Por: André | 11 Julho 2016
“O martírio não é um dom que se busca. É algo a que se chega a partir da virtude e do testemunho em Cristo. Os irmãos palotinos levaram com fidelidade uma lógica de vida e alegria. Viveram comprometidos com os fracos e os pobres”, ressaltou o arcebispo de Buenos Aires, o cardeal Mario Poli, ao presidir a missa pelos 40 anos do massacre de San Patricio, ocorrido na casa paroquial do Bairro Belgrano, onde foram assassinados os três padres e dois seminaristas da congregação fundada por Vicente Palotti em 1835.
A reportagem é publicada por Reflexión y Liberación, 06-07-2016. A tradução é de André Langer.
“O sangue dos mártires é semente de novos cristãos”, garantiu o cardeal, e recordou que “o martírio não é um dom que se busca. É algo a que se chega a partir da virtude e do testemunho em Cristo”. O cardeal Poli afirmou que “as cicatrizes de Jesus também podiam ser vistas nos corpos de nossos irmãos religiosos assassinados no dia 4 de julho e assim se apresentaram diante do Senhor da Misericórdia”.
Os padres Alfredo Leaden, Pedro Dufau e Alfredo José Kelly, e os seminaristas Salvador Barbeito e Emilio José Barletti, todos palotinos, foram mortos a tiros, no dia 4 de julho de 1976 na casa paroquial onde moravam, por um grupo militar que, segundo testemunhas, saiu da ex-Escola de Mecânica da Armada (Esma).
A celebração eucarística presidida pelo cardeal Poli foi o auge de um dia de vigília na Paróquia San Patricio, da qual participou o núncio apostólico, monsenhor Emil Paul Tscherrig, e de outros atos de homenagem aos religiosos assassinados, entre eles o “Caminho do Martírio”, uma procissão que saiu da ex-Esma e dirigiu-se até a igreja, passando por outras paróquias, percurso no qual foi dado testemunho e feita a memória destes mártires do povo argentino.
Concebrantes e autoridades
A missa foi concelebrada pelo bispo de Chascomús e secretário-geral da Conferência Episcopal Argentina, dom Carlos Humberto Malfa, e pelos bispos Jorge Lozano (Gualeguaychú), Oscar Ojea (San Isidro), Fernando Maletti (Merlo-Moreno), Gabriel Bernardo Barbas (Gregorio de Laferrere), Carlos Tissera (Quilmes) e Guillermo Rodríguez-Melgarejo (San Martín); os bispos auxiliares Martín Fassi (San Isidro), Joaquín Sucunza (Buenos Aires), Enrique Eguía Seguí (Buenos Aires), Alejandro Giorgi (Buenos Aires) e Jorge Torres Carbonell (Lomas de Zamora), além de cerca de 50 padres, em sua maioria palotinos e de setores de vilas populares.
O altar no qual o cardeal Poli presidiu a missa estava coberto com o tapete vermelho no qual os religiosos foram alinhados por seus algozes para depois serem brutalmente executados, e ao pé do púlpito encontravam-se cinco quadros com as imagens dos religiosos mártires.
A Revista Reflexión y Liberación esteve presente na missa pelos Mártires Palotinos e oferece aos seus leitores estes testemunhos que dão conta como se repetiu no Cone Sul da América Latina o modus operandi das forças militares repressoras. Assim foi o Martirológio no Chile, Brasil, Uruguai, Paraguai e na Argentina.
Testemunhos de religiosos palotinos sobre o massacre de San Patricio ocorrido em 4 de julho de 1976, em Buenos Aires.
Testemunho do Pe. Cornelio Ryan, delegado provincial dos palotinos irlandeses a partir de dezembro de 1976:
“Desde o momento em que assumi como delegado da província irlandesa na Argentina quis saber o que tinha acontecido; a morte não entrou como um ladrão na noite, sei que eles esperavam algo...
O general Reynaldo Bignone era conhecido nosso na nossa paróquia palotina de Castelar. Em 1977, tive uma conversa com ele. Ele me recebeu em seu escritório deixando sua arma envolta sobre a mesa. Perguntei-lhe sobre os agentes da morte que tinham entrado em San Patricio. ‘Padre Ryan – disse-me –, não sei de nada. Mas mesmo que soubesse, jamais contaria’. Eu ainda lembro das suas maneiras corteses, seu sorriso largo. Disse-me depois, que devia recomendar ao Pe. Antonio Stakelum para que mudasse o tom das suas homilias. Os sermões dele eram de fogo; do altar de Castelar falava das coações ilegais e dos desaparecimentos.
