09 Junho 2016
"Dar continuidade ao passado não é tão simples quanto parece", escreve Massimo Faggioli, professor de História do Cristianismo na University of St. Thomas, EUA, em artigo publicado por Global Pulse, 07-06-2016. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Eis o artigo.
Uma das maiores questões acerca da "revolução de Francisco" diz respeito à questão das mulheres na Igreja.
Muitos católicos em certas partes do mundo acreditam que esta é a prova de fogo da reforma da Igreja Católica. Desde que o Papa Francisco concordou há várias semanas com a criação de uma comissão para estudar a história das diaconisas, começou uma nova discussão sobre uma questão que muitos temiam ter sido concluída por João Paulo II para sempre.
O Papa Francisco fez o anúncio em 12 de maio, em resposta a uma pergunta feita durante uma audiência com cerca de 900 líderes de congregações mundiais de mulheres religiosas católicas. Foi uma resposta improvisada e, por isso, é difícil dizer o que virá de tal comissão de estudo. Muito dependerá da composição da comissão e sua agenda.
Na minha opinião, se é apenas uma comissão para investigar a história das diaconisas, defensores do diaconato feminino não devem esperar desenvolvimentos importantes. O entusiasmo que se seguiu ao anúncio demonstra uma crença ingênua de que encontrar ou mesmo concordar com a evidência histórica da existência de diaconisas no início da história da Igreja pode resolver o problema. Mas este tipo de apelo à história raramente é conclusivo em debates teológicos e pode facilmente o tiro sair pela culatra. Poderia se tornar a versão progressiva do tradicionalismo no sentido de legitimar algo na Igreja somente por não ser novo.
A grande questão aqui (e não somente para a questão do diaconato feminino) é o papel que a história desempenha e deve desempenhar em relação à ideia de tradição da Igreja. Como historiador eu acredito que a história da Igreja é crucial para um debate informado sobre suas grandes questões. Por exemplo, não se pode debater sobre a família e o casamento hoje sem se ter uma ideia de sua história complicada na sociedade e na Igreja.
Dito isto, existem pelo menos três razões pelas quais não devemos ficar muito animados com a comissão que investiga a história das diaconisas.
A primeira razão é a diferença entre tradição e história. Traditio não é apenas história. A história está no passado, ao passo que a tradição é dinâmica e aberta ao futuro. A tradição pode e às vezes deve ser "inventada", enquanto inventar a história é simplesmente falsificação.
A lista de diferenças entre tradição e história poderia ir ainda mais adiante. Mas de um ponto de vista prático, se usarmos a história para validar ou invalidar aspectos da Igreja ou do ministério, as consequências podem ser imprevisíveis. Por exemplo, se tivéssemos que reestruturar todos os ministérios eclesiásticos de acordo com o que sabemos sobre sua história no início da Igreja, deveríamos rejeitar a noção de que os bispos sejam sucessores dos apóstolos - que é uma noção muito mais teológica do que histórica.
O mesmo é verdadeiro para o modelo de sacerdócio, de ordens monásticas e religiosas, de novos movimentos leigos e da Cúria Romana. Muito do que eles são hoje é diferente do que costumavam ser. Todos os ministérios na Igreja são uma mistura de um modelo histórico anterior e uma compreensão teológica e dinâmica do ministério.
Isso nos leva à a segunda razão - a diferença entre o argumento histórico-tradicional e o argumento teológico. Há, de fato, outra distinção a ser feita entre a mentalidade histórica e tradicional e a mentalidade teológica. O Concílio Vaticano II (1962-65) é crucial para entender esta distinção.
No debate eclesiástico que levou à constituição Lumen Gentium (e outros documentos), os padres do concílio olharam para um determinado período da história que eles acreditavam oferecer um caminho de reforma para a Igreja no futuro. Foi a era patrística (padres da Igreja), que data desde os primeiros séculos da era cristã até a grande mudança que ocorre entre a Igreja imperial de Carlos Magno no século IX e a igreja gregoriana no final do século XI. A Igreja daquela época era mais global e menos institucionalizada, mais colegial e menos monárquica, com um certo tipo de liberdade face à política e à ideologia.
O modelo patrístico ajudou a reformular o debate eclesiástico em torno do papado, do episcopado e das conferências episcopais. Mas não funcionou para outras questões fundamentais, como, por exemplo, o diálogo inter-religioso e especialmente para as relações da Igreja com os judeus.
A declaração do Vaticano II sobre as religiões não-cristãs, Nostra Aetate, é o melhor exemplo da inutilidade da história em alguns casos. Um dos principais especialistas sobre este texto conciliar, Piero Stefani, destacou recentemente, em um post de seu blog semanal, os riscos de tentar usar a história como o caminho para a resolução do problema.
Nostra Aetate não olha para a história a fim de encontrar legitimidade nesse passado. Na verdade, ele faz exatamente o oposto. Ela não cita nenhuma fonte eclesial ou magisterial, nem mesmo os padres da Igreja, e não investiga a história do posicionamento dos católicos frente aos judeus (e não apenas porque teria sido embaraçoso ou muito complicado para um breve documento do Concílio).
Nostra Aetate cita as escrituras e seu quarto parágrafo simplesmente afirma que o anti-judaísmo é contra o Evangelho porque odiar os judeus é odiar Jesus. Em outras palavras, o argumento teológico é muito mais forte do que o simples argumento histórico quando a Igreja enfrenta novos problemas.
A terceira razão é a relação entre a história pregressa da Igreja e sua dimensão global atual. Quanto mais se sabe sobre a história da Igreja, mais nos conscientizamos do conjunto diversificado de experiências em todos os seus aspectos em diferentes áreas do mundo a todo momento.
Prospectivamente, isso significa que é cada vez mais difícil identificar aspectos da vida da Igreja do passado e então tentar transpô-los à Igreja do nosso tempo e do futuro. Isto é ainda mais verdadeiro considerando a dimensão radicalmente mundial do catolicismo hoje. Isso significa que o modelo histórico de mulheres diáconos pode ser relevante para a Igreja de hoje em algumas partes do mundo, mas não necessariamente em outras. Isso porque um fator importante é o papel das mulheres nessas sociedades contemporâneas, não nas sociedades de 10 ou 15 séculos atrás.
Tivemos diaconisas no passado distante da Igreja. Mas não é por isso que sou a favor das mulheres diáconos hoje. Não é uma questão de história. A falta de conhecimento sobre a história da Igreja torna as coisas ainda piores, mas o caminho das evidências históricas não é a poção mágica - a menos que acreditemos em uma eclesiologia puramente arqueológica.
Recorrer à história é muito importante para a reforma da Igreja, mas não é definitivo e não resolve as questões que devem ser manejadas teologicamente. Devemos ter mulheres diáconos porque elas existiam muitos séculos atrás ou porque pensamos que o seu ministério deve ser valorizado à luz de seu chamado para ser mensageiras do Evangelho no mundo de hoje?
Este é um problema teológico e eclesiástico novo. A maneira como o Vaticano II lidou com novas questões 50 anos atrás pode nos ajudar a entender como devemos lidar com esta e outras novas questões hoje. Não se trata de encontrar e recriar uma continuidade com o passado - a menos que queiramos enfrentar o obstáculo que João Paulo II, em um passado muito recente, colocou diante de qualquer mudança que se possa querer explorar em relação ao papel das mulheres na Igreja.
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Diáconas mulheres e as lacunas da história - Instituto Humanitas Unisinos - IHU