Por: André | 05 Julho 2016
Os padres Alfredo Leaden, Alfredo José Kelly e Pedro Eduardo Dufau, e os seminaristas Salvador Barbeito Doval e José Emilio Barletti foram vítimas de um grupo de tarefa no dia 04 de julho de 1976.
Viver para contar. O padre Rodolfo Capalozza e Rolando Savino, sobreviventes do massacre dos padres palotinos, entrevistados pela agência Télam, junto a um mural no bairro portenho de Belgrano. Fonte: http://bit.ly/29iokJl |
A reportagem é de Alejandra Dandan e publicada por Página/12, 04-07-2016. A tradução é de André Langer.
Completam-se 40 anos do massacre dos padres Alfredo Leaden, Alfredo José Kelly e Pedro Eduardo Dufau, e dos seminaristas Salvador Barbeito Doval e José Emilio Barletti, da comunidade dos palotinos da Paróquia San Patricio, no Bairro Belgrano. A comunidade preparou durante meses uma homenagem que no último domingo incluiu, pela primeira vez, uma mensagem política, cujo alvo era a própria Igreja, com a saída para o espaço público de uma “caminhada”, cujo ponto de partida foi o espaço Patrick Rice da ex-Escola de Mecânica da Armada (Esma).
O chamado “Caminho dos mártires”, com um percurso de cinco “estações” em diversas paróquias que evocaram cada um dos assassinados, terminou na sede da paróquia e foi, por sua vez, uma tentativa – por parte das comunidades de base – de associar este episódio de maneira explícita com os 30 mil desaparecidos. A homenagem central acontecerá nesta segunda-feira [4 de julho], durante uma missa convocada para as 20h, que será presidida pelo arcebispo de Buenos Aires, cardeal Mario Aurelio Poli.
Esse cenário também será um espaço de mensagens subliminares. Os palotinos esperam grande número de bispos. Entendem que essa presença, no contexto do papado de Francisco, pode ser um gesto para convencer o ainda pouco convencido arcebispo da Cidade de Buenos Aires para promover uma consulta ainda pendente para a declaração dos cinco palotinos como mártires.
Em 2001, o então arcebispo de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio fez um reconhecimento aos cinco religiosos e impulsionou a criação de um tribunal e a abertura da causa canônica. De acordo com as leis católicas, esse processo tem duas vias: a constatação da existência de um milagre ou a designação dos mortos como mártires. Em 2009 e em 2011, Bergoglio buscou consensos entre os bispos argentinos, os quais não se manifestaram favoráveis à causa e Bergoglio decidiu esperar ventos melhores, de acordo com uma fonte dos palotinos. Desde que Poli assumiu não voltou a fazer essa consulta. É nesse contexto que também devem ser lidas a espera dos bispos e o cenário desta noite.
Outro dado que os organizadores assinalam em chave política é a decisão desta primeira saída à rua. Até agora, os atos eram realizados portas adentro, a cada 4 de julho, e somente a modo de recordação. O destinatário da caminhada de domingo não é apenas o cardeal Poli, mas a própria comunidade do Bairro Belgrano. A essa comunidade, que chegou a deixar balas nas oferendas das missas antes do massacre, o padre Kelly dedicou um memorável sermão quando exortava os fiéis a não comprarem bens pertencentes aos desaparecidos e disse que aqueles que prosperavam com essa perseguição “deixam de ser, para mim, ovelhas para transformar-se em baratas”.
Leonardo Orlando é um jovem da comunidade. “Me criei e me formei em San Patricio”, disse. “O que me parece importante de tudo isto é levá-los para a rua. Que os palotinos não sejam semelhantes a uma caixinha que, todos os 4 de julho, quando os comemoramos, abrimos e mostramos àqueles que vêm à missa e depois guardamos novamente, mas levá-los para a rua. Que a sociedade toda conheça sua história, que foi a história de um projeto de comunidade”.
Esse trânsito pela rua, que os integrantes da comunidade não chamam de “marcha”, mas de “caminhada”, é também entendido por eles em chave de associação com as vítimas da ditadura. “O assassinato foi uma mensagem à Igreja em geral e à comunidade, quiseram desarticular qualquer tipo de comunidade, inclusive aquelas que estavam vivendo o Evangelho, como neste caso, e lutando contra as injustiças. O que nós queremos dizer é que eles fazem parte dos 30 mil”.
Carlos Loza não é da comunidade. Ele é um sobrevivente da Esma e faz parte da organização Justiça Já! E um dos impulsionadores da retomada da causa judicial que ainda não tem nenhum dado sobre os autores do massacre. “Esta cerimônia tem uma importância política superlativa”, disse. “Porque, pela primeira vez, vai se reivindicar publicamente estes padres e seminaristas, coisa que a comunidade sempre se negou a fazer. Nunca quis colaborar, nunca contribuiu com nada. É uma comunidade que apoiava o golpe de Estado, que denunciava, que tinha pessoas ativas que coletavam assinaturas para transferir os religiosos e a Kelly, que, em seus últimos textos, denuncia as ameaças. Tudo isto nunca foi reivindicado. Hoje é importante que esse compromisso seja reivindicado e não fique oculto”.
O massacre aconteceu na madrugada de 4 de julho de 1976. Os vizinhos viram um Peugeot preto estacionado com quatro homens e um policial que parou perto deles e depois se afastou. Rolando Savino, o organista que encontrou os corpos, contou o que viu naquele dia: “Quando chego ao primeiro andar vejo uma cena rara; tudo estava bagunçado. As coisas jogadas pelos corredores. Tinha colchões e papéis jogados pelo chão. Na porta estavam escritos os seguintes dizeres: pelos camaradas dinamitados na Coordenação. Insultos. E eu não consegui sair do meu espanto até que chego e vejo o quarto, os corpos. Eu pensei que estava sonhando. Levei quase 10 minutos para me certificar de que não estava sonhando, de que aquilo não era um pesadelo. Atino para descer lentamente as escadas. Saio e todo o mundo me pergunta pelo que aconteceu”.
Os passos restantes
O caso tem dois caminhos abertos. Um, no terreno da Igreja, que é a abertura do processo de canonização. A postulação foi feita pelo responsável da Ordem, o padre Juan Sebastián Velasco, e pelo leigo Francisco Chirichela. O outro caminho foi aberto na Justiça penal argentina desde a ditadura. Essa causa esteve originalmente a cargo do juiz Guillermo Federico Rivarola que “cumpriu com a maioria dos requisitos formais da investigação, embora seja evidente que uma série de elementos decisivos para a elucidação do assassinato não foram levados em conta”, descreveu o jornalista Eduardo Kimel em seu livro O massacre de San Patricio.
Em 2013, o juizado de Sergio Torres, encarregado da causa Esma, retomou a investigação ao levar em conta o testemunho de dois sobreviventes que ouviram o marinheiro Antonio Pernías gabar-se de ter participado da operação de San Patricio. Em 2006, Torres processou 17 integrantes do Grupo de Tarefas 3.3.2 da Esma, mas a Câmara Federal portenha considerou que não estava provado que os autores do crime tenham partido da Esma. Torres desistiu do caso, mas a Câmara devolveu-a novamente a ele em caráter transitório. Na semana passada, o juizado enviou a Roma uma precatória via Chancelaria para pedir a abertura de arquivos do Vaticano em busca da identidade de dois supostos excomungados da comunidade San Patricio como autores do massacre.
Os palotinos nunca se apresentaram na causa penal. Este é um dado importante, uma vez que fala do silêncio público da hierarquia da Igreja católica diante do massacre e da posição de cumplicidade com a ditadura. E sobre o debate interno que este massacre provocou, e ainda provoca, dentro da ordem. Em julho de 2005, o jornalista Horacio Verbitsky explicou que “o núncio Pio Laghi e o cardeal arcebispo Juan Carlos Aramburu designaram o padre Efraín Sueldo Luque para que investigasse o episódio e redigisse um relatório com suas impressões, em duas cópias: uma para o Vaticano e a outra para a cúria, e nenhuma para a ditadura”.
No artigo, Verbitsky citou informação da embaixada dos Estados Unidos e documentos da Arquidiocese de Buenos Aires. “Apesar do que sabiam, os bispos decidiram não enfrentar a ditadura e aceitar suas desculpas hipócritas”. Entre os dados, mencionou uma conversa entre Aramburu e o então ministro do Interior, Albano Harguindeguy: “A Igreja sabe sem dúvida alguma que os padres foram assassinados pelas forças de segurança do governo”, disse Aramburu. Harguindeguy tentou responder-lhe, mas Aramburu advertiu: “Seria melhor que não fizesse nenhum comentário, já que qualquer negação seria uma mentira”.
Na coletiva de imprensa da semana passada, os palotinos anunciaram que, finalmente, vão se apresentar como querelantes na causa. Para fazê-lo, necessitavam se um acordo interno por unanimidade de todas as congregações. Segundo explica uma das fontes, esse acordo foi obtido somente na reunião anual de 2015. A partir de então, advogados da organização Justiça Já! trabalharam em um rascunho para a apresentação que deverá se concretizar nos próximos dias.
Os progressos havidos na causa do assassinato de Enrique Angelelli em La Rioja, mas, sobretudo, a posição que nesse caso assumiu a diocese da Província, são dois antecedentes que habilitaram internamente a posição que agora também os palotinos assumem no cenário penal. Em 2010, a diocese de La Rioja apresentou-se como querelante perante a Justiça e foi um dos principais impulsionadores da causa que culminou com a sentença do julgamento oral de 2014 e a condenação à prisão perpétua do vice-comodoro Luis Fernando Estrella, chefe do Esquadrão de Tropas na Base Aérea e segundo chefe da cidade de Chamical; e de Luciano Benjamín Menéndez. A sentença foi confirmada este ano pela Câmara de Cassação Penal.
Em março deste ano, no contexto dos 40 anos do golpe e quando os Estados Unidos anunciaram uma nova abertura de documentos da ditadura, o Vaticano anunciou a abertura de seus próprios arquivos. O secretário-geral da Conferência Episcopal Argentina, Carlos Malfa, informou sobre a decisão depois de um encontro com o Papa. Ele disse que “a colocação em ordem” da documentação arquivada “levará seu tempo”, porque alguns documentos “estavam mais ordenados e outros necessitavam de uma atenção maior”.
Em 2005, Verbitsky dizia que Jorge Bergoglio impulsionava a canonização dos palotinos para limpar sua imagem no caminho da ascensão ao papado. Agora, Bergoglio é Francisco. Não é possível confirmar se ele vai impulsionar a designação de mártires dos palotinos, mas há indícios a este respeito. Suas velhas posições sobre o tema tornam possível prever que a missa de Poli e os passos que a Igreja irá assumir serão acompanhados de perto desde Roma.
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Os palotinos assassinados pela ditadura - Instituto Humanitas Unisinos - IHU