Visitei muitas vezes a Casa Rosada para me encontrar com o coronel David Ruiz Palacios, que foi muito gentil comigo, mas só consegui abundantes libações de café. Sempre insisti com ele para conseguir um encontro com o ministro do Interior, general Harguindeguy, de quem Ruiz Palacios era secretário. Mas o ministro dava como desculpa para não me receber o fato de que eu morava muito longe. Naquele tempo, eu morava no Colégio Fahy de Moreno. Informei ao general que podia tranquilizar o seu chefe, pois eu tinha um despertador muito bom; mas a conversa nunca aconteceu. É evidente que eu despertava no general seus sentimentos paternais.
Logo depois, de Roma, o Superior Geral da Congregação, Ludwig Mundz, pediu-me para não arriscar a minha vida indo ver os militares e disse que meu proceder era imprudente. Por obediência, tive que me retirar. Depois, já em tempos de democracia, tentei encontrar-me duas vezes com quem era acusado pelos testemunhos de sobreviventes da Escola de Mecânica da Armada (Esma) como responsável pela operação San Patricio. Mas o capitão Pernias também não me recebeu.
Certo dia, fui visitá-lo com um cartão de pêsames, pois me disseram que sua esposa tinha acabado de falecer. Quando chegamos, o Pe. P. Eugenio e eu, ao Edifício Libertad, um oficial tomou o meu cartão onde constava meu nome e cargo e subiu para comunicar ao capitão Pernias a minha presença. Pouco depois, este homem voltou e nos disse que o capitão tinha acabado de sair. Duas vezes mais tentei encontrá-lo; queria apenas perguntar-lhe se era o responsável pelo crime e olhar nos seus olhos quando fosse me responder. Sempre pensei que algum dos assassinos finalmente falaria. “As consciências infectas confiaram seus segredos aos travesseiros surdos”, disse Shakespeare em Macbeth.
Acompanhei Graciela Daleo em seu testemunho perante o juiz Blondi. Iniciei uma investigação para saber quem assinou a famosa carta para afastar o Pe. Kelly de San Patricio, mas foi tudo em vão. Encontrei somente um muro de silêncio. Convidei insistentemente o comissário Fensore para tomar um chá comigo na casa paroquial, mas recusou dizendo que lhe fazia mal falar do passado.
As águas do Leteo, um dos quatro rios do inferno, o rio do esquecimento segundo os antigos gregos, foram bebidas por muitas das pessoas vinculadas a este crime. Em meio à angústia, à solidão, ao medo, à indiferença pela qual passamos ao longo destes anos, foi comovente a figura do Pe. Kevin O’Neill, que foi a grande rocha na qual encontrei apoio e força para a luta; a direção nos momentos de desalento. Aqui em Mercedes, muitas vezes na frente dos seus túmulos, rezo por eles e a eles por nossa antiga amizade”.
Testemunho do Pe. Thomas O’Donnell, delegado a Província palotino-irlandesa:
“Quando a notícia do massacre de San Patricio chegou à Irlanda, nosso superior Patrick Ryce me chamou para o seu escritório. Minha viagem para a Argentina estava próxima, falou-me da conveniência de adiar a minha viagem até que a situação no país melhorasse e que enquanto isso poderia ir a Roma para estudar. Naquela época, estavam de visita na Irlanda os padres Andrew Quinn e Florence Carroll, que voltavam da Argentina para visitar os familiares. Perguntei a eles o que pensavam fazer em relação ao retorno para a América do Sul: ‘Voltar, é o nosso lugar’. Decidi viajar com eles. Estava com medo. Mas, ao chegar ao Aeroporto de Ezeiza, amigos de suas paróquias estavam aguardando por eles. A calorosa recepção me confirmou o acerto da minha decisão.
Pouco tempo depois, estando em Mercedes, andava por uma rua rumo ao hospital para encontrar-me com um doente, em uma esquina desceu de um caminhão um grupo de soldados que, armados, me cercaram... Não atirem!, eu o conheço, é um padre de San Patricio...
Não eram tempos bons. Estávamos todos com medo, mas mesmo assim resolvemos ficar. Na década de 1980, cheguei a San Patricio, em Belgrano. Eu também tinha ouvido: “logo vão sair”, “o melhor é ficar calado”, “fica na sua”. Cheguei a este lugar com esta ideia: “logo vão sair”, mas meu relacionamento com as pessoas, que foi reconfortado por meus companheiros assassinados, as lembranças que elas têm deles, foram me levando a outro convencimento: tínhamos que fazer algo para manter viva a memória, que devíamos sentir-nos orgulhosos com eles. Por isso colaboramos com este livro e o documentário. Sei que muitas pessoas acreditam que não fizemos o suficiente como congregação; creio que era necessário passar o tempo. Entre nós houve opiniões desencontradas, assim como na Igreja e na sociedade.
