30 Mai 2016
Desde os arquivos do "não é fácil ser Papa", uma história recente em Roma ilustra como Papa Francisco enfrenta, nos dias de hoje, o desafio de fazer duas grandes coisas ao mesmo tempo, que nem sempre se harmonizam: alcançar muçulmanos moderados no Oriente Médio e ao mesmo tempo conscientizar sobre os cristãos perseguidos da região.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 25-05-2016. A tradução é de Luísa Flores.
Na segunda-feira, Francisco recebeu o Grande Imã da lendária Mesquita al-Azhar do Cairo, Ahmed el-Tayeb, no Vaticano. O complexo da mesquita e da universidade de al-Azhar é considerado a instituição de maior autoridade no mundo islâmico sunita, e o tête-à-tête de segunda-feira marcou a retomada do diálogo com o Vaticano depois de um gelo de cinco anos.
Esse bloqueio, por sinal, iniciou em 2011, quando o Papa Bento XVI falou sobre os ataques a cristãos coptas no Egito.
Para mostrar respeito a seus hóspedes, os funcionários do Vaticano tomaram a iniciativa incomum de não só organizar uma entrevista para el-Tayeb tanto com a Rádio Vaticano e com o L'Osservatore Romano, mas também de liberar seu texto na terça-feira em um boletim oficial da Imprensa da Santa Sé.
Na entrevista, El-Tayeb foi elogioso sobre o Papa Francisco, chamando-o de "um homem da paz", bem como "um homem que respeita as outras religiões e mostra consideração com seus seguidores".
Em um ponto, no entanto, el-Tayeb parecia pressionar indiretamente não somente o papa, mas o sentimento cristão mais amplo. Durante a discussão sobre esforços entre muçulmanos e cristãos no Oriente Médio para rejeitar o radicalismo e a violência, o imã disse o seguinte:
"Gostaria de dizer que a questão não deve ser apresentada como perseguição de cristãos no Oriente," disse el-Tayeb, "mas, pelo contrário, existem mais vítimas muçulmanas do que cristãs e todos nós sofremos essa catástrofe juntos."
Um tanto surpreendentemente, nenhum dos jornalistas presentes prosseguiu à óbvia pergunta: Será que el-Tayeb realmente acredita que não há uma linha especificamente anticristã para muitas versões do radicalismo islâmico - por exemplo, os bairros mais militantes do Irmandade Muçulmana no próprio Egito, onde os coptas rotineiramente reclamam de assédio, violência e discriminação?
É plausível afirmar que "a perseguição dos cristãos" é a narrativa errada do Oriente Médio quando vários organismos mundiais, incluindo o Departamento de Estado dos EUA, reconheceram que um genocídio de cristãos e outras minorias está em curso em áreas controladas pelo ISIS?
Saber o que fazer com a declaração de el-Tayeb, no entanto, depende do que ele queria dizer com isso.
É certamente verdade que, estatisticamente falando, as vítimas mais numerosas do radicalismo islâmico são outros muçulmanos, principalmente porque nas zonas onde tende a ser mais inflamado, há mais muçulmanos do que qualquer outro grupo. Quando militantes lançam ataques indiscriminados, há geralmente boas chances de que os muçulmanos sejam desproporcionalmente representados entre as vítimas.
Se o que el-Tayeb quis dizer é simplesmente que os cristãos e os muçulmanos moderados em tais contextos estão basicamente no mesmo barco, então não é mais do que uma descrição de como as coisas se configuram.
Por outro lado, também poderia considerar-se que o comentário de el-Tayeb presume que não há nenhuma ameaça específica aos cristãos no Oriente Médio, e mais, que é inútil para a causa da paz e da compreensão sugerir que isso existe.
Se for esse o caso, o Papa Francisco enfrenta algo como um dilema.
Por um lado, el-Tayeb é precisamente o tipo de autoridade espiritual moderada, racional e tradicional dentro do Islã, que é, em última análise, a única esperança de tomar de volta o manto da liderança de organizações como a Al-Qaeda e o ISIS.
Intelectuais educados no ocidente, em Cambridge, Sorbonne e Harvard, podem realizar tantas conferências sobre a "desconstrução da superioridade religiosa" e outros temas quanto quiserem, mas no cotidiano muçulmano, em que a fé é mais profunda, apenas figuras como el-Tayeb podem realmente mudar o cenário.
Ao mesmo tempo, Papa Francisco tem três fortes incentivos para não deixar de denunciar a perseguição anticristã.
Em primeiro lugar, que a perseguição é uma realidade inconfundível.
O fato de que os militantes em grupos como o ISIS não odeiam apenas os cristãos não muda o fato de que o vitríolo anticristão é parte dessa mistura. Assim como não muda o fato de que, mesmo quando a maioria muçulmana em uma dada sociedade não está atacando ativamente os cristãos, eles são muitas vezes relegados a uma espécie de cidadania de segunda classe que reflete uma profunda corrente do preconceito social.
Em segundo lugar, o Papa já está publicamente observando que há mais mártires hoje do que em qualquer período anterior da Igreja, que os cristãos estão sofrendo pela fé em todo o planeta e que as várias denominações hoje devem ser unidas por um "ecumenismo de sangue."
Pareceria estranho agora diminuir essas manifestações de preocupação em prol da "correção entre religiões".
Terceiro, se Francisco suavizasse sua linguagem sobre os cristãos perseguidos, poderia ser um caso de alcançar um ganho inter-fé, mas permitir uma perda ecumênica, pois isso provavelmente seria profundamente decepcionante para outros grupos cristãos, talvez especialmente os Ortodoxos, que também encontram-se na linha de fogo.
Como resultado, o truque para Francisco daqui para frente pode ser encontrar uma maneira de dizer alguma versão do seguinte aos parceiros islâmicos, como el-Tayeb: "Sim, estamos juntos nisso, mas isso não significa que os cristãos não enfrentem ameaças especiais ... e, a propósito, que seria bom para você reconhecê-lo."
Estruturado dessa maneira, Francisco poderia realmente lançar as bases para uma parceria real.
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Papa Francisco e o risco de "correção inter-religiosa" com o Islã - Instituto Humanitas Unisinos - IHU