4º domingo da quaresma - Ano B - Deus amou tanto o mundo que deu seu Filho único

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Por: MpvM | 08 Março 2018

Jesus parte de uma experiência humana comum. Quando praticamos a maldade, fugimos da luz, agimos às escondidas, na calada da noite, mascaramos os fatos. “Mas quem faz a verdade vem para a luz”. A verdade aqui não é uma doutrina a ser professada, a verdade é para fazer, praticar. No Evangelho de João, Jesus não diz que tem a verdade, mas que é a verdade. Quem pensa que tem a verdade, julga e condena os demais, bem diferente de quem está na verdade. Mas o que significa estar na verdade? A partir de Jesus, sabemos que significa inserir-nos na obra criadora e libertadora de Deus na história, para que ninguém mais pereça. 

A reflexão é de Glória Josefina Viero, religiosa da Congregação das Servas de Maria Reparadoras, smr. Ela possui graduação, mestrado e doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio

Referências bíblicas
1ª Leitura – 2 Cr 36,14-16.19-23
Salmo 136 (137)
Leitura II – Ef 2, 4-10
Evangelho – Jo 3, 14-21

Deus amou tanto o mundo que deu seu Filho único, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”. Esta é uma frase nuclear, em torno da qual se realiza a história de Deus conosco. É ela a chave de leitura para compreendermos a passagem do Evangelho deste quarto Domingo da Quaresma: João, 3, 14-21. Mas, para melhor nos situarmos nesse texto, iniciemos com uma breve introdução ao Quarto Evangelho no seu conjunto.

O Evangelho de João é como um tecido de três fios: 1) os fatos e as palavras de Jesus; 2) a experiência das primeiras comunidades; e o 3) comentário do Evangelista. Fios que se harmonizam tão bem entre si que às vezes não se chega a compreender quando se passa de um a outro.

O primeiro foi tecido pelas testemunhas oculares que recolheram os fatos e as palavras de Jesus e conservaram o que Ele fez e ensinou. A comunidade, ao se dispersar, semeou a Palavra por toda a parte tecendo o segundo fio com os fatos de sua experiência, iluminados pela fé em Jesus, pela certeza de sua efetiva presença. Isto incide sobre a descrição da vida do Mestre, por exemplo, a experiência de conflito com os fariseus no final do primeiro século marca o modo de descrever o conflito vivido por Jesus com os fariseus. O terceiro fio é tecido pelos comentários do Evangelista. Em certas passagens é difícil perceber quando Jesus termina de falar e quando entra o Evangelista com seus comentários. Quase não se percebe a diferença entre a fala de Jesus e a de João. É o que constataremos, por exemplo, na passagem do Evangelho de hoje, na qual contemplaremos uma bonita e profunda reflexão joanina sobre a ação de Jesus.

Lemos nos versículos 14 e 15: “Como Moisés levantou a serpente no Deserto, assim é necessário que seja levantado o Filho do Homem, a fim de que todo aquele que nele crer tenha nele a vida eterna”.

Nesse diálogo com Nicodemos, fariseu e chefe dos Judeus, Jesus parte de uma passagem do Livro dos Números, porém rompendo o antigo esquema de castigo e salvação/perdoa (castigo representado simbolicamente pelas serpentes que traziam morte, e salvação, pela serpente de bronze levantada por Moisés para trazer vida), pois nele, em Cristo, há somente vida e salvação.

“Assim é necessário que seja levantado o Filho do Homem”. Trata-se de uma referência à paixão de Jesus. Como os Evangelhos Sinóticos, também João apresenta 3 anúncios da paixão, mas sua linguagem é bem diferente. O que nos sinóticos é visto como infâmia, tortura, suplício na cruz, a ponto de aterrorizar, por três vezes, os discípulos (cf. Mc 8,31-33 e par.; 9,30-32 e par.; 10,32-34 e par.), em João, transforma-se em “exaltação” (Jo 3, 14; Jo 8,28; Jo 12,32). Já na cruz Jesus é exaltado em Deus, ”para que todo aquele que nele crer tenha nele a vida eterna” (v. 15).

Mas o que significa vida eterna? Segundo João, que dá uma especial atenção a esse tema, não é um prêmio futuro dado pelo bom comportamento em vida, como ensinavam os fariseus, mas uma qualidade de vida no presente. É “eterna” não simplesmente por não ter fim , mas por sua qualidade indestrutível. E nós não a teremos apenas no futuro, mas a temos já, no presente. Uma plenitude que não se alcança, como ensinavam os fariseus, observando a Lei, um código vindo de fora, mas percorrendo o caminho aberto por Jesus, o caminho da mais autêntica existência do ser humano diante de Deus e ao lado do seu semelhante.

“Deus amou tanto o mundo que deu seu Filho único para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (v.16). Este versículo é o ponto central em torno ao qual acontece a história de Deus conosco. Deus amou, um passado que perdura. Nele nossa origem, nosso existir e o horizonte de nossa esperança. Deus, que criou o mundo por amor, o ama tal como é, grandioso e finito, inacabado e incerto, cheio de conflitos e contradições, capaz do melhor e do pior. E o ama suscitando em toda parte nossa responsabilidade histórica para que ninguém pereça, para que todos tenham vida e vida plena.

Diante dessa presença tão íntima e tão libertadora, o que nos cabe é dar-nos conta de que em nossos processos de tornar melhor este nosso mundo e a nós mesmos, não estamos desamparados, ao jogo de nossa própria sorte. Ao contrário, sabemo-nos sustentados, potenciados e acompanhados por Deus-Amor, em quem “vivemos, nos movemos e existimos” (At 17,28).

Manter viva a fé cristã, como experiência do Deus que Jesus nos mostra é a razão de ser da Igreja; o único que a justifica na história é recordar o amor de Deus seguindo os passos de Jesus. É o que enfatiza o Concílio Vaticano II ao dizer que A Igreja “é enviada por Cristo a manifestar e comunicar o amor de Deus a todos os seres humanos”.

“Deus não enviou o seu Filho para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele”. Jesus, que está falando com um fariseu, derruba a expectativa de um Messias juiz do povo, mostrando-nos que em Deus não há julgamento, nem condenação, mas unicamente oferta de vida.

Em Jo 3,17-19 está o verdadeiro sentido do Juízo. Deus nos é apresentado como um Pai cheio de ternura e não como um severo juiz. Somos nós que nos julgamos, se não cremos, se atuamos contra a vida, contra o caminho aberto por Jesus.

Aqui o Evangelista retoma o prólogo dizendo: “o juízo é este: a luz veio ao mundo”, a luz é imagem da vida, “mas os homens amaram mais as trevas que a luz porque suas obras eram más”. Jesus fala de obras, não de credo ou de ortodoxia – note-se que ele está falando a um fariseu, um observante da lei e da doutrina. Não é, portanto, com a doutrina, mas com a prática que negamos nossa fé. Deus não nos dá uma doutrina, mas nos dá Jesus, aquele que da forma mais plena nos mostra em que consiste a opção da verdadeira vida.

Nos versículos 20 e 21, Jesus contrapõe “fazer a verdade” com “fazer o mal”.

“Quem faz o mal odeia a luz para que suas obras não sejam demonstradas como culpáveis.

“Mas quem faz a verdade vem para a luz para que se manifeste que suas obras são feitas em Deus”.

Jesus parte de uma experiência humana comum. Quando praticamos a maldade, fugimos da luz, agimos às escondidas, na calada da noite, mascaramos os fatos. “Mas quem faz a verdade vem para a luz”. A verdade aqui não é uma doutrina a ser professada, a verdade é para fazer, praticar. No Evangelho de João, Jesus não diz que tem a verdade, mas que é a verdade. Quem pensa que tem a verdade, julga e condena os demais, bem diferente de quem está na verdade. Mas o que significa estar na verdade? A partir de Jesus, sabemos que significa inserir-nos na obra criadora e libertadora de Deus na história, para que ninguém mais pereça. Quantos irmãos nossos hoje estão perecendo sob as mais diversas formas de opressão e exclusão: abandono, injustiças, indiferenças... E para que todos possam viver com a dignidade de filhos e filhas de Deus.

Para terminar: Somos discípulas e discípulos de Jesus, sabemos pelo primeiro fio o que Ele viveu e propôs. Fazemos parte do segundo fio, porque o evangelista nos entregou seu modo de tecer – o terceiro fio dessa narrativa de Vida coerente de Jesus. Resta-nos, além de dar-nos conta da presença amorosa, sustentadora e ativa de Deus, neste único lugar fragilizado, nossa história, tecer com coerência as escolhas do Mestre com autênticas relações cotidianas e com nossa prática preferencial pelos e com os pobres.

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