No verão, estando em nossa secretaria e com as janelas abertas, não pude deixar de ouvir: ‘Aqui arrebentaram uns terceiromundistas’. Acredito que o preconceito de gente do bairro contribuiu para o massacre. Mas houve outras pessoas que nunca se esqueceram deles. Um grupo de leigos preparou há alguns anos um vídeo em memória dos mortos, outros lhes prestaram homenagens de diferentes maneiras. Também se aproximaram políticos que utilizaram sua memória com propósitos mesquinhos.
Nossa homenagem consiste nas missas rezadas em sua memória no dia 4 de julho. Não cabia a nós, como instituição, iniciar uma investigação sobre suas mortes; isso era papel da Justiça. Mas a busca da verdade sobre suas vidas; isso contribui para que não se utilize sua memória com propósitos subalternos, recuperando a sua verdadeira dimensão, graças à reflexão, superando as paixões.
Mas, reivindicamos desde sempre o nosso direito de saber quem foram os autores intelectuais, quem foram os executores, como foram assassinados e por quê. Que o conhecimento da verdade se constituía em um fundamento sobre o qual se constrói a paz.
Nossa maior homenagem consiste no modo que continuamos mantendo esta paróquia, não questionar o homem, ajudá-lo, respeitá-lo, uma atitude refletida nos inúmeros grupos de auto-ajuda que se reúnem em nossa casa. É em tudo isto que sua memória renasce, onde surgem brotos, onde a memória dos cinco permanece sempre verde, como dizemos na Irlanda.
Nos 4 de julho, nas missas celebradas em sua memória, dissemos que tínhamos o direito de saber, mas que também seríamos os primeiros a perdoar. Como padre, me pergunto como poderia erguer, neste caso, o cálice no momento da consagração; Cristo morreu na cruz pela redenção da humanidade. O ódio pode ferir o nosso adversário, mas é a nós mesmos que acaba destruindo.”
Testemunho do Pe. Ray Dalton*
“Na época do crime, eu tinha 16 anos, e havia estado em contato com os palotinos pelo fato de ter feito parte do ensino médio em um dos seus colégios. Em julho de 1976, esperava ingressar no seminário de Thurles quando a notícia chegou à Irlanda. Como adolescente, senti que eles tinham dado um testemunho e reafirmei minha ideia de que valia a pena ser palotino.
Recebemos as primeiras notícias sobre o que acontecia na Argentina de Bob Kilmeate, que passou um tempo conosco. O Pe. Kevin O’Neill veio ao seminário três anos depois. Ainda lembro da dor que transmitia em sua voz quando nos dizia que em seu país ninguém estava fazendo nada, e nos mostrava fotos dos cinco. Para ele era importante que os seminaristas conhecessem a história; ali não havia nada que nos recordasse o que aconteceu em San Patricio.
Quando vim para Belgrano, em 1992, e soube mais detalhes, entendi um pouco melhor o padre O’Neill e pensei que também eu tinha que fazer alguma coisa. Encontrei o tapete sobre o qual foram assassinados e o ajeitamos, e hoje está exposto em uma das paredes do oratório. Como um testemunho mudo, mas que grita. As pessoas que o veem ficam em silêncio; as ideias, as perguntas são elaboradas neste silêncio.
Às vezes, de noite, quando estou sozinho na casa e passo na frente da sala de estar onde foram mortos, sinto-me sobressaltado como um menino. Algumas vezes, para vencer esta sensação, eu fiquei sozinho no quarto contemplando as marcas das balas. E é estranho, mas a sensação desaparece. Ali o ar é mais pesado, mas não é um lugar que transmite medo, e, sim, tristeza, presença, que é para mim uma inspiração. Penso na ironia que é terem sido assassinados no living (em inglês, vivendo – sala de estar). Eles foram mortos pelo modo como viveram sua vida. Não fizemos deste lugar um santuário; para nós continua sendo o living; não os endeusamos. Eles, penso, não teriam gostado; a melhor homenagem é a vida que a casa segue tendo.
Queira Deus que o nosso testemunho sobre os cinco, romper o silêncio, seja uma chama que ajude a libertar a memória do país sobre o que aconteceu na Argentina... Continuo a me sentir orgulhoso por pertencer à mesma Comunidade que eles”.
* Nota: O padre Ray Dalton deixou a comunidade palotina em 1997, está casado e é pai de uma bela menina e mora em Buenos Aires, onde é psiquiatra. (Extratos do livro El Honor de Dios, de Gabriel Seisdedos – Buenos Aires).
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“O sangue dos mártires é semente de novos cristãos”, diz cardeal Poli na missa dos 40 anos do assassinato dos padres palotinos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU