1. Caráter revelacional e pneumático da ética cristã
2. Descompasso entre a sensibilidade ética atual e a moral oficial da igreja
3. Transformações recentes no paradigma de compreensão da teologia moral
4. Prospectivas de futuro: o paradigma da complexidade
Para acessar o texto: clique aqui
José Roque Junges. Desde 2002 Desde 2002, é professor e pesquisador na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Cursou Filosofia e Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS. Especializou-se em História Contemporânea do Brasil na UNISINOS. É mestre em Teologia Dogmática pela Pontificia Universidad Catolica de Chile (1980) e doutor em Teologia Moral pela Pontificia Università Gregoriana (Roma, 1985). Sua tese de doutorado intitula-se Conciencia y discernimiento.
Algumas de suas obras:
Bioética sanitarista: desafios éticos da saúde coletiva (São Paulo: Loyola, 2014)
(Bio) Ética Ambiental. 2ed. (São Leopoldo: Unisinos, 2010)
Bioética: Hermenêutica e Casuística (São Paulo: Loyola, 2006)
Ética ambiental (São Leopoldo: Unisinos, 2004)
Evento Cristo e Ação Humana: Temas fundamentais de Ética teológica (São Leopoldo: Unisinos, 2001)
Ecologia e Criação. Resposta cristã à Crise Ambiental (São Paulo: Loyola, 2001)
Bioética: Perspectivas de Desafios (São Leopoldo: Unisinos, 1999)
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“Tenta não se acostumar”: a vivência da ética cristã em tempos de transformações - Instituto Humanitas Unisinos - IHU