15 Setembro 2016
Pesquisadores questionam “não apenas as formas e consequências das intervenções no território amazônico, mas também as maneiras de mensurá-las. Parte-se então, da visível incapacidade dos indicadores hegemônicos avaliarem através de uma ótica adequada realidades tão peculiares quanto à amazônica. Muito antes de um erro metodológico, o interesse em avaliar práticas e realidades distintas as hegemônicas através de indicadores convencionais esconde por traz um interesse contínuo em desqualificar tais experiências, realidades e saberes mantendo-as à margem social, sob os rótulos de intangíveis, incapazes, insuficientes, precárias e improdutivas”.
O artigo é de Luiz Felipe Barboza Lacerda, Psicólogo, Doutor em Ciências Sociais CAPES/UNISINOS, secretário executivo do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA, Docente/Pesquisador UNICAP
Pesquisador Colaborador: Grupo de pesquisa Educação e Diversidade Amazônica/UEA, e, Luis Eduardo Acosta Muñoz, economista Ph.D. Investigador Principal. Grupo de Investigación: Valoración de los Conocimientos Tradicionales. Instituto Amazónico de Investigaciones Científicas.
Eis o artigo.
As intervenções dos países latino-americanos e de suas políticas públicas aplicadas em áreas rurais provocou ao longo da história profundo prejuízo às comunidades tradicionais, especialmente aquelas que habitam a Amazônia. No caso do Brasil, essas políticas públicas se constroem sobre práticas calcadas no desrespeito às culturas nativas, no assistencialismo político-partidário e na exploração mercantil dos bens primários da Selva e trouxeram, enquanto consequência maior, a desagregação do tecido social e da capacidade de auto-organização de comunidades indígenas e ribeirinhas. Portanto, é o Estado o principal responsável pelo enfraquecimento generalizado da coesão comunitária, pela moneta rização das relações interpessoais, pelo abandono de práticas tradicionais de ajuda mútua, pela perda da soberania sobre o próprio território, chegando até a extinção de espécies de cultivos nativos nestes contextos.
Atualmente o Grupo de Pesquisa Educação e Diversidade Amazônica (GPEDA), da Universidade do Estado do Amazonas (UEA-Brasil), com apoio do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida –OLMA, leva afrente um trabalho de pesquisa que busca averiguar se formas de intervenções alternativas, pautadas pelos princípios da cooperação, solidariedade e autogestão, podem ser ferramentas eficientes no processo de reconstrução e fortalecimento das estruturas locais e consequente conquista de emancipação social por estas populações.
A pesquisa baseia-se sobre as experiências construídas nos últimos seis anos em 22 comunidades indígenas e ribeirinhas do município de Benjamin Constant, região do Alto Solimões, na Amazônia brasileira. Os trabalhos com estas comunidades foram desenvolvidos em cinco áreas de atuação, a saber: agricultura familiar, potabilização de água, meliponicultura e piscicultura. Tais ações, com o apoio de Prefeitura de Benjamin Constant, a Diocese do Alto Solimões e a UEA/GPEDA, com co-financiamento da União Europeia, é protagonizado pelo Instituto Sindical para Cooperação e Solidariedade (ISCOS), através do projeto Desenvolvimento Sustentável da Fronteira Amazônica do Brasil (2010-2013) e posteriormente (2013-2016) o Projeto Bem – Viver.
Os resultados desta pesquisa aspiram reflexões sobre elementos fundantes ao processo de empoderamento e coesão comunitária de populações indígenas e ribeirinhas, processos estes que propõem novos arranjos conjunturais na necessária equilibração[1] entre o que é inovador e o que é tradicional. Indicam ainda, elementos significativos para compreendermos os avanços e desafios endógenos e exógenos às comunidades no processo de conquista da Emancipação Social.
Para, além disto, ao longo deste processo questionam-se não apenas as formas e consequências das intervenções no território amazônico, mas também as maneiras de mensurá-las. Parte-se então, da visível incapacidade dos indicadores hegemônicos avaliarem através de uma ótica adequada realidades tão peculiares quanto à amazônica. Muito antes de um erro metodológico, o interesse em avaliar práticas e realidades distintas as hegemônicas através de indicadores convencionais esconde por traz um interesse contínuo em desqualificar tais experiências, realidades e saberes mantendo-as à margem social, sob os rótulos de intangíveis, incapazes, insuficientes, precárias e improdutivas.
A construção de indicadores próprios e adequados a cada realidade, especificamente à realidade amazônica, é uma evidência e uma necessidade; e neste sentido propomos juntamente aos conceitos de cooperação, solidariedade e autogestão nas bases de qualquer intervenção nestes territórios, também o fortalecimento de experiências avaliativas originais e ligadas aos conceitos tradicionais, que levem em conta os aspectos centrais das culturas bosquesinas[2].
Neste sentido, construímos juntamente com indígenas e ribeirinhos da Amazônia brasileira e colombiana um conjunto de Indicadores de Bem-Estar para Povos Tradicionais – IBPT. Os IBPT encontram-se calcados sobre a ideia de abundância, na valorização dos conhecimentos tradicionais, nos relatos e conceitos morais dos próprios indígenas, a saber: Garantir comer bem e viver bem em seus territórios; Garantir a vida em harmonia com relações predominantemente respeitosas, com base na prática do conselho e de uma vida sem vaidade, sem orgulho; Capacidade de produção que garante o acesso a recursos para garantir a autossuficiência alimentar, onde o controle social e político são baseados em uma estrutura coletiva de governo próprio e intercultural. Sendo assim, Indicadores que avaliem a Capacidade destes povos em reafirma sues valores tradicionais e reduzir os impactos negativos da sua conexão com a sociedade nacional e as economias mercantis.
A experiência de aplicação dos indicadores em terras brasileiras, que em 2017 será ampliada pelo Observatório, foi protagonizada pelo Grupo de Pesquisa GPEDA e o Grupo de Pesquisa Valoración de los Conocimientos Tradicionales (Sinchi); apoiados pela ISCOS. As comunidades selecionadas foram, dentro do escopo das 22 abrangidas pelo Projeto Bem Viver as seguintes: São José (Ribeirinha de Várzea, com 28 famílias); São João de Veneza (Indígena, Ticuna de terra firme, com 43 famílias) e Nova Aliança (Indígena, Cocama de terra firme, com 72 famílias).
O trabalho de aplicação dos IBPT nas comunidades brasileiras passou pelas etapas de entrevistas com lideranças locais, busca de informações oficiais e secundárias nos principais órgãos representativos de educação, justiça e saúde, além de visitas as comunidades e grupos de discussões, para ao final serem traçadas linhas interpretativas sobre as capacidades destas comunidades no que tange os elementos anteriormente citados.
Os resultados nos mostram que a aplicação dos IBPT, já realizada em comunidades indígenas da Colômbia, é perfeitamente aplicável, salvo as adaptações necessárias, as realidades indígenas e ribeirinhas do Brasil. Os resultados também apontam que grande parte das Capacidades avaliadas ao longo dos indicadores, nas comunidades brasileiras analisadas, encontra-se em alto potencial afirmativo ou em intenso processo de recuperação, a saber: Capacidade de Controle Coletivo do Território, Capacidade de Agenciamento Cultural Autônomo, Capacidade de Garantia de autonomia alimentar, Capacidade de construir um ambiente tranquilo e capacidade de autocuidado e reprodução. Ao nosso entender, este quadro positivo possui também influência das intervenções desenvolvidas pela ISCOS ao longo destes s eis anos de trabalho conjunto com estas comunidades empregando princípios exatamente opostos aos propagados historicamente pelo governo brasileiro nestas realidades, isto é, trabalhando sobre os princípios da cooperação, da solidariedade e da autogestão.
Conclui-se para tanto que as intervenções que se apoiam nos princípios acima citados, possuem grande potencial em gerar Bem-Estar e emancipação social fortalecendo tais Capacidades em comunidades indígenas e ribeirinhas no universo amazônico e que a aplicação de Indicadores adequados, como os IBPT, são ferramentas de reconhecimento, valorização e fortalecimento das características próprias de povos indígenas e povos ribeirinhos.
Por fim, os IBPT representam um processo aberto para pesquisas e convidam a comunidade acadêmica, entidades de apoio e órgãos governamentais a continuidade de sua aplicação e aperfeiçoamento em outros espaços, povos e realidades tradicionais. Este é o compromisso estabelecido entre o Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida, o Grupo de Pesquisa Educação e Diversidade Amazônica (GPEDA) e o Grupo de Pesquisa Valoración de los Conocimientos Tradicionales, no sentido de tornar tais indicadores uma ferramenta de referência para a medição do Bem-Estar dos povos Tradicionais na Tríplice Fronteira Amazônica. Este compromisso vincula-se a contribuição para a criação de uma ciência humana, social e ambiental vinculada e comprometida com os saberes e práticas dos povos tradicionais.
Notas
[1] Termo empregado por Piaget para processo que demanda constante busca por equilíbrio.
[2] Para saber mais ver: GACHÈ, Jorge. Sociedade Bosquisina Tomo I: Ensayo de antropología rural amazónica,acompañado de una crítica y propuesta alternativa de proyectos de desarrollo.IIAP, Peru, 2011.
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Amazônia: Aplicação dos Indicadores de Bem-Estar para Povos Tradicionais, conceitos éticos para políticas justas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU