"Jesus é a fonte, o manancial, a água viva. Com ele não há juiz, pois o Abbá é encontro, é fonte de liberdade, de consciência. A proximidade é a essência do encontro, é o cerne da experiência cristã, mas também de muitas tradições e expressões religiosas. Uma vez ouvi um pastor querido amigo, o pastor Eduardo Rosa Pedreira, dizendo que, se pudesse resumir a Bíblia em uma palavra ela seria RELAÇÃO. Esse é o caminho que Jesus vive e conduz – é o caminho intratrinitário, é o caminho de irmos ao encontro de nós mesmos, de nos reconstruirmos como relação, e nos darmos conta de que 'eu sou porque nós somos".
A reflexão é de Rosemary Fernandes da Costa, teóloga leiga, doutora em Teologia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e bacharel em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É professora de Cultura Religiosa da (PUC-Rio) e de Filosofia da Secretaria de Educação do RJ. É criadora e coordenadora do curso de Pedagogia da Fé, no Centro Loyola de Fé e Cultura e na Arquidiocese do Rio de Janeiro. Assessora da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB) e da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), de agentes de pastoral e formadores na área de Iniciação Cristã, Catequese e Catecumenato.
2Cr 36,14-16.19-23
Sl 136(137),1-2.3.4-5.6 (R. 6a)
Ef 2,4-10
Jo 3,14-21
As leituras da quaresma nos conduzem a um conjunto de reflexões que, na verdade, desejam contribuir para uma revisão da caminhada. É como se colocássemos diante de nós mesmos um espelho e pudéssemos nos olhar demoradamente, contemplando detalhes do rosto, da expressão, do corpo, dos silêncios, das memórias e atitudes que vamos assumindo na história. É como a caminhada dos discípulos de Emaús com Jesus, uma caminhada de revisão, de olhar para trás para nos situarmos e, quem sabe, abrirmos nossos ouvidos e deixarmos nossos corações aquecerem mais uma vez diante do Mistério que se revela.
É assim também este domingo, uma caminhada por temas que incomodam, que desinstalam, que fazem pensar. Dessa vez, as crenças presentes naquele contexto judaico, a imagem de Deus e, com ela, a imagem de ser humano, de ser comunidade, até mesmo da presença amorosa de Deus na história.
Nas leituras do dia estão presentes as profecias e conselhos de Jeremias (2Cr 36,14-16.19-23), mas também a dificuldade do povo compreender os planos do Senhor e se manter fiel no caminho. Estão aqui também os clamores para que o Senhor não se esqueça de seu povo na sua imensa misericórdia. À comunidade dos Efésios (Ef 2,4-10), Paulo faz uma profunda revisão da
Revelação que se consolida em Jesus Cristo e conduz para o acolhimento ao dom de Deus que transborda do seu Amor pleno, radical, presente e entregue à toda a Criação. A leitura do Evangelho segundo João (Jo 3,14-21) é o ápice de toda essa profunda reflexão.
Vale à pena ainda observarmos que estamos diante de um texto tecido a muitas vozes, muitas mãos, muitas memórias, mas não é uma colcha de retalhos, pois ele é costurado não apenas pelo olhar dos pesquisadores, leitores e intérpretes, mas pelo fio dourado do Amor que se revela na História de ontem, hoje e sempre. Então, temos camadas diferentes aqui – temos a camada da própria passagem de Jesus por aquele contexto histórico; temos a camada da chegada dessa passagem às comunidades, com seu olhar e interpretação próprias de seu tempo e de seu possível diálogo com a dinâmica da Revelação; e ainda temos a camada dos redatores que contribuem com acabamentos, reflexões, inclusões e interferências de cunho filosófico, místico, teológico, político, cultural.
Vamos refletir sobre esse relato evangélico tão denso tendo como eixo um tema e, a partir dele, alguns raios que brotam da mesma estrela brilhante – Deus para o homem e o homem para Deus.
O relato de Jo 3,14-21 está no contexto do encontro entre Jesus e Nicodemos, um encontro dentro do mundo judaico, refletindo sobre o que foi transmitido até aquele momento. Há duas visões de mundo em diálogo, duas formas de compreender a imagem de Deus, e a própria filosofia tão presente naquele contexto, que é a gnose.
Então, um encontro fecundo entre judaísmo, pensamento binário greco-romano e a vivência que Jesus propõe diante desses pensamentos, que marcam também atitudes e formas de viver e de crer.
O pensamento judaico vai remeter à compreensão de que quando Moisés ergue a serpente no deserto, nenhum mal é capaz de atingir aqueles que contemplam essa elevação. Aqui já temos um diálogo binário, entre alto e baixo, ascendente e descendente, bem e mal. Vamos seguir mais um pouco...
No diálogo dos versos anteriores, vemos Jesus dialogando com Nicodemos sobre ‘nascer de novo’. O que seria? E Nicodemos custa a compreender a metáfora sobre o nascimento desde sua origem, do profundo do seu ser, que estabelece uma relação de intimidade com o Amor que o conduz e que orienta as ações, com o Espírito que guia o viver. Jesus, pedagogo que é, dialoga a partir das referências do seu interlocutor e ajuda a reconstruir o pensamento binário, propondo uma profunda integração de todas as dimensões da vida.
Mas é a própria comunidade joanina - que passou pela crise da Paixão e Morte de Jesus -, que olha para a história de Jesus e, a partir da experiência da Ressurreição realiza novas leituras de todos os acontecimentos. É a comunidade que descobre que a Encarnação e a Páscoa são o mesmo mistério, único e inseparável, e a hora da Paixão é a maior revelação, é a epifania do Amor. É a elevação pela Cruz que integra todas as dimensões, onde não há dualismos, onde o mesmo Mistério se revela, pois Deus e a humanidade se integram e conduzem tudo à plenitude, ao Amor eterno.
Não há mais luz e trevas, porque tudo é iluminado, é amor extremado que se entrega. Por quê? Porque é isso que o Amor faz, e não consegue ser diferente, porque é sua única razão de ser e de viver. No Amor não há contenções, divisões, pois ele é o próprio Mistério em ação, é o Verbo que se faz carne e habita entre nós, em nós, conosco. Emanuel é Deus conosco!
Olhar para a cruz nos leva a dores tão imensas, insuportáveis, suplícios e incompreensão. Sim. Não há como negar ou aliviar todos os sofrimentos cotidianos dos humanos e de todo o Cosmos. Mas o que será que João e sua comunidade querem nos revelar neste diálogo entre Jesus e Nicodemos? Quem sabe, alinhavada pelo fio de ouro do Amor Divino, a comunidade esteja nos falando de que enquanto o pensamento dualista viver, as dimensões continuarão parecendo separadas, porque assim as vemos e as conduzimos. A reconciliação, a ponte, o meio, a mediação só podem ser obra do Amor, e não há outra forma. É a comunidade joanina quem vai profetizar no capítulo 15, a partir de seu conviver com Jesus: “O maior amor é dar a vida pelos amigos”.
Deus entrega tudo. Jesus entrega tudo. O Amor entrega tudo. Ele não se contém, não se guarda, não por superioridade ou distinção, mas porque só sabe ser o que é. Por isso, quando olhamos para Jesus, pouco vemos palavras – elas vieram depois do seu viver por aqui. Quando olhamos para Jesus vemos olhares, encontros, proximidades, diálogos, sentimentos fortes, contemplação, vivências. Quando olhamos para Jesus vemos o Verbo, a Palavra viva entre nós, e por isso ela é Pascal, por isso ressuscita, por isso mesmo está aqui e agora, e para sempre estará.
A vida eterna não é depois do fim. Ela é uma qualidade da vida presente. A Encarnação é ação amorosa e é Páscoa: tudo ao mesmo tempo. É o início e o fim, é a origem e a plenitude.
“Deus não enviou o Seu Filho para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele”. Não é isso? Não há julgamentos, eles estão dentro do pensamento que enraíza o medo, o certo e o errado, divide, diaboliza. A vida de Jesus é símbolo, é síntese, é integração, é comunhão, é a cruz com todos os seus lados – em cima, embaixo, à direita e à esquerda – são os quatro pontos cardeais, é o sinal de adição, é o entrecruzo de todas as dimensões, dos elementos – água, fogo, terra e ar. Faça o sinal da Cruz com essa profundidade, se deixe conduzir por essa mistagogia que marca sua vida, a nossa história, a pessoa e a comunidade, o céu e a terra, a história e o que há de vir, o presente, o passado e o futuro.
É Nicodemos que vai a Jesus, mas quem chama quem? Por que Nicodemos vai até lá durante a noite? Por que será que busca um diálogo tão profundo e íntimo com Jesus? E nós? Vamos a Jesus ou é ele quem nos atrai para o Amor mais radical, que nos faz questionar e ressignificar tudo?
Jesus é a fonte, o manancial, a água viva. Com ele não há juiz, pois o Abbá é encontro, é fonte de liberdade, de consciência. A proximidade é a essência do encontro, é o cerne da experiência cristã, mas também de muitas tradições e expressões religiosas. Uma vez ouvi um pastor querido amigo, o pastor Eduardo Rosa Pedreira, dizendo que, se pudesse resumir a Bíblia em uma palavra ela seria RELAÇÃO. Esse é o caminho que Jesus vive e conduz – é o caminho intratrinitário, é o caminho de irmos ao encontro de nós mesmos, de nos reconstruirmos como relação, e nos darmos conta de que “eu sou porque nós somos”.
A gnose marcou o tempo de uma civilização inteira, e não terminou. O dualismo ainda está entre nós, e se estabelece com várias formas binárias. Mas, o que a experiência cristã apresenta? Vamos beber nessa fonte primeira, nos banhar nesse manancial de Amor. Passar um desfragmentador no nosso HD marcado por essa cultura que divide e nos reconectar, de verdade, não com redes digitais, mas com pessoas, com seres humanos e não humanos, com o cosmos vivo e fecundo.
E toda a vida se tornará sacramento de Deus, o mundo estará próximo, e o lugar da exploração e da depredação se tornarão lugares de receptividade, de oferenda e de encontro. Sim, é dinâmico, é ainda superação do paradoxo que está aí, mas é a convocação mais profunda e única do Amor Maior, que aqui nos trouxe e nos conduz perseverantemente.
Em Jesus tudo fica claro – de uma vez para sempre – Deus é do mundo e o mundo é de Deus.