05 Agosto 2013
Se Jesus disse à adúltera "nem eu te condeno", o Papa Francisco não pode dizer outra coisa diante de um homem, de uma mulher que são pecadores assim como os outros: cada um de nós, se honesto, pode no máximo dizer que cometeu pecados diferentes, mas não que é sem pecado. Quem não julga não será julgado, quem tem misericórdia obterá misericórdia: essas são palavras de Jesus, não do papa.
A opinião é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 31-07-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Diziam os rabinos que Deus tem uma capacidade que nós, humanos, não temos: a de esquecer os pecados que cometemos, esquecê-los porque apagados e, portanto, considerados como não cometidos. Nós podemos perdoar, mas não esquecer; Deus, ao invés, quando perdoa os pecados, os esquece.
Está, portanto, na tradição tanto judaica quanto cristã proclamar que a misericórdia de Deus é infinita, que Deus condena o pecado, o mal cometido, mas não quer nem a morte nem a condenação do pecador. Mesmo Jesus de Nazaré – segundo um trecho evangélico que agora encontramos no capítulo 8 do Evangelho de João, mas que, na Igreja antiga, custou a encontrar uma colocação certa e documentada, por causa da mensagem escandalosa que continha –, diante de uma mulher surpreendida em flagrante adultério, disse: "Mulher, ninguém te condenou? Nem eu te condeno! Vai e não peques mais!" (Jo 8, 10-11).
É em fidelidade a essa "boa notícia" que o Papa João XXIII, na encíclica Pacem in Terris, 50 anos atrás, afirmava que jamais se deve "confundir o erro com a pessoa que erra" e que "pessoa que erra não deixa de ser uma pessoa, nem perde nunca a dignidade do ser humano" e, portanto, deve ser tratada com misericórdia e compaixão.
Desde que assumiu o ministério petrino, o Papa Francisco proclama a boa notícia cristã por excelência, o Evangelho que é muito simples: Deus é amor universal infinito, o seu amor não precisa ser merecido, a sua misericórdia quer chegar a todas as pessoas, todas pecadoras, isto é, responsáveis por um mau viver e agir.
Por que essa mensagem do Papa Francisco surpreende, escandaliza, perturba e intriga? Devemos admitir: porque temos sobre os ombros décadas de intransigência católica e, nos últimos tempos, uma multiplicação de vozes na Igreja carregadas de severidade, exigentes, voltadas a um ministério de condenação que parecia absorver em si toda a mensagem cristã...
Na verdade, não há nenhuma mudança substancial no magistério papal: João Paulo II exaltou a misericórdia através de uma encíclica e da instituição de uma "domingo da misericórdia", e Bento XVI colocou no centro da sua pregação esse amor-caridade que é a definição última do Deus narrado por Jesus Cristo.
Se Jesus disse à adúltera "nem eu te condeno", o Papa Francisco não pode dizer outra coisa diante de um homem, de uma mulher que são pecadores assim como os outros: cada um de nós, se honesto, pode no máximo dizer que cometeu pecados diferentes, mas não que é sem pecado. "Quem sou eu para julgar?", disse o papa a respeito de quem tem uma orientação homossexual e talvez comportamentos que, para a Igreja, continuam sendo pecados.
Ele disse o que deve dizer um cristão que sabe deixar a Deus o julgamento. A Igreja e, portanto, os seus ministros podem e devem discernir o que é mal, denunciá-lo, alertar contra o mal, mas não podem julgar aqueles que cometem o mal. O Estado emite um julgamento sobre o que é delituoso segundo a sua lei e também impõe uma pena ao culpado, mas um simples cristão, e até mesmo o próprio papa, não podem fazê-lo: eles remetem o juízo a Deus. Isso não é "bonismo", não é diluição da exigente ética cristã, não é buscar modas ou posições mundanas: é fazer resplandecer a verdade do Evangelho sem que ela cegue aqueles que a querem buscar.
Nesse sentido, o papa também me parece remeter a uma leitura necessária e urgente hoje na Igreja: no furor da "tolerância zero", às vezes não se sabe mais distinguir entre o que é mau segundo a Igreja, os pecados, e o que é mau segundo a lei do Estado, os delitos. Quando há um crime, para o cristão, assim como para qualquer outra pessoa sujeita às leis do Estado, a justiça deve intervir e exercer o seu poder de condenação, mas para aquilo que é apenas contradição com a lei de Deus e não é delito para o Estado, no espaço eclesial, está prevista a confissão, o reconhecimento da culpa, o pedido de perdão a Deus que sempre o concede.
Para qualquer pessoa que presida uma igreja ou uma comunidade, não é fácil caminhar sobre o fio da navalha: reiterar com força o que é bom e denunciar o que é mal, mas continuar se exercitando na misericórdia com aqueles que, tentados, sucumbem e cometem o mal. Qualquer pessoa que governe na Igreja deve ser forte na fé e na doutrina, mas com o coração misericordioso moldado por Deus: o Deus que deixa 99 ovelhas no aprisco e vai em busca daquela que se perdeu, o Deus que espera o filho que se afastou e faz mais festa para ele do que para o outro que nunca tinha tido a coragem de ir embora, o Deus que, sobre a cruz, em Jesus, perdoa aqueles que o crucificaram e o desprezaram. Essa mensagem é escandalosa desde sempre para as pessoas devotas e religiosas, é loucura para os intelectuais que confiam no seu pensamento, mas isso é o cristianismo.
O que, portanto, é realmente grave na vida de um cristão? É grave julgar os outros com intransigência e rancor, é grave e hipócrita condenar com força e severidade os outros, porque cometem atos que muitas vezes justamente aqueles que o condenam também cometem, por sua vez. É ainda mais grave se comportamentos pecaminosos se tornam meios de chantagem, de poder, de cumplicidade, até conduzir batalhas comuns contra "outros" percebidos como inimigos.
Permitam-me confessar que aqueles que, como eu, assim como muitos monges, dedicam a maior parte do seu tempo à escuta dos outros, se realmente ouvem também a Deus, sentem a responsabilidade de anunciar o amor de Deus que nunca deve ser merecido, a responsabilidade de ser misericordiosos como é o seu Pai que está nos céus.
Quem não julga não será julgado, quem tem misericórdia obterá misericórdia: essas são palavras de Jesus, não do papa. É nessa compreensão do Evangelho que o Papa Francisco disse ao episcopado brasileiro: "É preciso uma Igreja capaz de redescobrir as entranhas maternas da misericórdia. Sem a misericórdia, não é possível inserir-se em um mundo de 'feridos' que precisam de compreensão, de perdão, de amor".
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Ética cristã e misericórdia nas palavras de Bergoglio. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU