A leitura que a Igreja propõe neste domingo é o Evangelho de Jesus Cristo segundo João 3,14-21 que corresponde ao 4º Domingo de Quaresma, ciclo B do Ano Litúrgico. O comentário é elaborado por Ana Maria Casarotti, Missionária de Cristo Ressuscitado.
Estamos no 4º domingo da Quaresma, caminhando em direção à celebração mais importante do cristianismo: a morte e a ressurreição de Jesus. Lembremo-nos de que a Quaresma são 40 dias de preparação para a celebração da Páscoa e, além do tempo cronológico que pode ser considerado hoje, não podemos perder o profundo simbolismo que o número quarenta tem na Bíblia. Moisés esteve na montanha por 40 dias (cf. Ex 24,18), Elias peregrinou à montanha de Deus por 40 dias (cf. 1Rs 19,8), as tentações de Jesus no deserto por 40 dias (Lc 4,2). O número quarenta simboliza um tempo de provação, um tempo de fortalecimento na fé, um tempo de caminho. Marca um tempo especial, que implica uma peregrinação em direção a uma realidade nova e para isso é necessário se preparar.
Hoje, estamos nesse tempo de preparação para algo novo, um tempo de mudança, não somente como Igreja, mas também inseridos na realidade do mundo que vivemos hoje, onde tantos avanços tecnológicos e novidades científicas vêm acompanhados de injustiça, marginalização e desrespeito aos direitos sociais de populações inteiras que sofrem com esses flagelos.
Meditamos sobre o texto da Palavra de Deus que nos foi dado neste domingo e pedimos que ele seja uma luz que nos guie neste quarto domingo da Quaresma, chamado Domingo da Alegria.
Jesus está em diálogo com Nicodemos, uma "autoridade entre os judeus" que veio encontrá-lo à noite. Ele reconhece que Jesus é um mestre, aceita sua autoridade porque viu os sinais que ele realiza: "Mestre, sabemos que vieste de Deus para ensinar, pois ninguém pode fazer os sinais que tu fazes se Deus não estiver com ele" (Jo 3,2).
No diálogo a seguir, Jesus falou com ele sobre a necessidade de nascer de novo para ver o Reino de Deus. Nicodemos fica intrigado com essa afirmação e faz a pergunta: "Como pode um homem nascer, sendo velho?" Jesus então explica a necessidade de nascer da água e do Espírito para "entrar" no Reino de Deus.
Como dissemos antes, Nicodemos já era testemunha e conhecia os sinais que Jesus realizava e o considerava um mestre que agia em nome de Deus. Mas ele mirava desde fora, quase como um espectador, como alguém que sabe, já que ele é um "mestre de Israel", como lhe disse Jesus, mas não aceita "esse testemunho".
O Espírito é necessário para interiorizar esse testemunho, para que ele se torne não apenas algo "conhecido", mas também algo vivido, uma experiência de fé que transforma a vida de quem o recebe. Desde o começo Jesus lhe fala de um novo nascimento, não basta saber, mas é necessário estabelecer o vínculo com Aquele que é nascido do Espírito!
No versículo anterior ao texto que lemos hoje, Jesus diz: "Ninguém subiu ao céu, senão aquele que desceu do céu, o Filho do Homem" e continua: “Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna".
Assim, Jesus se apresenta como aquele que desceu do céu para nos revelar a própria interioridade de Deus, da qual ele nos convida a participar. Ele é o único que pode nos tornar participantes dessa nova vida, para a qual é necessário nascer da água e do Espírito.
O texto menciona Moisés que, seguindo o conselho do Senhor, colocou uma cobra venenosa em um estandarte para que aqueles que sofriam de picadas de cobras venenosas pudessem ser curados ao olhar para ela. No evangelho que lemos hoje, esse evento é mencionado como uma prefiguração de Jesus sendo levantado na cruz. Jesus é levantado na cruz para que todos os que acreditam nele possam ter vida eterna. O Evangelho de João nos diz que, após a morte de Jesus, um soldado "perfurou seu lado com uma lança e imediatamente saiu sangue e água" e continua dizendo: "Aquele que viu isso testifica, e seu testemunho é verdadeiro; ele sabe que está dizendo a verdade, para que vocês também acreditem" (18,34).
Estamos no domingo da alegria, que nos torna conscientes do imenso amor de Deus por nós, por cada um de nós em particular. Ele nos convida a experimentar o Dom da vida que Deus nos deu em Jesus, porque: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna”.
A comunidade joanina entendeu profundamente que Jesus Crucificado é a revelação total do amor de Deus por toda a humanidade. Jesus não veio para condenar, mas para salvar, e a única condição é "crer Nele", ou seja, ouvir Sua Palavra, vir a Ele, receber Sua mensagem, seguir Seu caminho em uma amizade íntima e união com Ele. Jesus nos convida a nascer da água e do Espírito. Ele também nos chama a levantar nossos olhos para Ele, que está na cruz, especialmente quando o sofrimento e a incompreensão diante da dor e da morte que, às vezes, parecem cobrir sociedades inteiras, nos levam ao desânimo e à morte, como as serpentes venenosas no deserto.
"Deus amou tanto o mundo" e nada fica fora desse amor! Essa é a boa notícia que o Senhor nos convida a comunicar neste Domingo da Alegria. Deus nos chama a nascer de novo, da água e do Espírito, e a olhar para ele na cruz, deixando que sua vida passe por nossas vidas, curando e curando as doenças que entorpecem nossa alegria.
Em meio à dor que nos cerca, somos convidados a ser sinais e testemunhas da alegria de sua Boa Nova: Deus nos ama sempre, é necessário deixar as portas abertas para que seu amor renove nossa vida e a das comunidades e nos transforme, olhar como fé o crucificado e redescobrir nele o Amor de Deus.
De fato, nesse encontro entre Nicodemos e Jesus fala-se de “grandes amanheceres”. É possível que Nicodemos visse algo estranho e interessante em Jesus e procurasse cooptá-lo para seu grupo.
E, no entanto, Jesus inverte totalmente a situação e lhe faz grandes anúncios.
Talvez, se não tivesse sido de noite, Nicodemos não teria se colocado em caminho. Ele é nosso espelho; o que acontece com ele, também se faz presente em todos nós.
Assustam-nos as dúvidas, as interrogações, as dificuldades que encontramos para entender o que acontece ao nosso redor e em nosso próprio interior. Mas, bendita noite que nos inquieta e nos tira de nossa anestésica comodidade! Bendita noite que nos move a nos perguntar os “porquês” e os “comos” e põe em questão nossa vida! Bendita noite que nos faz buscadores de sentido!
Por isso, o mestre busca o Mestre, o homem busca o Homem. E este lhe fala de “nascer de novo”, de nascer do Espírito. “Como pode ser isto?” E Jesus ressitua Nicodemos em seu caminho de fé.
Jesus, conhecedor de nossa humanidade, confirma a Nicodemos a existência da noite, a sua e a do mundo. Fala-lhe de obscuridades, da cegueira que nos leva, às vezes, a amar mais as trevas que a luz, do mal que provoca infelicidade.
Com suas palavras e ações, Jesus colocou em questão as verdades mais profundas de Nicodemos, aquelas certezas que o haviam configurado, aqueles pilares sobre os quais havia assentado, até então, sua vida e seu ensinamento da Lei.
Jesus reaviva sua memória para que Nicodemos não fique aí: “Deus não enviou seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele”. Jesus lhe oferece palavras de vida, que lhe recordam a possibilidade de eleger o bem, de agir na verdade, de caminhar para a luz.
E assim, no meio da noite, Nicodemos recupera a luz. Porque Jesus é a Luz; o Amor é a luz.
Foi a Ele de noite, e n’Ele encontrou a luz.
Uma luz tão intensa que o tirou de sua obscuridade, transformando sua vida; e, na morte de Jesus, será o próprio Nicodemos quem abraçará o corpo do crucificado para envolvê-lo em lençóis e perfumes.
O mestre dando testemunho público de seu amor ao Mestre; o homem fazendo-nos fixar nosso olhar no Homem, levantado na Cruz, para que n’Ele encontremos a Luz.
Quaresma é um tempo privilegiado para “descer” em nossas noites e responder estas perguntas: por que fugimos tanto de nós mesmos e de Deus? Por que preferimos viver iludidos, sem buscar a luz presente no nosso próprio interior? Porque costumamos praticar essa mentira com muita frequência: pensamos de um modo, mas em nossa maneira de viver não atuamos como pensamos, senão que buscamos manter as aparências, para que os outros tenham boa imagem de nós?
Jesus desmascara nossas mentiras existenciais; é preciso escutar suas palavras: “Quem age conforme a verdade aproxima-se da luz, para que se manifeste que suas ações são realizadas em Deus”.
O símbolo da luz está muito presente na Bíblia (e na vida). A luz é o princípio da criação da vida (Gen 1,3). O povo que vivia nas trevas, viu uma grande luz (Mt 4,16). Eu sou a Luz do mundo (Jo 8,12; 9,5).
A primeira ação e palavra de Deus no relato da Criação é precisamente dar existência à Luz, a Luz que é a consciência e a capacidade de compreender, de dar sentido à realidade criada. Deus separa a Luz das trevas e o evangelho de hoje nos recorda que viver na Luz nos encaminha para a verdade do que somos.
Podemos eleger entre viver a partir da força da Luz, que nos move a fazer o bem, a realizar ações inspiradas pelo Deus-Amor, a cocriar uma nova humanidade..., ou viver a partir da tirania das trevas que nos enreda na obscuridade das armadilhas, justificações e a supremacia de nossos egos. Caminho complexo, de avanço e retrocessos, mas se nos situamos sob a influência da Luz poderemos avançar sem perder o horizonte da Vida eterna, eternizando a nossa vida, como plenitude do que já somos, mas ainda não plenamente.
Costumamos empregar o símbolo da luz nos momentos mais importantes da vida: as mães “dão à luz”. Quando alguém morre, pedimos a Deus Pai que lhe “conceda a luz eterna”. Em situações difíceis não vemos a luz, a saída. Às vezes, nos encontramos com pessoas que “não tem luz” ou nós mesmos somos carentes de luz por fraqueza, cansaços, falta de sentido etc.
Como cristãos, nos aproximamos d’Aquele que é a Luz, para que Ele ilumine nossa vida e nós transmitamos, reflitamos um pouco de Sua luz. Como cristãos, somos como João Batista: não somos a luz, Cristo é a luz.
A vida nos convoca a ser luz: como pais e mães de família que iluminam a vida de seus filhos; como companheiros e amigos que se iluminam mutuamente; uma comunidade religiosa deve deixar transparecer a luz presente em cada membro; a responsabilidade de um educador, de um mestre é grande à hora de iluminar, de ensinar mais com seu testemunho que com sua ciência; os psicólogos, os médicos iluminam também a vida, os problemas das pessoas; os presbíteros, os catequistas tem a responsabilidade de transmitir a luz de Cristo. A luz cristã está presente nos corações compassivos e misericordiosos.
A chama não precisa fazer um “esforço” para iluminar. Na nossa essência, já somos luz, carregamos a chama da luz divina; o que se requer de nós é não bloqueá-la. Isso implica atitudes de autenticidade e de transparência; “andar na verdade”.
Assim como a chama ilumina por si mesma, a luz brota em nós quando vivemos de uma maneira oblativa, sendo canais transparentes pelos quais ela flui. A nós, como a chama, basta ser o que somos e viver em coerência com isso. Então, crescerá em nós uma atitude de esvaziamento do ego e de liberdade interior: deixaremos que a Vida flua, sendo presenças iluminantes em cada recanto e em cada situação de nosso cotidiano. Sejamos transparência da luz divina!
Verificar, diante de Deus, se a experiência quaresmal está despertando em seu interior a faísca da luz divina, que o(a) tornará lúcido(a) para dar uma direção oblativa à sua vida; ao mesmo tempo, confirme se esta luz se revela como inspiração para viver o espírito solidário e o compromisso com aqueles que estão perdidos no mundo das trevas e da exclusão.